janeiro 24, 2014

"Revoltas antipemedebistas: o fim da redemocratização", por Bruno Cava

PICICA: "Descrente na capacidade de o PT e o governo Dilma escaparem da ideologia lulista, de sua incapacidade assumida em radicalizar o social-desenvolvimentismo e, finalmente, em desatar o nó górdio do pemedebismo vigente nas últimas três décadas, é nas revoltas de junho que o autor aposta muitas fichas. Mais do que evento em si, como primeira expressão gritada de uma nova cultura democrática em estado nascente, numa forma de vida baseada em conflitos abertos e explicitação das relações de poder, no agonismo tantas vezes recalcado pelo DNA autoritário da democracia constitucional brasileira. “Abriu um rombo na armadura pemedebista”. É irônico, porque as revoltas também exprimem o “lulismo selvagem”, o que mostra o quão distante estão o PT e seus ideólogos dos próprios efeitos que ajudaram a construir. A tão falada crise da representação, no Brasil, tem uma cara muito própria. Se as instituições não forem suficientemente ágeis em regenerar-se diante da enchente, poderão acabar engolidas pelo turbilhão democratizante e, de uma forma ou de outra, radicalmente transformadas. Nisso, apostamos."

Revoltas antipemedebistas: o fim da redemocratização
imobilismo

Resenha de NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento; da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Cia. das Letras, setembro de 2013. 204 pág.

Marcos Nobre volta ao fim da ditadura, nos anos 1980, para reconstruir a trajetória que nos trouxe aqui, nos impasses e dilemas da sociedade brasileira durante o governo Dilma. Recusando o paradigma das narrativas de formação do Brasil, tão canônicas na tradição acadêmica, sobretudo de certo uspianismo; o autor opta por um enredo mais conciso — preferindo antes organizar os acontecimentos e ritmar seu desdobramento político-histórico, a meramente enquadrar o real, segundo qualquer teleologia do povo brasileiro. Dessa forma, segundo o princípio da arma de Tchekov, escreverá um livro enxuto, na casa das 200 páginas, em que a escassez de conceitos e esquemas interpretativos explícitos decorre do próprio método. O objetivo é recortar complexidade do real e formular um subsistema com poder explicativo e potencial crítico, a fim de descrever “modelos abrangentes de sociedade”, e propor-lhe a transformação.

O fim da ditadura foi também o fim do nacional-desenvolvimentismo, e sua eterna obsessão em substituir importações e implantar um parque industrial e tecnológico à imagem e semelhança das nações desenvolvidas. Em razão de fatores internos e externos, agoniza a tentativa de estruturação capitalista baseada na ideia de um estado-nação forte, forjado pela aliança — mais ou menos oculta, dependendo do governo — entre uma emergente burguesia nacional e os setores intelectualizados e politizados da esquerda. À medida que o paradigma se torna obsoleto, as explicações pela via da formação do povo/nação/estado brasileiro, vacilantes na tensão entre modernização e emancipação, se tornam igualmente inadequadas. Já nesse momento, na década de 1980.

O ciclo do aço se encerra e dá lugar ao do silício, prefigurando outro tipo de capitalismo, o capitalismo cognitivo, integrado e globalizado. Nesse cenário, as insuficiências das relações produtivas no Brasil acentuam a crise política ao longo dos anos 1980, também muito abrasada pelas energias de transformação acumuladas nas lutas operárias, estudantis, camponesas, raciais e tantas outras que, em sua maioria, se aglutinariam no PT daquela época.

A transformação do capitalismo global é antes de qualquer coisa transformação das lutas do trabalho — a capacidade de organizar, mobilizar e agir politicamente, só que noutros termos. Exige-se, assim, renovação de formas e métodos, no nível de uma nova subjetividade política. Os conservadores se preparam para frear as mudanças. Diante da franja ameaçadora ao pacto social proprietário, oligárquico e racista; faz-se necessário lançar configurações institucionais que correspondam ao projeto da “transição lenta, gradual e segura” depois da derrota da ditadura. Como amortecer essas energias de transformação? Como lidar com as mutações na base da produção? Como mudar tudo para que nada mude?

