janeiro 31, 2014

"Agência Pública luta pelo bom jornalismo", por Mauro Malin

PICICA: "Natalia Viana é uma jornalista que desde o início não se acomodou com o que lhe era oferecido pelo mercado e por outras circunstâncias. Foi uma das fundadoras, em março de 2011, da Pública – Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo. Define essa iniciativa como uma forma de contribuir para fomentar e melhorar o jornalismo independente praticado no país."


ENTREVISTA / NATALIA VIANA

Agência Pública luta pelo bom jornalismo

Por Mauro Malin em 28/01/2014 na edição 783



 
Natalia Viana é uma jornalista que desde o início não se acomodou com o que lhe era oferecido pelo mercado e por outras circunstâncias. Foi uma das fundadoras, em março de 2011, da Pública – Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo. Define essa iniciativa como uma forma de contribuir para fomentar e melhorar o jornalismo independente praticado no país.

Nesta entrevista, feita em setembro de 2013 e atualizada no corrente mês de janeiro, ela lamenta que “o debate sobre a nossa mídia tenha chegado a um nível que hoje beira o tribal.” Explica: “Crítica aos grupos de mídia, à Globo, à Record, etc., eu acho admissível. O que eu acho inadmissível é os manifestantes atacarem jornalista que está ali na cobertura. Jornalista na rua está querendo mostrar alguma coisa de errado.”

Natalia estabelece uma divisão radical entre jornalistas/jornalismo e empresas jornalísticas. Seu postulado parte da necessidade que essas empresas têm de obter lucro, o que as levaria a investir pouco em reportagens de fôlego, de uma categoria que se convencionou chamar jornalismo investigativo. É o que faz a Pública, mediante financiamento de instituições como a Fundação Ford, também financiadora do Observatório da Imprensa, e, agora, crowdfunding (financiamento coletivo).
A seguir, a entrevista.

Reescrevia releases

Você me disse que não tem experiência em redação de grandes jornais ou revistas.

Natalia Viana – Quando me formei, em 2001, estava muito desiludida com a profissão. A faculdade ditava regras e modelos: “É assim que você deve fazer”. E eu nunca me dei bem com essa coisa de padrão.

Eu tinha desistido de jornalismo. Fui trabalhar como frila na área de livros infantis da Editora Ática. E minha melhor amiga passou no Curso Abril. Ela adorou o Curso Abril e eu fiquei morrendo de inveja dela. Falei: vou atrás disso. Comecei a mandar currículo e acabei indo trabalhar no site Terra. Era editora de um canal de notícias culturais chamado São Paulo Virtual. Mas era um pouco chocante. Porque eu só reescrevia releases e publicava. O dia inteiro na Berrini, naquele prédio horroroso, não fazia mais nada, não tinha nem tempo de ir ao cinema, não fazia o menor sentido. Eu, desesperada, chorava todos os dias no banheiro. Até que um dia eu soube que uma estagiária da Caros Amigos ia sair. Eu já era formada, mas fui lá conversar com o Serjão (Sérgio de Souza). Ele disse: não posso te pagar o salário que você tem. Posso te pagar R$ 150 por mês. “Eu quero aprender jornalismo.” “Então venha, que eu vou te ensinar.” 

Escola da Caros Amigos

Eu aprendi jornalismo na Caros Amigos. Fiquei lá durante quatro anos, depois fui fazer mestrado de radiojornalismo em Londres. Foi então que me tornei colaboradora de grandes jornais. Mas desde que eu entrei na Caros Amigos fiz frilas para o Estadão, a Abril – Claudia, Capricho, Superinteressante, Vejinha (Veja São Paulo). Como eu não ganhava muito, sempre fiz muito frila. Mas nunca trabalhei fixa numa dessas redações.

Quem mais está com você na iniciativa chamada Agência Pública?

