PICICA: "No terreno comum, e tão
confuso, onde a linguagem da opressão e da libertação se misturam, no
limiar em que perdemos os referenciais e precisamos nos reorientar — o
rolezinho é mesmo um ato de força. Banhados de marca, mas também da
pele, da voz, do vigor da música. Quando confinados por todo tipo de
rótulo, preconceito e desdém pela alteridade, é um evento assim que
estimula a continuar lutando e disputando por afetos e territórios."
Pra onde vão os rolezinhos
A ideia do “shopping
lotadão” não é nova. Em agosto de 2000, para protestar contra o
apartheid social, um grupo de favelados fez uma visita surpresa ao
shopping Rio Sul, um dos mais frequentados pelos moradores dos bairros
nobres da cidade. O rolê foi narrado sete anos mais tarde no
documentário Hiato, em que são usadas filmagens do evento e depoimentos colhidos posteriormente.
Surpreende que as
reprovações mais escandalizadas não tenham partido de playboys e
patricinhas da zona sul, mas dos próprios funcionários, vendedores e
seguranças do shopping. Nesse documentário, embora a distância social
entre rolezeiros e funcionários não seja grande, talvez minúscula, a simples existência dessa distância — trabalhadores que, de modo postiço, tentam imitar os gestos e a cosmética da classe dominante a quem servem x
os pobres que, sem maquiagem, se afirmam como tais — parecia consistir
num signo irrenunciável de orgulho e status, convertido em desdém contra
quem estaria imediatamente “embaixo” na pirâmide.
É o fenômeno do “pequeno
branco”, aquele pobre que se compraz em invocar alguma origem europeia e
forjar laços de identidade, apenas para diferenciar-se da “negrada” —
ou então o “mestiço” que se julga superior, um negro que se constrói
menos negro, como gesto discreto de adaptação à sociedade
brancocêntrica. O racismo, afinal, é modulado em vários níveis e
proporções, e o fascismo não se ordena de outra forma que não por uma
escadinha de preconceitos, onde o andar superior se contenta em desaguar
suas frustrações pisando no de baixo, até o final da escala (pode ser o
judeu, o imigrante árabe, o negro, o indígena).
Hoje, com a democratização
das redes sociais e o generalizado empoderamento que as jornadas de
junho escandiram, os rolês ganharam escala e se tornaram um grande
problema. Nas últimas semanas, os rolezinhos tomaram o noticiário
nacional e começaram a proliferar. Passando a problematizar não só as
contradições do capitalismo no Brasil, com todos seus micro e
macroapartheids, como também o contexto de ascensão da classe sem nome,
dita “nova classe média” ou “Classe C”, dessa classe selvagem, rude e
pagã que tanto incomoda os formuladores do gosto, do bom tom e da
“consciência de classe”.
Algo mudou entre 2000 e
2014, entre a invasão brancaleônica do Rio Sul e os rolezinhos
funkeiros. O que mudou foi a sociedade. Entre 2000 e 2014, teve o
lulismo: a possibilidade de milhões de pessoas conquistarem alguma
renda, acesso a consumo e perspectiva de futuro. Em 2000, a distância
entre os clientes e os favelados era um abismo intransponível. Na época,
a resistência favelada se dava, diretamente, oferecendo os próprios
corpos desdentados, semianalfabetos e mal-vestidos, como gesto
anticolonial de denúncia. Em 2014, o que aparece são corpos talhados com
roupas de marca, cordões e relógios dourados, alegremente cantando
funk. Em Hiato, os pobres levam pão com mortadela para
conseguir almoçar na praça de alimentação. Hoje, os jovens ocupam o Mac
Donald´s. Entram nas lojas e não apenas apalpam a mercadoria: compram. E
se porventura forem desdenhados por clientes mais ricos ou pelos
funcionários, hoje não tenho dúvida usariam da mesma linguagem do
consumo para desdenhar de volta. “Pagar de favela” não é a mesma coisa
do que antigamente. Nessa década e meia, a periferia e a favela já foram
reconhecidas, em alguma medida, como usinas de criação e tendência —
cobiçadas para além da mera condição de mercado consumidor e de trabalho
barato.
O fato é que a polícia não
tem protocolo para lidar com a nova situação. Confusa diante de uma
composição social nova, segue a cartilha histórica: na dúvida, reviste
os negros. Negros com poder de consumo, até pouco tempo atrás, era
sinônimo de traficante. Quem não lembra da cena de Tropa de elite quando
capitão Nascimento decide torturar um adolescente da favela porque
tinha tênis de marca em casa? (lamentavelmente, a narrativa fílmica,
logo em seguida, confirma esse nexo). O negro consumidor era
criminalizado duas vezes.
A grande mídia corporativa
tampouco sabe o que fazer. A tentativa de rotular “arrastão” nos
rolezinhos foi desmentida pela ação rápida das redes sociais e mídias
alternativas. A imprensa precisa cuidar para que o próprio racismo não
saia do armário. O que ela quer mesmo é colocar Mandela na coleira para
passeá-lo como cachorrinho de sua boa consciência.
O que agride a ordem não é o
fato de ocupar shoppings. Isso a classe sem nome já vem fazendo, também
em restaurantes, aeroportos, pet shops, salões de beleza e charmosas
cidades in da Europa ou Estados Unidos. O que realmente agride, o choque de gosto, hoje, é ocupar de maneira organizada e organizar-se para ocupar:
a capacidade de gerar sentidos sem passar pelas mediações da grande
imprensa, do mercado de consumo ou da esquerda convencional. Não é
verdade que predomine o desejo de adaptação, que predomine a lógica do
“pequeno branco” ou do “mestiço comportado”. A periferia se testemunha
enquanto tal, sem hesitar em usar o funk e apropriar-se da esfera do
consumo, como um manifesto pela própria existência e senso coletivo.
Acusados todavia de
despolitização, por meramente desejar zoar, consumir, ostentar e pegar
alguns(as) meninos(as), juntos em grandes ocupações os jovens acabam
politizando tudo. Quem pode dizer o que eles realmente querem,
reduzindo a multiplicidade de possibilidades à reafirmação de um óbvio
interessado? A obviedade de que nada nunca mude sob o sol? A histeria
repressiva da polícia, do shopping e da grande imprensa apenas reforça o
caráter político da coisa toda. Inspiram a resistência, convocam
alianças e provocam a articulação de contranarrativas.
Não é caso de romantizar os
pobres (romantizar porra nenhuma aliás) e, mais realista do que o rei,
enxergar “consciência de classe” onde só haveria alienação e
autoafirmação adolescente. Mas não se pode negar, por outro lado, que
algo está fora da caixa, que um processo novo, potente, e com possíveis
desdobramentos políticos, está em curso.
No terreno comum, e tão
confuso, onde a linguagem da opressão e da libertação se misturam, no
limiar em que perdemos os referenciais e precisamos nos reorientar — o
rolezinho é mesmo um ato de força. Banhados de marca, mas também da
pele, da voz, do vigor da música. Quando confinados por todo tipo de
rótulo, preconceito e desdém pela alteridade, é um evento assim que
estimula a continuar lutando e disputando por afetos e territórios.
Fonte: Quadrados dos Loucos
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