PICICA: "Não há o que estranhar no dilema de setores da elite nacional frente ao
mais anarquista dos atos da contemporaneidade à brasileira. Impossível
de camuflar, tal “estratégia de libertação urbana” evidencia uma nova
forma da luta de classes, em pura e, ao mesmo tempo, bruta discriminação
econômica, social, étnica e até estética. Ao judicializar os encontros
dessa juventude, orquestrados via redes sociais, sem identificar como
capitalizá-los, criminaliza-se a pobreza."
A face invisível dos “rolezinhos”
Foto: Epitácio Pessoa/Estadão
Jovens da periferia promovem “occupy shopping” no Rio e São Paulo
A face invisível dos “rolezinhos”
Albenísio Fonseca
Vendo o quanto tantos ficaram na
superfície do fenômeno dos “rolezinhos” – mobilização de jovens
moradores de áreas periféricas em shopping centers do Rio e São Paulo –
surfando na crista da onda sem ousar um mergulho mais profundo, vale
refletir a questão sob a ótica não apenas do consumo, mas sob as faces
políticas da excludente ideologia do consumo e da crítica à sociedade do
espetáculo.
É inevitável partir da constatação de que
a horda excluída também quer fazer valer o direito ao prazer do
fascínio produzido em série e poder desfilar o glamour das marcas e seus
mil e um acessórios “trade company” nestes templos das mercadorias ou
“bunkers” do consumo. Não se dá conta de constituir-se uma espécie de
subproduto da sociedade da abundância aparente (a sublimar seu viés
proletarizante) – que nos transveste, excita e captura.
Não há o que estranhar no dilema de
setores da elite nacional frente ao mais anarquista dos atos da
contemporaneidade à brasileira. Impossível de camuflar, tal “estratégia
de libertação urbana” evidencia uma nova forma da luta de classes, em
pura e, ao mesmo tempo, bruta discriminação econômica, social, étnica e
até estética. Ao judicializar os encontros dessa juventude, orquestrados
via redes sociais, sem identificar como capitalizá-los, criminaliza-se a
pobreza.
Não é meramente o espaço privado e
supostamente público que se pretende interditar à circulação dos
coletivos de jovens pobres e negros no universo refrigerado do império
da moda: é o próprio território urbano de áreas nobres que se converte
em locais de acesso proibido, em evidente segregação social, sob
repaginado “apartheid”. Os “rolezinhos”, do mesmo modo, invertem a seta
da “gentrificação” (enobrecimento) em voga.
Contra a mentalidade escravocrata ainda
reinante, a “nova senzala” vinda das periferias quer desfrutar o sabor
da “coca-cola, subway e Mcs” na Casa Grande. As meninas sacolejam bolsas
assinadas por Louis Vuitton. Os garotões trazem gravada a moda surf na
camiseta Mahalo e a estampar nos bonés: “fuck you”. Desembolsam suas
rendas a caminhar firmes sobre Nikes, Adidas, Asics, Olympikus,
indiferentes à farta exploração da mão de obra – na Índia, Paquistão ou
China – embutida na produção de tais mercadorias.
“Ama teu rótulo como a ti mesmo”, sim,
Joyce, diriam em paródia à estipulação cristã. Mas, ao levar o desejo a
sobrevoar as asas da história, o que os “rolezinhos” denotam é uma
desesperada e ingênua busca de visibilidade que, afinal, atenta contra a
ordem e a assepsia da mentalidade pequeno-burguesa pretensamente
hegemônica, no equívoco de que o acesso ao shopping constitua-se em
acesso à cidadania. O verdadeiro, desde há muito, foi convertido, caro
Débord, em um momento do falso.
Criados sob a segurança e a facilidade de
encontrar tudo no mesmo lugar, aliando os conceitos de modernidade e
progresso, os shopping converteram-se desde meados dos anos 1980 em
locais privilegiados para compras e lazer. O modelo foi importado dos
Estados Unidos e implantado nas cidades brasileiras sob os mesmos
critérios e contornos da origem. Seus proprietários, geralmente, são
grandes grupos de investidores, construtoras ou holdings.
O maior é o Aricanduva, em São Paulo, com
425 mil m². No Rio, o Center Norte tem 245.028 m². Na Bahia, o Salvador
Shopping tem 82.500 m². Em 2013, as vendas do setor cresceram 10,65% e o
faturamento alcançou R$ 119,5 bilhões. Em 2012 havia 495 shopping no
país, quando apresentaram uma circulação média de 398 milhões de
visitantes mensais. Novos 38 empreendimentos foram inaugurados em 2013,
outros 40 estão previstos para 2014, segundo a Associação Brasileira de
Shopping Centers. O setor contempla cerca de 900 mil empregos diretos.
Sem dispor de capital cultural, acesso a
espaços de lazer, oferta de empregos e serviços públicos dignos,
notadamente em educação e saúde, isto é, frente à ausência do estado,
essa parcela de jovens a irromper em rolés segue entorpecida pelos
efeitos sedutores e ilusionistas da publicidade. Todavia, de modo
inequívoco, os pobres já estão inseridos na lógica dos centros
comerciais: Constituem o corpo de serviçais encarregados da faxina dos
corredores, toilettes e na segurança terceirizada.
O espetáculo submete a si os homens, depois que a economia já os arrasou completamente. Em todo esse happening
juvenil impelido pela cultura de massa, paciência, Hamlet, agora, “to
be or not to be, that is the fashion”. Mas, afinal, com que roupa eu vou
ao “rolezinho” que um enorme grupo, pelas redes sociais, me convidou? #
Fonte: Blog de Albenisio
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