PICICA: "Além
dos casos de crimes de ódio contra homossexuais, também se soma o
aumento da violência contra outras minorias sociais, como os negros e os
índios. É um processo em curso que exige atenção e ação."
Arrancou os próprios dentes -- e se matou na contramão atrapalhando o trânsito
Tirésias e Ulysses -- Füssli |
Caso você, caro leitor, também achou essa hipótese absurda, prossiga e continue a ler este post.
Eis que há poucos dias Kaique foi encontrado morto na Avenida Nove de Julho,
uma das mais movimentadas da Capital, com o rosto desfigurado, os
dentes arrancados, um ferro enfiado na perna dentre outros sinais de
tortura. A polícia, no entanto, trabalha com a hipótese de suicídio.
Como numa anedota cruel. Kaique, por um acaso, era homossexual e talvez
isso ajude a entender a brutalidade do crime e as conclusões
preliminares da "investigação". Mas o que realmente nos interessa é que
Kaique não é um caso isolado.
Os crimes de ódio perpetrados contra homossexuais têm aumentado brutalmente.
É, de fato, difícil quantos homossexuais são mortos agora em comparação
a momentos passados, mas não crimes de ódio, nos quais a orientação
sexual da vítima é elemento essencial para o crime -- e na gradação de
violência empregada no seu cometimento. Os grupos gays têm denunciado
esses gráficos, além dos casos singulares, com certa ênfase há algum
tempo.
Paradoxalmente,
nos últimos anos, os homossexuais conquistaram direitos, visibilidade e
algum lugar na sociedade brasileira. E isso é fruto da ação corajosa de
tantos ativistas anônimos e grupos organizados, literalmente remanda
contra uma maré da mais crônica intolerância. Por outro lado, há uma
reação social difusa que tem gerado mortes demais. Essa reação é
turbinada pela ação de alguns grupos políticos, em geral extremistas
cristãos, que se espalham por quase todos os partidos conhecidos -- mas
ela resulta, sobretudo, de vergonhosas omissões das grandes forças
políticas brasileiras.
O Brasil,
por exemplo, comeu pelas beiradas ao fazer a autorização para o
casamento gay no país não passar pelo Congresso, mas sim pelo Supremo
Tribunal -- num processo que começou na permissão da União Civil em 2011
e passou pela resolução de 2013 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Não se diga que as grandes forças políticas, incluso aí (sobretudo) a
própria presidência da República, não intervierem para o bem, por meio
do posicionamento da Advocacia-Geral da União (AGU), mas o fato disso não ter sido feito (con)frontalmente gerou precisamente essas sequelas.
Na nossa vizinha Argentina, a aprovação do casamento gay
assumiu a forma de uma conquista legal-parlamentar e não de decisão
judicial. A presidenta e sua base confrontaram a base conservadora e
trouxeram a questão à baila. Tudo ficou às claras. No Brasil, as
grandes forças políticas se mantêm escondidas do debate público sobre a
questão, ou surfando na onda da homofobia ou, simplesmente, recuando
diante do discurso homofóbico organizado -- como fez Dilma, no episódio
do Kit anti-homofobia, quando declarou que seu governo "não faria
propaganda de opção sexual" ao ser pressionada por grupos religiosos
contrários...ao ensino do repúdio à homofobia na Escola Pública. O impacto simbólico disso foi grande.
Não é que
não se deveria ter usado desses, e outros, artifícios inclusive por
dentro das instituições para gerar direitos para os gays, mas que era
necessário sim assumir o processo e marcar uma posição inequívoca e
divergente. Rosa Luxemburgo já ensinou, há tanto tempo que é o movimento
que faz a maioria (numérica, a própria reunião de singularidades) e não
o contrário. Esperar pelo "grande dia" no qual as cabeças mudarão para,
assim, poder agir -- ou mesmo apoiar, no plano partidário, essa luta
como grande segredo público é aceitar um sequestro voluntário. As
consequências são essa brutalidade, aqui, ali e acolá.
Em uma época
na qual os negócios se tornaram o modo de agir absoluto da vida,
inclusive na política, os setores democratizantes precisam repudiar, a
uma só voz, a negociação de gestos e posturas com extremistas, seja lá
em qual situação for, mas sobretudo na defesa da conquista de direitos
pelas minorias. Isso nem é prudente. Um sutileza de resultados é
prudência prática, não implica em recuos retóricos como se fosse
possível encontrar um meio-termo entre o necessário e o inaceitável por
conveniências eleitorais. Que outros casos como este não se repitam, nem
que isso termine esquecido no limbo de um presente em esquecimento.
P.S.: Além
dos casos de crimes de ódio contra homossexuais, também se soma o
aumento da violência contra outras minorias sociais, como os negros e os
índios. É um processo em curso que exige atenção e ação.
Fonte: O Descurvo
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