N.V. – As criadoras somos eu, Marina Amaral e a Tatiana Merlino, que saiu ainda no primeiro ano. A Marina foi fundadora e dona da Caros Amigos durante dez anos. Saiu em 2007. É, na minha opinião, uma das maiores jornalistas do Brasil. A Marina é fantástica. E é uma jornalista mais experiente, trabalhou em tudo quanto foi redação: Jornal da Tarde, Folha de S. Paulo, TV Cultura. Nós duas aprendemos jornalismo com o Serjão e temos uma visão parecida do que é jornalismo.
Vinda de Londres, um pouquinho antes de fundar a Pública eu estava trabalhando com o Wikileaks. Consegui então fazer algumas coisas que são tendência: o jornalismo sem fins lucrativos que fazemos é um modelo que existe em vários lugares, mas que estava crescendo na época, e continua. Começou nos Estados Unidos, com o Center for Investigative Reporting, que faz jornalismo de interesse público, nos anos 1970 e ganhou um fôlego enorme com o ProPublica, que é um entre mais de cem existentes nos EUA por causa da tendência dos jornais, sobretudo comerciais, de fazer menos esse tipo de jornalismo, porque é custoso... Quer dizer, não é custoso, é trabalhoso, leva tempo, e não é tão lucrativo.

Eu não diria que os jornais não querem fazer isso. Eles fariam tanto quanto possível, para dar furos, para ter prestígio, o que faz diferença, comercialmente.

N.V. – Fariam. Tanto quanto o possível dentro do modelo de negócios deles. Aliás, eu acho que houve um avanço no jornalismo investigativo nas grandes redações no Brasil nos últimos anos. Mas ainda é uma quantidade ínfima se comparada ao total do jornalismo que é feito, e menor ainda se pensarmos na quantidade que é necessária para de fato informar as pessoas sobre questões públicas. 

Melhorar o padrão

O jornal não é uma empresa exatamente como qualquer empresa. Nunca. Ele tem um lado inextirpável de serviço de interesse público. 

N.V. – Claro. No entanto, eu vejo que, pelo menos nos últimos anos, quando tenho acompanhado mais, entrado mais nessa discussão, os jornais muitas vezes se portam como empresas lucrativas, é onde colocam sua força de trabalho.

Como se pode, por meio do trabalho de vocês, contribuir para melhorar o padrão geral de jornalismo, o que é muito diferente, por exemplo, do que faz o Ninja? O Ninja não tem compromisso com a evolução do jornalismo. “Vou fazer uma narrativa independente”. Esse “independente” eu questiono, e questiono o “jornalismo”, porque no Ninja não tem edição e não existe jornalismo sem edição. Não é que não se possa fazer jornalismo sem edição, é que não se deve, porque nesse caso se abre caminho para qualquer coisa ganhar foros de jornalismo, de notícia verdadeira, e para qualquer falsário plantar o que quiser, fazer terrorismo, afirmar que tem certeza de que o PCC vai explodir um shopping no fim de semana, como uma moça fez por e-mail, ingenuamente, alguns anos atrás...

N.V. – ...mas mesmo com edição passam algumas coisas que não são realmente informativas, ou fatos verdadeiros...

...e a outra coisa do Ninja é “ação”. Entrou aí para justificar que a pessoa do Ninja é ativista. O Ninja não responde às grandes indagações que eu tenho, muito mais difíceis, uma batalha para melhorar a mídia jornalística em geral, mais difícil do que você sair por aí com um celular fotografando ou filmando.

N.V. – Olha, eu nem acho que é esse o propósito deles. Mas acho o Ninja necessário. Aliás, mais que isso: O Ninja é uma realidade, está aí, e só existe porque cumpre um papel. E eu gosto desse papel. Acho que esse tipo de jornalismo mais ativista tem sim seu mérito, traz informações que, embora parciais, muitas vezes são importantes. Quem está na internet está buscando não uma fonte, mas dezenas de fontes ao mesmo tempo. É aí que vai se construindo a notícia, a informação hoje em dia. Um jornalista amigo meu definiu muito bem isso outro dia: a internet é uma conversa. É completamente outra lógica em relação à era do auge da indústria da informação. Mudou. 

Divórcio

Volto à pergunta original: como vocês contribuem para o aprimoramento do jornalismo?

N.V. – Nossa batalha é pelo jornalista e pelo jornalismo. Tem uma coisa que eu acho muito importante falar. Eu vejo muito separados o jornalista e o jornalismo dos meios de comunicação e dos donos deles. E daí vem a crítica que eu estava fazendo. Minha experiência, e a da geração que se formou comigo, é que não se trata bem o jornalista.

Mas não tem mercado, tem escola de jornalismo em excesso.

N.V. – Mas não é só que não tem mercado.

Não tem mercado para os 20 melhores que saem da PUC a cada ano.

N.V. – Tem. Tem assessoria de imprensa.

Isso não é jornalismo. Digna profissão, mas não é jornalismo.

N.V. – Não é jornalismo, concordo. Mas todo mundo que se formou na PUC comigo teria condição de ir para a grande imprensa, e alguns foram. Imagina! Tem um monte de gente que foi para tudo quanto é lugar. Trabalham para caramba, não têm liberdade.

Todas as redações que eu conheci eram draconianas e estúpidas.

Compressão salarial

N.V. – Mas havia uma diferença. Havia um pagamento decente.

Mas tem que ter.

N.V. – Não, não existe.

Como assim?

N.V. – Não existe bom pagamento. Eu sei, pela minha experiência prática, que as pessoas da minha idade que trabalham com jornalismo ganham muito mal. Qualquer pessoa que entra nos grandes jornais no Brasil ganha R$ 2,5 mil, R$ 3 mil. Quem ganha mais, ganha R$ 4,5 mil, R$ 5 mil. Isso em São Paulo. Tem editor de revista ganhando R$ 6 mil... 

É muito pouco.

N.V. – Eu sei que existe uma cultura meio malévola da redação, que eu não vivi, e nem sei se continua, mas havia duas coisas, acho. No período da redemocratização, estar num jornal significava estar lutando pela melhoria do país. Mesmo que se ganhasse pouco.

Isso é muito importante, faz muita diferença em relação a hoje.

N.V. – Houve uma deterioração. Há nas redações muitos jovens considerados descartáveis. E o pior é que eles não estão ali por uma “causa”, porque os jornais deixaram de ser a “voz do povo”, a voz da democracia, a voz da vanguarda. Essa é a questão. As marcas envelheceram. 

Em qualquer situação de trabalho onde se tenha oferta intensiva de mão de obra o salário vai cair. Outra coisa é que a escola de comunicação não ensina. O que ensina é trabalhar na redação.

Jornalismo investigativo

N.V. – Também acho. Sou contra a exigência de diploma. O que acontece? Tem uma certa massa de jornalistas que se formam. Tem muita gente, dentro e fora das redações, que gosta e quer fazer jornalismo investigativo, jornalismo de interesse público, aprofundado. Reportagens, investigações. Não é jornalismo cosmético.

Esse nome é um equívoco de tradução: “investigative journalism”. Basta dizer jornalismo. Se não é investigativo, não é jornalismo.

N.V. – Não concordo, não concordo! Por exemplo, tem o cara que, acabou o jogo, transmite a informação, é jornalismo, sim, é notícia. Notícia é jornalismo. Se você eliminar tudo que não é investigativo do jornalismo, não sobra muita coisa. “Notícia investigativa” eu nunca vi. Acho que jornalismo investigativo é um tipo de jornalismo. Que exige um tipo de jornalista. Não é qualquer jornalista que tem a paciência de ficar olhando pilhas e pilhas de documentos, como a Marina está fazendo agora com as acusações de espionagem da Vale, por exemplo, para entender o que aquilo significa. E muitas vezes é um trabalho extenuante, obsessivo. E chato. Tem gente que acha que é a coisa mais aventurosa do mundo. Não. Às vezes tem que trabalhar com tabelas e bancos de dados, ficar analisando tabelas e mais tabelas para encontrar sentido naquilo, ou ficar ligando dez, vinte vezes para conseguir uma informação ou convencer a pessoa a dar entrevista.

