PICICA: "Algo importante devemos reconhecer desde já: apesar das coisas
grandiosas e novas que vivemos, ainda foram poucas e efêmeras as
experiências de construção de órgãos de poder popular, como assembléias
populares e comissões de luta por local de trabalho ou moradia. Neste
aspecto, o levante brasileiro ainda está bastante aquém de experiências
semelhantes em países como México, Argentina ou Bolívia, por exemplo.
Descobrir como avançar nesse campo é um dos nossos principais desafios.
E não é um desafio somente para nós do Brasil. Se até junho tínhamos
todas as razões para desejar que nenhum de nossos amigos e aliados do
exterior viesse para cá engrossar o caldo da festa das elites na Copa,
hoje precisamos e muito de sua presença e de sua ajuda. Em 2013 o
Brasil, depois de longa espera, entrou finalmente no circuito dos
levantes populares mundiais. Em 2014, há toda probabilidade que o país
seja a escala mais importante desse circuito rebelde."
O longo ano que começou em Junho
07/01/2014
Por Mauricio Campos
Por Mauricio Campos, no site da Rede de comunidades e movimentos contra a violência (Rio), em 30/12
Desde o Caracazo venezuelano de 1989, pelo menos, as
explosões de rebeliões populares “descontroladas” no mundo têm me
fascinado. Aos poucos foi se firmando em mim a compreensão de que, no
mundo pós-Guerra Fria, pós-URSS e pós-apartheid, tais
rebeliões, não só espontâneas como muitas vezes confusas e enigmáticas,
eram não obstante a forma concreta pela qual os explorados e oprimidos
do mundo podiam avançar na resistência e possível derrocada
revolucionária do sistema capitalista mundial.
Opinião certamente herética segundo a maior parte da esquerda ortodoxa, mas a partir dela escrevi e me referi repetidamente a tais rebeliões, desde os levantes negros em Los Angeles de 1992, passando pelo Argentinazo de 2001, a revolta das banlieues francesas em 2005, a Comuna de Oaxaca em 2006, etc.
Claro que tal “obsessão” continha e estimulava também a esperança que explosões semelhantes acontecessem no Brasil mais cedo ou mais tarde. Há algum tempo já havia me tornado descrente de que os partidos de esquerda e movimentos sociais mais tradicionais do Brasil pudessem iniciar alguma movimentação de massas com potencial revolucionário. Por outro lado, já valorizava e participava dos “novos movimentos” que se multiplicavam no vácuo de luta e consciência que partidos e movimentos como o PT e a CUT, e depois os governos por eles hegemonizados, haviam criado.
Mesmo assim, por mais que me dedicasse a vários desses “novos movimentos”, sempre pensei que em alguma hora haveria que acontecer o famoso “salto de qualidade”, que unisse tantas lutas e resistências fragmentárias em algum tipo de levante de massas, sem o qual as perspectivas revolucionárias de tais movimentos pioneiros ficariam muito restritas.
Em junho desse ano essa esperança acalentada durante tantos anos começou a concretizar-se. O júbilo (não consigo encontrar outra palavra para descrever meus sentimentos) foi tão grande que a última coisa que pensei foi escrever sobre os levantes populares. Ir às ruas, aos confrontos, às barricadas, registrar e divulgar tudo isso, era o que mais importava. Ainda acho que, no fundo, é o que importa. Mas a advertência de Rosa na epígrafe acima também é fundamental. É preciso enfrentar a esfinge, com as ferramentas analíticas que exigem tempo, foco, reflexão, e se expressam muito melhor na escrita.
Não tenho certeza se tal análise já seja plenamente possível. A voragem não acabou, temporadas rebeldes ainda assomam no horizonte. Mas vi tantas “análises” apressadas e disparatadas feitas por gente que não só não participou, como assumiu uma posição quase hostil frente aos levantes, e isso me parece que obriga a quem mergulhou nas lutas desde o início, e não se abalou com muitas coisas realmente estranhas que aconteceram, a também deixar seus rabiscos como contribuição.
Era óbvio?
Seguindo um padrão de “análises de conjuntura” supostamente marxista, muitos buscaram compilar dados econômicos e sociais que mostrassem uma situação deveras insuportável que explicasse uma explosão tão inesperada de gentes na rua. Certamente chamaram a atenção para coisas relevantes, como a péssima qualidade dos serviços públicos no país e outras realidades que, de toda forma, estão longe de ser novidade.
