janeiro 22, 2014

"Um rolê no mundo de privilégios e exclusividades", por Clarissa Moreira

PICICA: "Privilégios e exclusividades na berlinda, quando rolezinhos rompem discurso das belas almas para testemunhar o diferente: a capacidade de contestar e eventualmente romper com um modelo majoritário responsável pelas mil violências cotidianas e insivibilizadas do dia a dia, conectadas qual vasos comunicantes para a repetição da ordem."

Um rolê no mundo de privilégios e exclusividades

21/01/2014
Por Clarissa Moreira


Por Clarissa Moreira, arquiteta, professora da UFF e UniNômade

Privilégios e exclusividades na berlinda, quando rolezinhos rompem discurso das belas almas para testemunhar o diferente: a capacidade de contestar e eventualmente romper com um modelo majoritário responsável pelas mil violências cotidianas e insivibilizadas do dia a dia, conectadas qual vasos comunicantes para a repetição da ordem.

mangueira
Foto: remoção da favela Metrô Mangueira, 8/1/2014


São muitas as situações corriqueiras que nos colocam, de algum modo, — e considero todos, aqui, no mesmo barco, — sujeitos à discriminação e maus-tratos. Até há pouco, as violências estavam “naturalizadas”, ou seja, quase imperceptíveis, num processo de subordinação ao sistema de privilégios. Muitos, no entanto, quase todo o tempo, se veem confrontados pela discriminação e humilhação — racial, de gênero, geográfica, educacional, forma física, idade etc — e violência moral, quando não diretamente física. De algum modo é humana, “demasiado humana”, a vontade de comprazer-se através da desqualificação do outro. Não avançaremos, contudo, sem uma solidariedade radical, uma que resulte do combate ao sistema de humilhação de uns e privilégios de outros. Isto não significa desconsiderar ou reduzir a força dos deserdados e oprimidos, de sua capacidade histórica de luta, sua tenacidade, sua enorme paciência e por vezes, mesmo, sua doçura e suavidade, no sentido de uma resistência feroz às coações desagregantes, que rompem ou esfacelam o sujeito e o coletivo. Quando falamos neles (ou em nossa própria experiência de discriminação), é comum os colocarmos na posição do fraco, quando o caso é bem o contrário. É forte aquele que resiste, é fraco — na dimensão ética e política — aquele que oprime.


Ilustremos com alguns casos:


 1. Mulher cheia de bolsas, com filho dormindo no colo, pedindo acesso mais ágil ao avião, por estar passando mal com o peso. Funcionário de empresa aérea diz que é impossível, os VIPS da classe executiva e primeira teriam de passar antes. Homens altos e fortes, com apenas uma malinha bem leve na mão, passam sem sequer olhar para o lado, treinados em desconhecer toda e qualquer necessidade fora do sistema de privilégios. Ninguém oferece ajuda para a mulher com o filho no colo, ela pertence à chamada “classe econômica”. Tentando chegar no outro acesso, perde as forças e precisa sentar no chão. (Por curiosidade, a empresa aérea é a Air France).


2. Correios – Rio de Janeiro. Aparentemente quem vai para envio de SEDEX tem prioridade sobre quem vai para o correio normal. Novamente a grana passa na frente, os demais mofam durante horas. Desde quando se permitiu este tipo de critério sobre todos os demais?


3. Isso tem a ver com o rolezinho, que reverte um estado de coisas onde asfixiamos, e que não recai só sobre os outros, mas vira-e-mexe sobre todos nós. Quem já foi olhado de cima à baixo em uma loja de grife, não importa a cor de sua pele, sabe do que se trata. Vivemos com isso como se fosse natural. O critério do privilégio para quem tem mais grana, poderes, fama etc, uma hora sobra para qualquer um, mesmo os que se sentem do bom lado da linha divisória.


4. Mas o que tem o rolezinho de tão estranho em relação ao rolezão nas ruas da cidade, reprimido com gás lacrimogênio e balas ditas não-letais? Sem dúvida, o movimento pode ser antropofágico/ assimilador/ ressignificador: obviamente atua noutra frequência. Mas insistir em opô-los, ou demarcar uma diferença total pela falta de contestação direta do consumo me parece uma estratégia já discriminatória. Será certamente utilizada para sublinhar o desejo de “integração” da famosa “nova classe média”. Mas o que mais importa, em último grau, é que são táticas de resistência, produtoras de diferença dentro do próprio movimento ou tática, e fora dela.


5. Lembrando um trecho do filósofo G. Deleuze, em Diferença e repetição, um trecho crucial quando se fala de diferenças e possíveis conciliações. Para Deleuze, o maior perigo é cair nas representações do que ele chama de “bela-alma”, que veria as diferenças como sempre conciliáveis e federáveis, longe das lutas sangrentas. Para o filósofo, quando a diferença torna-se objeto de uma afirmação correspondente, uma potência de agressão e seleção é liberada, o que destrói a estratégia da bela-alma e sua “boa vontade”. A diferença e os problemas e questões aí colocados determinam lutas ou destruições concretas onde o pensamento da diferença torna-se uma agressão, ao reverter todo um modo de pensar bastante arraigado baseado no idêntico, no semelhante, no modelo, no mesmo.


6. Mas com toda sua turbulência e tenacidade [e muitas vezes, com alegria e suavidade, como no caso dos rolés], há amor nessas lutas – amor e construção. 

Divulgue na rede

 

Fonte: Universidade Nômade

Nenhum comentário: