PICICA: "Privilégios e exclusividades na
berlinda, quando rolezinhos rompem discurso das belas almas para
testemunhar o diferente: a capacidade de contestar e eventualmente
romper com um modelo majoritário responsável pelas mil violências
cotidianas e insivibilizadas do dia a dia, conectadas qual vasos
comunicantes para a repetição da ordem."
Um rolê no mundo de privilégios e exclusividades
21/01/2014
Por Clarissa Moreira
Por Clarissa Moreira, arquiteta, professora da UFF e UniNômade
Privilégios e exclusividades na
berlinda, quando rolezinhos rompem discurso das belas almas para
testemunhar o diferente: a capacidade de contestar e eventualmente
romper com um modelo majoritário responsável pelas mil violências
cotidianas e insivibilizadas do dia a dia, conectadas qual vasos
comunicantes para a repetição da ordem.
Foto: remoção da favela Metrô Mangueira, 8/1/2014
—
São
muitas as situações corriqueiras que nos colocam, de algum modo, — e
considero todos, aqui, no mesmo barco, — sujeitos à discriminação e
maus-tratos. Até há pouco, as violências estavam “naturalizadas”, ou
seja, quase imperceptíveis, num processo de subordinação ao sistema de
privilégios. Muitos, no entanto, quase todo o tempo, se veem
confrontados pela discriminação e humilhação — racial, de gênero,
geográfica, educacional, forma física, idade etc — e violência moral,
quando não diretamente física. De algum modo é humana, “demasiado
humana”, a vontade de comprazer-se através da desqualificação do outro.
Não avançaremos, contudo, sem uma solidariedade radical, uma que resulte
do combate ao sistema de humilhação de uns e privilégios de outros.
Isto não significa desconsiderar ou reduzir a força dos deserdados e
oprimidos, de sua capacidade histórica de luta, sua tenacidade, sua
enorme paciência e por vezes, mesmo, sua doçura e suavidade, no sentido
de uma resistência feroz às coações desagregantes, que rompem ou
esfacelam o sujeito e o coletivo. Quando falamos neles (ou em nossa
própria experiência de discriminação), é comum os colocarmos na posição
do fraco, quando o caso é bem o contrário. É forte aquele que resiste, é
fraco — na dimensão ética e política — aquele que oprime.
Ilustremos com alguns casos:
1.
Mulher cheia de bolsas, com filho dormindo no colo, pedindo acesso mais
ágil ao avião, por estar passando mal com o peso. Funcionário de
empresa aérea diz que é impossível, os VIPS da classe executiva e
primeira teriam de passar antes. Homens altos e fortes, com apenas uma
malinha bem leve na mão, passam sem sequer olhar para o lado, treinados
em desconhecer toda e qualquer necessidade fora do sistema de
privilégios. Ninguém oferece ajuda para a mulher com o filho no colo,
ela pertence à chamada “classe econômica”. Tentando chegar no outro
acesso, perde as forças e precisa sentar no chão. (Por curiosidade, a
empresa aérea é a Air France).
2.
Correios – Rio de Janeiro. Aparentemente quem vai para envio de SEDEX
tem prioridade sobre quem vai para o correio normal. Novamente a grana
passa na frente, os demais mofam durante horas. Desde quando se permitiu
este tipo de critério sobre todos os demais?
3.
Isso tem a ver com o rolezinho, que reverte um estado de coisas onde
asfixiamos, e que não recai só sobre os outros, mas vira-e-mexe sobre
todos nós. Quem já foi olhado de cima à baixo em uma loja de grife, não
importa a cor de sua pele, sabe do que se trata. Vivemos com isso como
se fosse natural. O critério do privilégio para quem tem mais grana,
poderes, fama etc, uma hora sobra para qualquer um, mesmo os que se
sentem do bom lado da linha divisória.
4.
Mas o que tem o rolezinho de tão estranho em relação ao rolezão nas
ruas da cidade, reprimido com gás lacrimogênio e balas ditas não-letais?
Sem dúvida, o movimento pode ser antropofágico/ assimilador/
ressignificador: obviamente atua noutra frequência. Mas insistir em
opô-los, ou demarcar uma diferença total pela falta de contestação
direta do consumo me parece uma estratégia já discriminatória. Será
certamente utilizada para sublinhar o desejo de “integração” da famosa
“nova classe média”. Mas o que mais importa, em último grau, é que são
táticas de resistência, produtoras de diferença dentro do próprio
movimento ou tática, e fora dela.
5. Lembrando um trecho do filósofo G. Deleuze, em Diferença e repetição,
um trecho crucial quando se fala de diferenças e possíveis
conciliações. Para Deleuze, o maior perigo é cair nas representações do
que ele chama de “bela-alma”, que veria as diferenças como sempre
conciliáveis e federáveis, longe das lutas sangrentas. Para o filósofo,
quando a diferença torna-se objeto de uma afirmação correspondente, uma
potência de agressão e seleção é liberada, o que destrói a estratégia da
bela-alma e sua “boa vontade”. A diferença e os problemas e questões aí
colocados determinam lutas ou destruições concretas onde o pensamento
da diferença torna-se uma agressão, ao reverter todo um modo de pensar
bastante arraigado baseado no idêntico, no semelhante, no modelo, no
mesmo.
6.
Mas com toda sua turbulência e tenacidade [e muitas vezes, com alegria e
suavidade, como no caso dos rolés], há amor nessas lutas – amor e
construção.
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