Então, nossa missão na Pública é incentivar os jornalistas que querem fazer esse jornalismo, de modo geral. A Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) faz um trabalho muito legal de treinamento. Mas nessa nossa missão tem uma questão que você colocou: se não tem mercado, se mesmo quem é bem-treinado não tem tanto espaço, às vezes por divergência ideológica, às vezes por interesse econômico empresarial que interfere na decisão de publicar ou não aquela matéria... Às vezes não tem tempo, não tem espaço para aquilo, o jornalista tem que produzir cinco ou seis matérias num dia e não pode ficar parado naquilo. Então, precisamos criar espaço para esse jornalismo. 

Nesse sentido, além de produzirmos uma rede que republica nossas matérias, incluindo veículos tradicionais, também fomentamos, damos bolsas para jornalistas fazerem esse tipo de trabalho. Ampliando o espaço para esse tipo de jornalismo, também ajudamos a melhorar o jornalismo de modo geral. Estabelecendo claramente uma diferença entre os jornalistas, o jornalismo, de um lado, e a imprensa, os donos de veículos, de outro. 

Regulação

Toda vez que se discute alguma regulação da mídia tem aquela... “Ah, é um ataque à liberdade de imprensa.” Na maioria dos casos, essa reação parte de empresas.

A imprensa, jornal/revista, impressa ou digital, não tem que ter nenhuma regulação, só a Constituição e a legislação infraconstitucional. As empresas, enquanto tais, sim: problemas trabalhistas, tributários, todos os problemas que uma empresa tem.

N.V. – A propriedade cruzada é uma coisa típica de empresa e não de imprensa.

Propriedade cruzada pode ou não ser considerada algo grave. Nos Estados Unidos acharam que era, proibiram. Aqui, não acharam, não proibiram. Claramente, estamos falando principalmente da Globo, mas de outras empresas também.

N.V. – Mas é uma questão de empresa, não de imprensa.

Entra na questão do espectro das concessões de comunicação de rádio e televisão, porque o espectro não é ilimitado. É obrigatório regular, sempre foi regulado. Fundar jornais não pode ter nenhuma limitação. Vai lá, funda. Se vender o produto, se convencer alguém a financiar – é caro, sociológica e economicamente tem que ser viável. No fundo, iniciativas como a Agência Pública acabam influenciando a grande imprensa. E isso é muito importante, porque vai chegar ao povo, ou à parcela que consegue ler jornal.

Republicação

N.V. – O leitor de um texto meu em inglês no The Nation sobre a Pública, era até americano, comentou em inglês: “Que bom, uma infusão saudável de competição dentro do jornalismo brasileiro.” Eu não vejo a Pública como competidora, principalmente porque trabalhamos muito com veículos de imprensa. Tudo que publicamos é em Creative Commons, é de livre reprodução, e temos uma unidade de republicação que faz relacionamento com os jornais para que eles usem esse material.

Como está indo a experiência de republicação?

N.V. – Superlegal. Entre nossos republicadores estão o Terra, o IG, o Yahoo, três dos mais importantes. O UOL republica algumas vezes, via algum site que é nosso republicador como o Opera Mundi. Além disso, temos parcerias de republicação em jornais impressos como o Jornal do Commercio, de Recife, o Diário do Pará, de Belém, a Gazeta do Povo, de Curitiba, O Povo, de Fortaleza, Diário do Tocantins, de Palmas.

Eles simplesmente republicam, não têm que pagar nada. O custo da matéria já foi coberto pela maneira como vocês se organizam. Como vocês conseguem financiar isso?

