janeiro 12, 2014

Pasolini corsário, o fascismo de consumo e o nosso “Brasil maior” (art_documento)

PICICA: "Os escritos do Pasolini corsário, polêmicos, repudiaram a sociedade unidimensional do consumo como um “novo fascismo” que ele chamou de “fascismo de consumo”. Não atacou indiscriminadamente o consumo nem o desenvolvimento em geral, como acusaram alguns, nem mesmo o consumo de bens supérfluos. Em seus ensaios, o corsário acusou os efeitos traumáticos de um desenvolvimento baseado na ideologia do consumo absoluto, o vazio cultural gerado por um atroz e estúpido desenvolvimento (sem verdadeiro “progresso”), que desloca os jovens – os jovens marginalizados, que vivem nas periferias urbanas – de sua cultura própria que, dotada de valores próprios ajustados às suas condições reais de vida, possibilitava aos jovens uma relação mais saudável com o mundo, mesmo que este mundo fosse constituído de pobreza e injustiças sociais. – (Se adaptar-se às injustiças sociais é uma forma de alienação, também cabe lembrarmos da incomensuralidade da vida mesma existencial, direta, concreta, dramática, corpórea, das pessoas que vivem essas realidades sociais injustas, o “mundo cultural” no interior do qual se exprimem física e existencialmente milhões de pessoas marginalizadas, excluídas, estigmatizadas)."


Pasolini corsário, o fascismo de consumo e o nosso “Brasil maior”


“Seguir avante… ter a força da crítica total, do repúdio, da denúncia desesperada e inútil”
- Pier Paolo Pasolini
Os escritos do Pasolini corsário, polêmicos, repudiaram a sociedade unidimensional do consumo como um “novo fascismo” que ele chamou de “fascismo de consumo”. Não atacou indiscriminadamente o consumo nem o desenvolvimento em geral, como acusaram alguns, nem mesmo o consumo de bens supérfluos. Em seus ensaios, o corsário acusou os efeitos traumáticos de um desenvolvimento baseado na ideologia do consumo absoluto, o vazio cultural gerado por um atroz e estúpido desenvolvimento (sem verdadeiro “progresso”), que desloca os jovens – os jovens marginalizados, que vivem nas periferias urbanas – de sua cultura própria que, dotada de valores próprios ajustados às suas condições reais de vida, possibilitava aos jovens uma relação mais saudável com o mundo, mesmo que este mundo fosse constituído de pobreza e injustiças sociais. – (Se adaptar-se às injustiças sociais é uma forma de alienação, também cabe lembrarmos da incomensuralidade da vida mesma existencial, direta, concreta, dramática, corpórea, das pessoas que vivem essas realidades sociais injustas, o “mundo cultural” no interior do qual se exprimem física e existencialmente milhões de pessoas marginalizadas, excluídas, estigmatizadas).

Acusado também de nostalgia de um tempo agrário, Pasolini conseguiu transformar a suposta nostalgia em força crítica. Como consequência do fascismo de consumo, alertou sobre o surgimento de novas formas de delinquência, resultantes da violência do consumismo que aniquila todos os modelos particulares de vida, forçando a substituição desse modelos por outros aos quais a maioria dos jovens não conseguia corresponder economicamente. A ideologia do consumo acabava por incutir nessa juventude a negação de sua própria condição, que passava a ser afirmada unicamente pelo poder de consumo.

Pasolini escreveu seus ensaios entre 1973 e 1975, refletindo de forma incisiva sobre a experiência histórica de uma Itália que participava da “última mutação antropológica milenarista” – o fascismo do consumo – resguardando muitas peculiaridades em relação aos países capitalistas avançados. Um país que, como nenhum outro grande país capitalista, possuía “uma tal quantidade de culturas particulares e reais”, onde o avanço tecnológico e industrial trazia em si aspectos especiais, às vezes inaceitáveis, em relação à realidade social e cultural italiana.

Consciente dessa ressalva, Pasolini previu: “é a experiência que viverão os países do terceiro mundo daqui a alguns anos”. Recusando e se revoltando contra essa transformação que a juventude – separada da geração de Pasolini por um salto no abismo – encarava como natural, o corsário Pasolini dirigiu a sua crítica e mesmo o seu ódio cósmico não contra essa nova juventude tornada infeliz e neurótica, mas sim contra os promotores dessa infelicidade: os novos fascistas, responsáveis pelo genocídio cultural próprio ao desenvolvimento do consumo, e aos seus cúmplices, isto é, todos os intelectuais que, diante de tal genocídio reagiam – racistamente – com a indiferença dos “realistas” e “pactualistas”, quando não aplaudiam com satisfação o genocídio cultural disfarçado ideologicamente de “inclusão social”.

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Publicidade da Coca-Cola para a Copa 2014 no Brasil.
Os ensaios corsários de Pasolini não evocam em nós alguma relação familiar com o triunfalismo retórico do Brasil atual, do Brasil maior, do Brasil publicitário da Copa de todo mundo?
Um artigo recente publicado no El Pais indica que, no Brasil, 55% dos jovens entre 18 e 30 anos recebem salários de até 1.020 reais por mês, e infere: “os filhos da classe C mudarão a cara do Brasil”, apontando uma “pequena mostra da inquietude desses jovens”: a sua atitude nos protestos de junho passado. “Muitos desses jovens que cunharam slogans criativos e subversivos provinham da periferia das grandes cidades e são filhos dessa classe C que já exigem mais do que os pais” – diz a matéria.

Não se trata, como já foi dito, de simplificar a questão até a mera negativa do direito de inclusão, na esfera do consumo, de classes inteiras antes excluídas. Mas, antes, de buscarmos, à luz de Pasolini, pensar sobre os efeitos e o impacto – já muito visíveis – de um desenvolvimento desacompanhado de autêntico “progresso”, da aculturação extremada do consumo que implica consequências das quais poucos têm clara consciência. O Brasil vive hoje uma configuração histórica que vivifica retóricas desenvolvimentistas e que, se por um lado gera conquistas apreciáveis, por outro, acarreta violências de diversas naturezas, sobretudo contra a juventude, e traz consequências sociais e culturais injustificáveis. Aqui eu só vislumbro, em busca de interlocução, a abertura de possíveis debates – não aprofundei a argumentação e as ideias principais que constituem o texto são de Pasolini, embora as ideias também estejam aqui muito resumidas. Vale ler com atenção critica os ensaios corsários.

Os ensaios de Pasolini, aliás, foram reunidos por Michel Lahud, sob o título “Os jovens infelizes – antologia de ensaios corsários”, pela Editora Brasiliense. O livro encontra-se, sintomaticamente, esgotado no Brasil há anos. Comprei-o num sebo.

Fonte: arte_documento

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