janeiro 28, 2014

"Lições dos "rolezinhos" por Marcos Francisco Martins", por Marcos Francisco Martins

PICICA: "Neste início de ano, tem sido pauta dos meios de comunicação os chamados “rolezinhos”, que consistem na articulação de jovens da periferia das grandes cidades pelas redes sociais virtuais para agendar passeios nos templos do consumo da sociedade contemporânea: os shopping centers. A novidade não reside no evento em si, mas na origem econômica, social e étnico-racial dos atuais protagonistas, pois passeios em grupo já eram e continuam sendo feitos por filhos da branca classe média brasileira, como é o caso dos alunos da USP que anualmente ocupam os shoppings da zona oeste de São Paulo para comemorar o início do ano letivo sem serem importunados ou agredidos. O que nos ensinam os “rolezinhos” das classes empobrecidas? Entre outras, eles estão nos dando lições econômicas, culturais, sociológicas e políticas."

Lições dos "rolezinhos" por Marcos Francisco Martins


Além do desejo de consumo, a mudança no quadro econômico impactou culturalmente o cenário nacional
Marcos Francisco Martins UFSCar
Marcos Francisco Martins

O ano de 2014 iniciou-se com uma nova mobilização social por parte da juventude brasileira, especificamente aquela integrante das classes empobrecidas por anos e anos de governo de uma elite econômica que, nessa condição, se achou no direito de se apropriar dos bens materiais e não materiais produzidos coletivamente. Neste início de ano, tem sido pauta dos meios de comunicação os chamados “rolezinhos”, que consistem na articulação de jovens da periferia das grandes cidades pelas redes sociais virtuais para agendar passeios nos templos do consumo da sociedade contemporânea: os shopping centers. A novidade não reside no evento em si, mas na origem econômica, social e étnico-racial dos atuais protagonistas, pois passeios em grupo já eram e continuam sendo feitos por filhos da branca classe média brasileira, como é o caso dos alunos da USP que anualmente ocupam os shoppings da zona oeste de São Paulo para comemorar o início do ano letivo sem serem importunados ou agredidos. O que nos ensinam os “rolezinhos” das classes empobrecidas? Entre outras, eles estão nos dando lições econômicas, culturais, sociológicas e políticas.

Os “rolezinhos” deixam claro que nos últimos 15 anos o Brasil viveu um momento de ascensão econômica de amplas camadas da população, que passaram a ter, com o desemprego em baixa e o crédito em alta, acesso aos bens materiais, antes restritos a poucos. Com isso, milhões de brasileiros experimentaram o consumo de bens e serviços e querem cada vez mais. O estímulo para tanto recebem em cada esquina, em cada conversa, virtual ou presencial, e principalmente nos meios de comunicação, que lhes ensinam que o do lócus do consumo é o shopping center, daí os jovens a eles recorrem em seus “rolezinhos”, onde podem exaltar os símbolos de status social, como as roupas e demais mercadorias e adereços de grife, cantados em prosa e verso (ops, não não! Melhor é “cantados sem prosa e sem verso!”) pelo deplorável “funk ostentação”.

Além do desejo de consumo, a mudança no quadro econômico impactou culturalmente o cenário nacional. Mais crianças foram para a escola e jovens de diferentes camadas sociais ao ensino superior, fruto de uma série de políticas públicas que estão colocando nos bancos escolares de todos os níveis setores sociais que anteriormente deles estavam excluídos, isto é, os pobres e os afrodescendentes. O acesso à educação, mesmo com qualidade social questionável, repercute no desejo dos jovens de terem acesso aos bens culturais, distantes das periferias urbanas e hodiernamente aprisionados em shopping centers. Em relação a isso, deve-se dizer que as políticas públicas culturais não avançaram tanto como as que promoveram certa inserção econômica e educacional, deixando a juventude empobrecida sedenta por espaços de lazer e de momentos de fruição cultural. Como cinemas, teatros, casas de shows, restaurantes e espaços de convivência estão nos shopping centers, eles se tornaram, também por isso, ambientes desejados pela juventude empobrecida.

Apreensiva, a classe média tradicional brasileira e a elite que lhe alimenta o ego consumista encontram-se assustadas com esse fenômeno social. Temem pela perda do templo que as fazem transcender a realidade dura e crua da vida concreta da maioria do povo brasileiro. Daí não conseguirem disfarçar a visão de mundo que lhe dá a homogeneidade social de grupo, que é preconceituosa sob o ponto de vista econômico e étnico-racial. E isso tem se mostrado mais forte do que a inteligência pragmática que orienta o capitalismo, pois ao invés de abrirem as portas dos shoppings para a juventude das periferias (o potencial de consumo dos jovens da “classe C”, identificada com os “rolezinhos”, é de R$ 129,2 bilhões, mais do que dos jovens das “classes A, B e D” somadas – Data Popular), a classe média e as elites econômicas chamam a polícia, que prontamente lhes atendem para proteger o templo que acreditam lhe ser só seu, impedindo o ir e vir e/ou selecionando, com critérios de origem racistas e/ou de ordem socioeconômica, que se manifestam em uma estética, quem pode ou quem não pode nele entrar.

Toda essa situação implica em forte contradição política, pois, de um lado, estão as elites econômicas do capitalismo brasileiro tentando barrar o acesso de camadas sociais com certo poder de compra ao consumo nos shoppings e, de outro, setores sociais que historicamente foram críticos ao consumismo, como os movimentos sociais, defendendo que a juventude empobrecida possa ter livre acesso aos templos do consumo.

Vê-se, portanto, que realmente a realidade é mais rica do que pode imaginar nossa pobre consciência, até mesmo porque esta, muitas vezes, nos oferece cenários utópicos em que a dignidade humanidade é o centro das relações sociais e não o consumismo e a pseudoalegria por ele provocada.

Prof. Dr. Marcos Francisco Martins
Professor da UFSCar e pesquisador do CNPq


Fonte:  Cruzeiro do Sul

Fonte: Geledés Instituto da Mulher Negra

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