Amazônia

N.V. – Nosso financiamento principal vem da Fundação Ford, da Open Society Foundations. Isso é o básico, pequeno. E temos projetos específicos financiados por outros. Por exemplo, em 2012 fizemos três investigações longas na Amazônia. O foco eram os grandes investimentos na região, muito além de Belo Monte. Mandamos uma dupla de repórteres passar 20, 30 dias no Tapajós, outra para o Madeira, onde estão as hidrelétricas, e a Marina Amaral, nossa diretora, ficou responsável pelo Sul do Pará. Foi investigar a mineração da Vale. Isso rendeu uma série extensíssima chamada Amazônia Pública. A série foi financiada por uma coalizão de fundações americanas chamada Climate and Land Use Alliance (Clua), que tem interesse nesse tema. Em todos os projetos e financiamentos da Pública, a regra é: eles não olham o que vamos produzir, não temos nenhum compromisso editorial. Às vezes tem uma cláusula formal a esse respeito, às vezes, não.

Depois de publicado, olham.

N.V. – Não, não olham.

Deveriam olhar.

N.V. – Não, nunca tem: “Ah, vocês deveriam ter falado disso ou disso...” Geralmente dizem: “Que legal, repercutiu, as matérias estão boas.” Por exemplo, para a Clua, que trabalha com clima e meio ambiente, o que interessa é levantar uma pauta que discuta os investimentos na Amazônia. Obviamente, eles têm essa agenda. Como vão usar isso, é problema deles. O material é público. Tudo que publicamos é público. Às vezes, as organizações têm interesse em levantar a pauta: “Olha, esse é um assunto importante de que ninguém fala.”

Eles deveriam olhar. Se você financia uma matéria que vai na direção oposta à que você imaginou, ou você estava muito errado, ou não entenderam a pauta. 

N.V. – Mas eles não sabem nem qual é a pauta. Para a Clua nós falamos: “Está acontecendo isso com as usinas hidrelétricas do Tapajós e do Madeira e a gente sabe genericamente o que acontece no Sul do Pará.” Não é uma pauta, é muito genérico. O repórter vai ficar lá vinte dias e vai produzir cinco matérias. Nós discutimos mais a quantidade de produção do que o que vai ser feito. Não dizemos: “Vamos desmascarar...” Não é assim. Eles não mandam mesmo na pauta. Se teve alguma coisa que contrariou o interesse dos financiadores, nunca...

Não é questão de contrariar o interesse. Estou pensando que eles têm que prestar contas. As pessoas dão dinheiro para eles. Como eles empregam o dinheiro?

Financiadores

N.V. – Nossa maior financiadora é a Fundação Ford. Ela é bastante liberal.

Mas ela fiscaliza o dinheiro.

N.V. – O dinheiro é fiscalizado. Nós prestamos contas das viagens, de tudo. A Fundação Ford tem uma reputação de nunca se intrometer nos projetos. O objetivo, a missão do projeto de mídia da Fundação Ford é ampliar a democratização dos meios de comunicação brasileiros. E ela vê que nisso a Pública tem um papel.

O Observatório da Imprensa é basicamente financiado pela Fundação Ford. E tem alguns anúncios, conseguidos via captação e devido à influência de pessoas que acham importante a atuação do Observatório e podem justificar essa programação de anúncios de acordo com as diretrizes das empresas onde trabalham.

Crítica real

N.V. – Claro. Vê-se que o Observatório da Imprensa é a única crítica real da imprensa. Há um monte de veículos que não criticam. Têm zero de crítica. É tudo corporativo.

E tem também a partidarização, que não funciona para melhorar o jornalismo. Pode-se ter até uma boa crítica a partir de uma ideologia, de uma tomada de posição política, mas não basta, porque vai obnubilar o lado criticável dessa opção política ou ideológica.

N.V. – Nesse sentido, o Observatório da Imprensa é um fórum plural para caramba, tem todo mundo que quer dizer alguma coisa.