A resposta do autor é: “pemedebismo”. A redemocratização acontece sob o signo do pemedebismo. O que não se resume simplesmente ao PMDB. Mas a lógica. A lógica sistêmica de funcionamento. O conjunto de táticas, dispositivos, consensos e etiquetas com que se tentam conter as forças transformadoras, as mobilizações sociais e as mutações do trabalho. Antes reunido para fazer a oposição institucional à ditadura, com o fim dela o PMDB degenera num discurso anódino e morno, que sucessivamente vai “naturalizando-se” na prática política. Pronto para apoiar iniciativas abstratas e slogans genéricos, mas sequiosamente recalcitrante para reagir e barrar qualquer tema concreto ou mexida no status quo. Encastelado como “condomínio de sócios”, o pemedebismo funciona pela defesa egoística da cota de cada um dos condôminos, das posições de poder. Funciona basicamente por  meio de decisão negativa, isto é, exercendo vetos seletivos, para evitar o ingresso de novos sócios, barrar propostas em assuntos críticos, e acima de tudo impedir que essa lógica de barragem se explicite. Os vetos e bloqueios devem acontecer de bastidor, na maciota, sempre encobertos pelo bom tom do “consenso”, pela aparência pacífica e conciliadora de quem só quer trabalhar pelo Brasil. É uma cultura política antidemocrática, de mando e clientelismo, concentrada em aplicar um mata-leão nos adversários e o dissenso, sem enfrentá-los abertamente. As discordâncias de conteúdo, uma vez suscitadas, acabam remetidas ao labirinto pemedebista de filtros, negociatas e vetos escalonados, até o ponto de neutralização.

O pemedebismo resolve vários problemas para a redemocratização, em tempos de crise e mobilização popular: 1) serve perfeitamente à conservação da desigualdade de classe/racial/gênero, moto contínuo ao período ditatorial, 2) traduz em termos democrático-constitucionais o pacto social que a ditadura afiançava, com todo seu autoritarismo implícito, e 3) adia soluções definitivas para o país, instaurando o tempo morto da “pequena política”, instituindo uma negociação purgatorial — cujo resultado mais nítido foi a Constituição de 1988, cristalização dessa baixíssima velocidade do carro pemedebista.

O que o pemedebismo não resolve, no entanto, é como substituir o nacional-desenvolvimentismo por uma organização das relações de produção à altura dos desafios do mundo do trabalho. Essa lacuna apertou a crise econômica, provocando descontrole inflacionário e baixa produtividade generalizada.

Por um breve período, com seu “cesarismo alucinado”, Collor (90-92) tentou contornar todos os vetos e rituais, para emplacar uma reestruturação capitalista a toque de caixa. Foi rapidamente anulado, numa conjunção emblemática entre bancadas parlamentares, grande imprensa e judiciário — três poderes inteiramente incrustados na represa pemedebista. Desse fato, nasce a percepção que, sem supermaiorias no Congresso e o apoio da grande mídia corporativa, e alguma influência no judiciário, não é possível governar. Forja-se, na década de 90, uma segunda figura do pemedebismo: a governabilidade. Em nome dela, os governos passam a construir longos arcos de alianças com o “centrão” e assumir o jogo tático dos vaivéns e negociações como a própria natureza da política. No intuito de dirigir o pemedebismo, os governos seguintes, aos poucos, permitem que ele seja naturalizado.

O pemedebismo passa a ser um personagem de fundo, como se não houvesse outra forma de governar e fazer política no Brasil que não seja beijando a mão do Sarney. Noutras palavras, se converte em ideologia, sob a desculpa pretaportê da realpolitik: é assim mesmo, está aí, não tem outro jeito…

É assim que o PSDB dos anos 1990 lida com o pemedebismo. Programado para fazer as reformas necessárias diante das transformações das forças produtivas, e aliado para isso com o setor empresarial e financista mais dinâmico, realiza um projeto de fortalecimento do estado, calcado na centralização do poder no governo federal — em especial nos aspectos fiscal, financeiro e monetário. Para Nobre, o neoliberalismo é mais um “vagalhão ideológico”, usado pragmática e oportunisticamente, do que propriamente a verdadeira prática, todavia sincrética, da era FHC. Com isso, convivendo com o centrão e armado ideologicamente, o governo do PSDB pôde pela primeira vez contornar vetos e negociar ajustes imprescindíveis, — viabilizando, por exemplo, o Plano Real. Edificado de modo mais transparente e democrático do que os anteriores, — que eram geralmente anunciados de supetão em cadeia nacional, — esse plano encerrou a espiral da inflação, um dos mecanismos mais brutais de transferência de renda dos mais pobres aos mais ricos.

Como o livro nos conta, o governo FHC (95-02) exprimiu o encontro entre um “apoio inorgânico” da população, parcialmente derivado do Plano Real, e o projeto de “choque de capitalismo”: a reestruturação das relações de produção depois do abandono do paradigma nacional-desenvolvimentista. O PT, nessa época, patinava discursivamente entre uma defesa nostálgica do estado/público (paradoxalmente, como se FHC simbolizasse o antiestado) e o slogan generalista da “ética na política” — enquanto paulatinamente burocratizava as redes de militância e copesquisa, que tanto haviam marcado a década anterior.

O sucesso do FHC também foi o seu fracasso. O problema do “choque do capitalismo” é que tentou resolver a crise da produtividade pelo alto, de cima a baixo, como se os setores empresariais e o capital globalizado fossem, eles próprios, os agentes da dinamização produtiva. Não pôde reconhecer como, na realidade, os ajustes estruturais emanam antes nas forças vivas, já existentes no mundo do trabalho, do que dalguma estruturação autônoma do capital. Essa insuficiência foi arregaçada cada vez mais até o final da década de 90, agudizando um impasse entre a reestruturação produtiva, de um lado; e a manutenção das desigualdades, baixa renda, déficit em seguridade social, do outro. O modelo bateu no teto.

O governo Lula se apresentou, numa conjuntura especialmente favorável, como aquele capaz de levar o “choque de capitalismo” ao mundo do trabalho. Reconhecendo os processos de transformação, seus conflitos e subjetividades, é nesse governo que, pela primeira vez, as novas forças produtivas são reconhecidas por si mesmas, além da indexação segundo a verticalização empresarial ou a métrica financeiro-capitalista. Isto se viabilizou graças a um novo projeto dirigente do pemedebismo. Novamente, o governo resolve dirigir o pemedebismo. Estratégia justificada como incontornável, especialmente depois do mensalão, quando naufragou o projeto de afrontá-lo mais diretamente, encabeçado por José Dirceu. Com o pemedebismo, o governo Lula pôde esticar uma pequena fenda, por onde vazaram políticas sociais de reconhecimento da dimensão produtiva. A quantidade, aqui, foi a qualidade. A massificação de programas sociais fomentou o dinamismo da economia em suas bases, multiplicando efeitos de autovalorização das camadas outrora consideradas “inorgânicas”. A política social se torna a base e determinante da política econômica e não mais o inverso: o que, imediatamente, os setores conservadores acusam de “interferência política” na economia.
Formula-se, como resultado histórico dessas contradições e disputas em meio ao pemedebismo, a primeira alternativa consistente desde o desmonte do nacional-desenvolvimentismo. O que Nobre chama de “social-desenvolvimentismo”. Isto é, outro modelo abrangente de sociedade, que gradativamente se instala na década de 2000. Foi essa consistência que permitiu ao governo Lula, diferentemente de FHC, atravessar a pior crise econômica desde a quebra da Bolsa de NY. O autor não deixa de anotar, também, que esse social-desenvolvimentismo coabita determinada opção de inserção no mercado mundial. Surfando na onda das commodities (gêneros, bens e serviços primários), o governo calibrou a política para aproveitar a gangorra entre as duas maiores economias, China e EUA. Essa opção macroeconômica significou, também, o casamento entre o governo e grandes conglomerados empresariais, cujo virtual monopólio e verticalização do mercado são incentivados, a fim de constituir players globais: grandes mineradoras, empreiteiras, exportadoras e agronegócio. É o neodesenvolvimentismo — embora o autor não o chame assim — todavia pedra angular do social-desenvolvimentismo da forma que foi adotado pelo governo, especialmente desde 2006.

Nobre polemiza abertamente com André Singer, criticando o conceito de “lulismo”. 

