PICICA: "A multidão foi ao deserto é um livro que exala paixão pela resistência, resultado da práxis
de um “pensador-manifestante” (p. 9). A cartografia das lutas e
microinsurreições é tecida em vinte textos: duas entrevistas, quatro
textos escritos em parceria e catorze publicados inicialmente em seu
blogue Quadrado dos loucos,
em que o autor articula literariamente o “campo das lutas e das
ideias”, “produzindo conhecimento nas lutas e para as lutas” (p.120),
produto de copesquisa."
Quando a realidade se solta dos esquemas
13/01/2014
Por Alex Regis
Por Alex Régis -
Resenha de CAVA, Bruno. A multidão foi ao deserto; as manifestações no Brasil em 2013 (jun-out). São Paulo: AnnaBlume, 2013. 156 pág.
A multidão foi ao deserto é um livro que exala paixão pela resistência, resultado da práxis
de um “pensador-manifestante” (p. 9). A cartografia das lutas e
microinsurreições é tecida em vinte textos: duas entrevistas, quatro
textos escritos em parceria e catorze publicados inicialmente em seu
blogue Quadrado dos loucos,
em que o autor articula literariamente o “campo das lutas e das
ideias”, “produzindo conhecimento nas lutas e para as lutas” (p.120),
produto de copesquisa.
Se
a narrativa captura por dentro um evento inscrito no tempo e espaço,
contextualizados serão igualmente os interlocutores que, durante os
acontecimentos, travaram debates analíticos e teóricos sobre os
desdobramentos múltiplos das manifestações. Parte da interlocução se
realizou com os pesquisadores colaboradores da rede Universidade Nômade (UniNômade brasileira), entre
os quais Giuseppe Cocco, Alexandre Mendes, Hugo Albuquerque, Bárbara
Szaniecki e outros, que mobilizam o arsenal teórico e analítico do
filósofo italiano Antonio Negri, para pensar as relações e processos
insuspeitados conformando as transformações do devir brasileiro e
mundial.
Pensando
o livro objetivamente, se pode afirmar que exala política, política em
sentido bruto; as formas pelo que razões, interesses e afetos
“selvagens” se convertem em resistências e lutas extrainstitucionais
face ao poder da ordem, do poder constituído.
Trata-se
de uma lúcida análise de conjuntura do Brasil contemporâneo!
Apresenta-se, portanto, não apenas como parte da política, é em si mesmo
um ato político. Como diria Betinho (2009:8), faz análise política quem
faz política, mesmo sem saber. Neste caso, o autor do livro, Bruno
Cava, sabe que seu texto é “uma arma de combate” pela qual articula
estrutura e conjuntura do Brasil contemporâneo, mapeando acontecimentos,
cenários, atores e correlações de forças explicitadas de forma aguda no
evento1 de junho.
A
imersão do autor no interior das lutas se comprova pela etnografia dos
acontecimentos, lugares, performances e seus atores. Sua militância se
homologa pelo risco assumido entre o ricochetear das balas e lançamentos
de gás lacrimogêneo acionados pela política da violência e
criminalização. Legitima-se pela expressão fenomenológica que o texto
apresenta; captando intuitiva e intelectualmente ritmos, movimentos,
sonoridades, cores e sensibilidades que atravessaram os corpos da
multidão enquanto experiência ontológica. Consciência e evento,
experiência e razão, campo de lutas e de ideias são mobilizadas
processualmente para constituição do texto, “um evento no evento”
segundo Giuseppe Cocco, alem de “um belo momento de luta”, sem
insinuar-se “vanguarda”.
É
assim que Cava apanha criticamente no interior das manifestações o
movimento real do campo político brasileiro; mapeia as lutas e suas
respectivas agendas, táticas e estratégias; registra as artimanhas do
poder dominante com suas formas de controle e captura dos poderes que
colocam a “terra em transe”. Sua análise corresponde a uma
desnaturalização de um Brasil “Maior”, realizada por um mosaico de
micronarrativas tecidas “por dentro” das manifestações, no calor das
lutas e no sofrimento de corpos que não apenas resistiam a um “choque de
ordem”, mas igualmente denunciavam as rachaduras, contradições e
conflitos de um Brasil escravocrata, racista e colonial. Sim! Este livro
se fez nas lutas e pelas lutas e trata, sobretudo, das relações e
tensões do poder constituído contra o poder constituinte.
Cava
deixa claro que o ciclo de lutas atacou frontalmente não apenas a
imagem superlativa de uma Brasil “para inglês ver” mas, sobretudo, a
máquina representativa, responsável por operacionalizar uma democracia
mesquinha de baixa intensidade, capturada pela lógica econômica que
regula, pacifica e converte os votos e zonas eleitorais em territórios
onde os fluxos de capital devem circular com segurança.