É, sim. É tão plural que às vezes me dá raiva...

N.V. – Mas é bom ser plural! 

Não me refiro ao parti pris, mas à qualidade da crítica. Recentemente, fomos procurados por uma pessoa que desejava denunciar uma emissora de televisão que teria forjado um noticiário para promover uma telenovela. Um evidente absurdo. Eu rejeitei a “pauta”. Deu vontade de dizer à pessoa: podemos publicar, mas para denunciar esse tipo de acusação sem fundamento. Existem acusações delirantes a certos meios de comunicação.

Jornalista na rua

N.V. – Eu lamento profundamente que o debate sobre a nossa mídia tenha chegado a um nível que hoje beira o tribal. Sinceramente, crítica aos grupos de mídia, à Globo, à Record, etc., eu acho admissível. O que eu acho inadmissível é um manifestante atacar jornalista que está ali na cobertura. Jornalista na rua está querendo mostrar alguma coisa de errado.

Sempre. 

N.V. – Não sei se tem coisas exageradas, mas às vezes os veículos merecem. É uma tristeza o que a Veja, por exemplo, diz que é jornalismo. Aquilo desqualifica profundamente a profissão. Outro dia eu estava numa palestra no Rio Grande do Sul e um menino novo, que deve ter 21, 22 anos, ainda está na faculdade, disse: A Veja, historicamente, sempre foi uma revista de direita. Eu falei: Espera aí, a Veja foi fundada pelo Mino Carta, passaram por ali os melhores jornalistas brasileiros, ela teve uma posição progressista durante a ditadura, pelo menos no começo.

Ela foi progressista até o fim da ditadura. E mesmo depois. Quando o PT foi para o poder é que a coisa se complicou.

N.V. – O problema não é fazer um jornalismo de direita. É fazer um jornalismo pífio. Isso é ruim para a profissão como um todo. Acho que todo veículo de comunicação, tanto a Veja como a Pública, tem que estar muito consciente do seu papel. Quando nós da Pública dizemos que só fazemos reportagem, estamos brigando por algo que achamos que seja importante. Se falharmos na nossa missão, não só nós seremos prejudicados, mas aquilo que queríamos fazer avançar – o jornalismo investigativo. É claro que erros acontecem, mas adotar o jornalismo de má qualidade como regra é ruim para o jornalismo como um todo, tem um impacto. 

Crowdfunding

É toda essa intenção de melhorar. Agora, deixe-me perguntar: o crowdfunding está funcionando?

N.V. – Está tendo uma acolhida superlegal. Não tivemos nenhuma crítica. Teve muito boa recepção, nós rapidamente chegamos aos R$ 15 mil, hoje [10 de setembro de 2012] já estamos com R$ 25 mil, que é uma boa grana para uma iniciativa que nunca pediu dinheiro. A Pública sempre deu seu conteúdo de graça. E também outras iniciativas de jornalismo que já existiram no Brasil nunca pediram um dinheiro tão grande, fora documentários. O total que pretendemos atingir é alto, R$ 47 mil. Dois dias antes do prazo final, conseguimos alcançar essa meta, e a superamos. Chegamos a R$ 58.935. Foi muito bom porque com o dinheiro extra conseguimos doar mais duas bolsas para repórteres, então nesse momento temos 12 repórteres, financiados pelo público, e cujas pautas foram eleitas pelo público, correndo atrás de histórias sensacionais. Isso eu acho muito bacana, porque beneficia muita gente – o leitor, a Pública, o jornalista que quer ir atrás da suas pauta e não vê oportunidade no mercado industrial – o que não significa que não possa existir; é preciso encontrar uma maneira de viabilizá-lo. 

De onde veio esse dinheiro, geograficamente, sociologicamente.
 
N.V. – Veio mais de São Paulo. Eu não estudei as doações. Para chegarmos aos R$ 25 mil, 341 pessoas tinham doado e a média era de R$ 75.

