PICICA: "“Rolezinho” na agência de emprego ninguém quer fazer, não é?
Esse tipo de argumento esconde um desprezo paradoxal pelas pessoas
comuns. Um desdém pela média dos humanos, pela maioria, que só pode
espelhar um desprezo profundo por si mesmo. Se muitas pessoas concordam
com isso é justamente por que elas fazem parte da média: são medíocres
como aqueles a quem criticam. E eles podem estar certos. Afinal a
humanidade não é uma objetividade boa, ou má. Ela é uma ideia subjetiva
que os humanos inventaram para atribuir um sentido (que fora de suas
limitadas margens de existências e ação) não existe."
O Rolezinho, o trabalho imaterial e a humanidade.
“Rolezinho” na agência de emprego ninguém quer fazer, não é?
Esse tipo de argumento esconde um desprezo paradoxal pelas pessoas
comuns. Um desdém pela média dos humanos, pela maioria, que só pode
espelhar um desprezo profundo por si mesmo. Se muitas pessoas concordam
com isso é justamente por que elas fazem parte da média: são medíocres
como aqueles a quem criticam. E eles podem estar certos. Afinal a
humanidade não é uma objetividade boa, ou má. Ela é uma ideia subjetiva
que os humanos inventaram para atribuir um sentido (que fora de suas
limitadas margens de existências e ação) não existe.
Muitos que repassam esse tipo de mensagem já
foram, ou estão desempregados. Muitos estão hoje sendo sustentados por
bons empregos públicos, por incentivos econômicos a todo o tipo de
atividade privada, que vem da riqueza coletiva que é impessoal e
(trans)geracional.
Muitas pessoas não trabalham atualmente porque o
trabalho necessário para manter as pessoas alimentadas, devido ao
acúmulo tecnológico de milhares de anos, é inferior as horas de vigília
de que dispõem os sete bilhões de humanos vivos.
Trabalhar hoje, no mundo ocidental é uma
atividade, cada vez mais lúdica, de promover lazer e diversão para cada
vez mais pessoas que podem se alimentar, mesmo estando ociosas. Nossa
razão concreta para existir não é mais o labor suado e cotidiano para
prover o necessário a subsistência. Hoje somos consumidores. E mais do
que consumidores de alimentos ou abrigo, consumimos energia gasta em
consumir bens imateriais. Consumimos conceitos com mais urgência e
avidez do que nossos antepassados consumiam pão.
No oriente, se a China decidir automatizar a
produção, a sociedade se desintegra pelos efeitos alucinantes da perda
do sentido de prover a vida pelo trabalho. Mas é um caminho sem volta.
Cada vez menos trabalho braçal humano será despendido para alimentar uma
parcela, cada vez maior de humanos.
O aumento da riqueza depende do aumento do
conhecimento e não de “mão de obra”. E o crescimento do conhecimento é o
efeito de milhares de anos de acúmulo de experiências humanas. Não pode
ser obra de nenhum ser humano individualmente, nem de um corpo de
cientistas isolados do conhecimento que as gerações passadas nos
repassaram.
Vivemos o limiar de uma crise ecossistêmica que
nos levará de volta a Idade Média ou para uma forma de existência
pós-humana. A superação dos atuais dilemas humanos são de uma ordem tal
que superá-los significa deixarmos de ser o que nos acostumamos a chamar
de seres humanos.
O Estado, o império da lei junto com a ideia de
estender para além da família e da tribo os frutos do trabalho humano,
nos levaram a considerar a humanidade caçadora coletora como selvagem.
No entanto, os traços de selvageria permaneceram latentes em nós, dando
os contornos e limites da história das civilizações humanas.
O espírito selvagem que nos leva a persistir na
vida, forneceu a tinta com que a Razão escreveu a história. E, ainda
assim, não pode haver Razão sem irracionalidade. Nossa metafísica
depende do paradoxo que costura nossa integridade. Nosso caráter é a
ambiguidade, nossa jaula é a liberdade. Uma metafísica humana será
marcada pela contradição.
Quando tentamos explicar o universo fundamental
das partículas elementares ou o universo das galáxias com seu brilho
ofuscante e seus Buracos Negros, paramos na dualidade onda/partícula. O
objetivo e o subjetivo são indistinguíveis. O que vemos e o que sentimos
são uma e a mesma coisa.
Mas a obsessão por unir o fundamental e o
essencial exige uma equação cuja a resposta não é humana. Não é possível
expressarmos o que será nossa mutação. A hibridização de humanos e seus
objetos já esteja nos modificando de uma forma que logo não fará mais
sentido perguntar pelo que seja moral ou ético. O que devemos, é o que
seremos.
Poderemos ser a memória de um legado que uma nova
espécie herdará. Poderemos ser lembrados como o elo entre os animais e
uma espécie inorgânica, ou biomecânica, que nos sucederá. Nada disso
contradita com as profecias das grandes religiões reveladas, nem com as
filosofias mais realistas que fomos capazes de forjar.
Talvez estejamos próximos de descobrir que a vida é
um fenômeno banal no universo. E essa descoberta terminará por
relativizar a própria condição humana, e a consciência que temos dela.
Que múltiplas outras formas de conhecer a si mesmo nosso universo pode
ter forjado? E em que recantos diversos deste universo imenso isto pode
estar acontecendo agora?
Não é que tudo o que aprendemos a nomear como
sentido e expressão do universo esteja errado. Não há erro na forma como
uma serpente ou uma baleia vêem o mundo de . A forma como uma formiga
percebe seu entorno não é errada. Todas são modos diferentes da forma
humana de perceber e se relacionar com seu meio.
E agora começamos a dar origem a uma forma de ver a
humanidade que já não é mais humana. Nem são apenas humanos os
organismos que vêem essa nova forma de percepção que estamos engendrando
como cognição mediada. Ao hibridizarmos o armazenamento e processamento
de dados, e nossas formas de interação social, uma nova forma de
percepção está sendo desenvolvida. A Internet está gerando um tipo de
ecossistema em que organismos não puramente biológicos estão
desenvolvendo formas de autonomia insuspeitadas.
De um lado elas reverberam por nosso sistema de
signos e nos modificam de formas que não podemos prever, nem controlar.
Por outro lado, podem engendrar uma espécie de Obsolescência
não programada. Uma perda de significado que torna irrelevante se o que
chamamos de humanidade retornará a Idade Média ou se tornará pós-humana.
Da mesma forma que alguns primatas não se tornaram
humanos. Permanecem entre nós como primos distantes. Temos uma origem
comum. Quem sabe nosso destino acabará por ser comum também.
Então, não pergunte porque os outros não querem ir a uma agência de emprego. Pergunte por que você se faz essa pergunta.
Referências
Depois de escrever este texto, fui buscar imagens
sobre o tema e encontrei referências mais organizadas e técnicas sobre o
tema deste meu micro-ensaio:
Considero este um indício da despersonalização
irrevogável da autoria que as atuais mudanças na produção de sentido de
forma hibrida entre organismos não biológicos e humanos estão
engendrando.
Uma referência de produção autoral não é mais
possível sem a ajuda de organismos não humanos (os motores de busca). O
que percebemos desde o século XX é uma paroquialização do
capital simbólico que permite o intercambio e a conversão desse tipo de
conhecimento em moeda de outros campos. Fora desse tipo de segmentação
das referências, a originalidade não habita mais o indivíduo. Ela é um
caráter e um atributo dos coletivos.
Fonte: HumanizaSUS
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