Insuficientemente crítico diante dos desafios, tampouco pode dar conta da gênese, estruturas e funcionamento complexo da política brasileira, e ainda por cima acaba servindo de justificativa para a conservação das desigualdades. Usado para legitimar muitas opções do governo Lula como o limite máximo da correlação de força, o lulismo coincide assim com a própria figura ideológica do pemedebismo: a governabilidade. O pacto lulista, no entanto, deve ser criticado e tensionado, para reforçar as brechas constituintes, essas que a “pequena política” dos conservadores — inclusive de um PT pemedebizado, agora síndico do condomínio — faz de tudo para colmatar.

É neste ponto que o autor poderia, talvez, avançar a explicação sobre as transformações materiais dos processos produtivos, na equação entre mundo do trabalho, dinâmicas inovadoras e novas formas de organização política/produtiva, de onde os antagonismos próprios da era Lula/Dilma se moldam. Além disso, Nobre não reconhece a possibilidade de um lulismo além-Singer, um por assim dizer “lulismo selvagem”, que possa servir de matriz crítica para o próprio governo Lula (ou Dilma), seu neodesenvolvimentismo, sua progressiva capitulação diante do pemedebismo. Não reconhece uma ambivalência no conceito de “lulismo”, muito minoritária, aliás, na tese de Singer. Para o nosso autor, o mensalão teria sido outra vitória pemedebista, como tinha sido o impedimento de Collor — evidentemente por motivos diferentes. Contudo, não foi uma vitória absoluta. Lula não caiu. O social-desenvolvimentismo não foi enterrado. O mensalão também significou o fracasso da reação pemedebista, articulada entre bancadas parlamentares, grande imprensa e frações do judiciário, contra Lula. E esse fracasso, menos do que por alguma habilidade messiânica do presidente, ocorreu porque as bases materiais não eram mais tão “inorgânicas” quanto se pensavam. A relação de força mudou de baixo pra cima. Organizada politicamente por outras vias, e capaz de afirmar posições e afrontar os mecanismos amortecedores, a nova composição social sustentou Lula apesar do mensalão, e garantiu sua reeleição, e a sucessão por Dilma, em 2010.

Isto explica, também conforme o autor, as revoltas de 2013, que também se voltaram contra o PT e Dilma, neles incitando as piores paranoias e uma verdadeira histeria repressiva. Mais do que “soluço” sem repercussão eleitoral (Singer, na FSP), o levante em andamento exprime o desbloqueio de forças sociais e produtivas, que têm encontrado meios de organizar-se para além e contra o “pemedebismo de fundo”. Ou seja, trazendo o dissenso para a rua, rompendo o bom tom e os pressupostos de uma “convivência democrática” — que nada mais é do que a conservação do conteúdo autoritário de instituições e da própria sociedade. É o rompimento da naturalidade dos gestos, uma ação direta ao gosto fanoniano, que põe abaixo a capa elitista com que é revestida e canalizada a energia de transformação. É por isso que Nobre se adiantou para nelas reconhecer um ímpeto antipemedebista. Mais do que isso, para o autor as revoltas são sintoma do fim de um ciclo, do próprio ciclo de redemocratização disparado nos anos 1980. As jornadas de junho são a expressão da incapacidade de o governo aprofundar o paradigma socialdesenvolvimentista, do impasse causado pela reocupação (muitas vezes assentida) do PT e do governo pelo pemedebismo. O abismo olha de volta.

Descrente na capacidade de o PT e o governo Dilma escaparem da ideologia lulista, de sua incapacidade assumida em radicalizar o social-desenvolvimentismo e, finalmente, em desatar o nó górdio do pemedebismo vigente nas últimas três décadas, é nas revoltas de junho que o autor aposta muitas fichas. Mais do que evento em si, como primeira expressão gritada de uma nova cultura democrática em estado nascente, numa forma de vida baseada em conflitos abertos e explicitação das relações de poder, no agonismo tantas vezes recalcado pelo DNA autoritário da democracia constitucional brasileira. “Abriu um rombo na armadura pemedebista”. É irônico, porque as revoltas também exprimem o “lulismo selvagem”, o que mostra o quão distante estão o PT e seus ideólogos dos próprios efeitos que ajudaram a construir. A tão falada crise da representação, no Brasil, tem uma cara muito própria. Se as instituições não forem suficientemente ágeis em regenerar-se diante da enchente, poderão acabar engolidas pelo turbilhão democratizante e, de uma forma ou de outra, radicalmente transformadas. Nisso, apostamos.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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