Então está bom. Vocês estavam pedindo bem menos do que isso...

N.V. – A média está superlegal. 

Alguém deu “um caminhão de grana”, o que puxa a média para cima?

N.V. – Houve três doações de R$ 2 mil cada. De uma organização, de uma pessoa que quis permanecer anônima e de um jornalista americano com quem eu trabalhei num documentário. Ainda não estudamos o perfil das doações, mas pelo que vi, de gente que eu conheço, há uma grande maioria de jornalistas ou de estudantes de jornalismo. Que benefício é dado a quem doa? Poderá votar na reportagem e poderá acompanhar o processo da reportagem. Apela mais a querer se interessar por jornalismo. Por outro lado, no meio desse grande debate que já estava pulsante com a questão da internet e já foi forte na época do Wikileaks, e foi muito forte na época das manifestações [de junho e julho de 2013], principalmente com o fenômeno da Mídia Ninja, o que as pessoas perguntam? Isso é jornalismo, não é jornalismo? E: dá para fazer jornalismo fora da estrutura industrial, digamos, da estrutura de empresa? Dá para fazer jornalismo independente? E a nossa resposta, da Pública, é que dá. De que se precisa? Pensar em novas formas de produção e de financiamento. 

Primeiro, produção. O produto é virtual, não existe no papel, e também é integrado, fazemos bastante infográfico, um modelo que funciona na rede. E de financiamento. Eliminam-se os altos salários, o custo da estrutura, da administração. Todo mundo aqui é repórter, faz o que for preciso, porque é apaixonado por jornalismo.

Essa coisa de repórter na administração...

Começo, meio e fim

N.V. – Repórter não é o melhor administrador do mundo, é claro... Mas não tem a hierarquia tão rígida, nem o fatiamento da produção. Cada um pega a sua história e a faz com começo, meio e fim. Claro, não deixa de ter chefia de reportagem, de redação, edição, revisão, e agora, graças a Deus, fact-checking. Tem diferentes pessoas mexendo nos diferentes produtos, mas o começo, o meio e o fim são do repórter.
Quantas matérias vocês já fizeram?

N.V. – Centenas.

Em quanto tempo?

Fôlego

N.V. – Fazemos dois tipos de matérias. Tem reportagens que são mais investigativas, mais aprofundadas. De campo, ou com base em documentos que eram ou não muito conhecidos, ou secretos – temos parceria com o Wikileaks. Exemplo: matéria sobre como as mulheres do sertão do Piauí estão invertendo a ordem do domínio familiar porque elas é que recebem o Bolsa Família e decidem para onde vai o dinheiro. Isso está fazendo, por exemplo, com que muitas se divorciem dos homens que não as tratavam bem. Essa matéria teve mais de 12 mil compartilhamentos. Exigiu um trabalho de campo enorme. Outros exemplos: matéria sobre espionagem realizada pela Vale. Demorou quatro meses para ser feita. Matéria sobre gravuras rupestres que estão sendo roubadas – as pedras em que foram feitas estão sendo removidas – em São Gabriel da Cachoeira. Temos pelo menos uma dessas por semana, porque estamos com uma produção acelerada.

Desde dezembro de 2011 cobrimos Copa do Mundo numa perspectiva do que chamamos de jornalismo cidadão, porque as fontes são de baixo para cima. Entrevistamos muito os movimentos sociais para ver o que está acontecendo com o povo. Remoções: fizemos uma reportagem sobre isso. Camelôs que serão proibidos de vender na Copa. Legislação de segurança, trabalhista, todos os abusos que parecem estar agora realmente revoltando o povo, vimos cobrindo isso com matérias semanais. E também utilizamos muito os nossos parceiros de jornalismo investigativo como o nosso em outros países. No Peru, IDL Reporteros; no Chile, Plaza Publica e Ciper. Nos Estados Unidos tem um monte. Eles fazem reportagens robustas, nós traduzimos e publicamos. Contando-se que são em média duas por semana, desde o começo de 2013, é muita coisa.