Evidência
que ciclos de protestos e indignações não são particularidades de
países que estão inscritos em crises econômicas e financeiras, que
existe um “fator global” em cena, disparado pelas revoluções árabes em
2011 (p. 51). Segundo Cava, as manifestações no Brasil “se inserem no
ciclo global de lutas insurrecionais e constituintes” (p. 81). Lutas e
microinsurreições podem igualmente ocorrer em momentos de expansão do
capital, de crescimento econômico e inclusão social. Aliás, segundo o
autor as manifestações também expressam um revolta com um certo tipo de
inclusão (p. 109). Resumidamente, Cava sugere, captando os sentidos em
mudança, que a “realidade está solta, sem gentileza pros esquemas”
(p.46; 56; 55), por isso a mídia corporativa com seu arsenal de
jornalistas e os partidos tradicionais erraram amplamente na explicação
do evento.
A
multidão de junho em sua retroalimentação entre redes e ruas atravessou
o Brasil de Oiapoque ao Chuí num contexto de relativo crescimento
econômico, baixas taxas de desemprego e forte inclusão social, realizada
na última década que criou as condições para emergência da “nova classe
média”; “monstro” forjado pelo lulismo, seu
melhor produto e pior pesadelo, que de repente ousou “querer mais” e
saiu às ruas, gerando incompreensão e perplexidade da direita à
esquerda. Estas, impossibilitadas de ler a multidão de junho (p.
43;78;106), trataram imediatamente de desqualificá-la (p. 86),
criminalizá-la. Da mobilização produtiva de caráter econômico
originou-se por dentro das políticas oficiais uma criativa mobilização
produtiva da multidão de pobres, emergentes e bárbaros que ousaram não
apenas dinamizar o mercado interno (atenuando o impacto da forte crise
que atingia a Europa e os EUA), mas também abalar o mundo político
brasileiro, dinamizando igualmente as condições históricas e políticas
para a mudança social.
O
livro está recheado de intuições e lampejos teóricos que transbordam de
texto em texto, contudo, para finalizar a presente resenha, cabe
sugerir o que seria o argumento central do conjunto de textos: que o
ciclo de lutas, protestos, tumultos e resistências se inscreve em um
contexto de “constituição selvagem” ainda em curso, uma mudança
subjetiva de larga escala nascida do crescimento econômico (p. 11) e
caracterizada pela nova composição social brasileira (p. 106) que, em um
certo momento de sua ascensão, cansou das múltiplas e naturalizadas
violências e humilhações de que seu corpo ainda é objeto; uma violência
seletiva, “cristalizada no ônibus, no metrô, no hospital, na escola, na
arquitetura” (p .103), na atuação da polícia que mata, enfim, nas
operações de higienização, remoção e expropriação explicitadas em um
projeto de cidade que privilegia grandes projetos e eventos em
detrimento do trabalhador metropolitano. Sim! Os corpos da multidão se
chocam contra um projeto de cidade (p. 59), contra um estado distante da
composição social, “incapaz de comunicar-se, de ser perpassado desde
baixo” (p. 117) e que prossegue bloqueando perspectivas de vida,
ampliação de liberdades.
A
mudança na esteira das manifestações de junho converteram-se em novas
relações entre Estado e sociedade, mas impactaram especial e
irreversivelmente a percepção política de toda uma geração,
traduzindo-se numa mudança em curso da cultura política brasileira que
apesar de funcionar pela “pacificação do dissenso” e “esquemas de
governabilidade” nada transparentes, agora se vê mexida “por forças
subterrâneas e míticas, até então mantidas escravas e domesticáveis (…)
que desobstruíram forças, desataram conflitos, desencadearam
possibilidades. Nascidos de pressões insuportáveis, pelas quais se movem
e vivem as tensões sociais, políticas e econômicas do novo Brasil e os
‘custos do progresso’. Foi como se placas tectônicas tivessem se mexido,
transmitindo abalos em vários níveis, mudando a paisagem,
reconfigurando espaços e temporalidade da políticas brasileira”
(CAVA,2013, p.134).
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REFERÊNCIAS
SOUZA, Herbert J.S. Como se faz análise de conjuntura. 3ª Edição. Petrópolis, RJ:Editora Vozes, 2009
NEGRI, Antonio.Kairós, Alma vênus, Multitudo: Nove lições ensinadas a mim mesmo. Rio de Janeiro: DP&A,2003
NOTA:
1 Kairós, prolegômenos do nome comum.
In: NEGRI, Antonio. Kairós, Alma vênus, Multitudo, p. 39. Evento
significa um temporalidade histórica onde o “nomear e coisa nomeada
nascem ao mesmo tempo. Ambos são chamados a existir: nesse sentido, o
nome e nome comum constituem um evento.
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