Para um site, é uma produção muito pequena. Mas, como as nossas são “reportagenzonas”, elas têm um tempo muito diferente de amadurecimento, o quanto rodam na internet, o tempo que as pessoas gastam para ler, nunca de uma só sentada.

Um exemplo de reportagens grandes é o da revista piauí. Às vezes, disse recentemente Claudia Antunes (“Mais tempo, mais espaço“), pessoas mandam cartas comentando matérias publicadas meses antes.

Não perecíveis

N.V. – Nossas reportagens são muito pouco noticiosas e, por isso, também muito pouco perecíveis.
Do ponto de vista de uma visão de país e do exame de alguns pontos críticos da realidade brasileira atual, como democratização, redução da desigualdade, cidadania, eu poria também muito perto de tudo isso a questão urbana. Como vocês se colocam?

N.V. – Somos a favor de tudo isso!... Quando, em março de 2011, fundamos a Agência Pública, imaginamos que só seriam cobertos três temas essenciais para o desenvolvimento democrático do nosso país – Copa do Mundo, ditadura e tortura – a continuidade da tortura hoje –, e investimentos na Amazônia. Nosso horizonte é o avanço da nossa democracia. Nossa visão era que a maneira como essas três questões seriam cobertas discutidas pela sociedade iria definir se nosso país iria melhorar ou andar para trás.

Copa do Mundo

A reação à Copa do Mundo que veio em junho de 2013 mostrou que a mídia não estava cobrindo criticamente, porque a população estava indignada; que o governo estava agindo autoritariamente – só houve essa revolta porque estava na cara que não tinha havido consulta à população. Na Copa das Confederações, os estádios estavam guardados pela polícia contra o povo. Isso é simbolicamente aviltante. A reação a Belo Monte mostra que a população está interessada em discutir o que vai acontecer na Amazônia, por exemplo. 

Hoje queremos expandir esses eixos investigativos, como os chamamos; a questão urbana para mim é primordial, tem que ser coberta e discutida. Nossas cidades pioraram muito com o crescimento econômico porque ele foi basicamente consumo, e desse modo não se dá prioridade a que a cidade funcione, seja boa de viver. Isso em São Paulo sempre houve. Mas agora todas as grandes cidades brasileiras estão insuportáveis. Isso é falta de governo, de políticas públicas.

Como está o diálogo de vocês com as universidades, pesquisadores, cientistas? Ele existe?

N.V. – Está mal. Gostaríamos que houvesse mais. Fora seminários de que participamos, tem pouco. Mas estamos já há algum tempo com vontade de nos aproximar de escolas de jornalismo para, talvez, desenvolver projetos com as escolas.

São Francisco

P.S. em 28/1, 12h50: A primeira reportagem das 12 que foram financiadas e votadas pelo público conta como está a construção da barragem do São Francisco. A repórter Márcia Elisabeth Dementshuk viajou durante 10 dias para o eixo Leste da megaconstrução, e descreve  as obras e os problemas que elas vêm gerando para a população. 
A reportagem de Marta foi a oitava mais votada pelos 808 doadores do projeto de financiamento coletivo: http://www.apublica.org/Reportagem-Publica/portifolio/mais-votadas/
 
"Barrigada recentíssima"
 
P.S. 2, em 28/1, 21h30. O leitor Rodrigo Aguiar questiona a inexistência de referência a um erro cometido pela Pùblica (ver abaixo). Ele tem razão, mas é preciso levar em conta que a entrevista foi feita em setembro de 2013 e (mal) atualizada depois do dia dessa publicação, a respeito da qual Natalia Viana informa que ocorreu em 8/1 e suscitou editorial que pode ser lido em http://www.apublica.org/2014/01/aos-nossos-leitores-republicadores/ .
Fonte: Observatório da Imprensa

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