A vida sob o capitalismo não tem como não ser insuportável, se levarmos em conta todo seu desenvolvimento histórico e sua extensão mundial. Toda a arte de dominação das oligarquias mundiais consiste precisamente em obrigar os dominados a suportarem o insuportável. O que tem que ser explicado é como e quando falha essa arte dos dominadores.
Os levantes de junho no Brasil de forma alguma podem ser colocados na mesma categoria, quanto às suas motivações iniciais, que o Caracazo, o Argentinazo, ou mesmo as revoltas árabes e os movimentos europeus que se sucedem desde 2008. Nestes casos, havia uma situação econômica bastante exasperante empurrando massas do povo para o protesto de rua.
Entretanto, muitos outros levantes pelo mundo não precisaram de uma conjuntura econômica particularmente dramática para acontecer. A brecha no cotidiano de dominação pode nascer de conflitos sociais localizados amadurecidos ao longo do tempo até chegarem ao ponto de ruptura. Assim foi em Los Angeles em 1992, em Oaxaca em 2006, na França em 2005 ou no Chile nos últimos anos, por exemplo.
Aproximaram-se mais de uma “explicação” quem buscou as raízes da revolta na deterioração acelerada da mobilidade urbana nos últimos anos no Brasil, que se liga a uma série de outros conflitos urbanos que tem se agravado em função do próprio “boom” econômico da última década. Assim fez, por exemplo, Ermínia Maricato em entrevista na edição especial da revista Fórum de julho de 2013 (n. 124, ano 12). Segundo ela, “uma das coisas que era óbvia para todo mundo era a condição de vida insuportável das cidades brasileiras”.
Como já disse, dizer que a vida sob o domínio do capital é insuportável é de fato bastante óbvio, mas isso não explica nada. Se era tudo tão “óbvio”, porque não foi previsto? Ok, tudo bem, exigir previsão é demais, ciência social não é bola de cristal. Mas porque a grande maioria destes pensadores que vieram com análises tão bem elaboradas sobre as “crises” que motivaram a revolta, em geral NUNCA apoiaram os movimentos, invariavelmente não institucionalizados, que atuam sobre os conflitos urbanos há muito tempo?
A própria Ermínia Maricato nunca foi muito próxima dos movimentos pautados pelas ações diretas e de rua em São Paulo, como o MPL (Movimento Passe Livre) e o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), e sempre orientou-se por aqueles “movimentos” mais institucionalizados, pautados por co-administrar projetos de alcance reduzido numa parceria espúria com o poder público, em fóruns que sugam a energia militante dos ativistas enquanto a crise urbana se agrava. Sua miopia política permanece, quando classifica de “bom” o discurso de Dilma em junho, no auge dos protestos, quando fez promessas vagas que não tiveram grande desdobramento até hoje. Segundo Maricato, foi positivo que Dilma “não ficou falando de baderna”, mas ela falou sim de “vandalismo” e não citou nem uma única vez a questão da brutal repressão policial às manifestações.
“Falta uma pauta”
O problema geral das análises que se concentram nas ditas “causas objetivas” dos levantes repentinos é conduzir a um raciocínio que deprecia os elementos de consciência e organização presentes em quaisquer lutas que durem mais que um par de horas. Assim, “espontâneo” vira sintoma de algo puramente reflexo, como se as massas do povo reagissem de maneira puramente animal às tais “causas objetivas”. Tal como na social-democracia do século passado, criticada por Rosa Luxemburg, esse tipo de visão só considera “organizado” o que se enquadra nos partidos e sindicatos adaptados à disputa rotineira das eleições e dos acordos coletivos.
A crítica ao “espontaneísmo” das manifestações manifestou-se igualmente na afirmação de que, após a derrubada dos aumentos das tarifas em 19 e 20/06, “faltava uma pauta” ao movimento para que a energia de tantas pessoas nas ruas simplesmente não se dissipasse. Tal crítica partiu indistintamente tanto da “direita” (a grande imprensa e figuras públicas da velha oligarquia) como da “esquerda” (o PT e aliados e também a esquerda de oposição), e foi imediatamente seguida por uma sucessão de tentativas de impor uma certa “pauta” aos protestos. Quer dizer, ao se dizer “falta uma pauta” se queria dizer na verdade “sigam minha pauta”!
As oligarquias mais tradicionais (a “direita” histórica) propuseram de forma totalmente oportunista uma “pauta” moralista, abstratamente anti-corrupção, aproveitando-se do sentimento difuso de repúdio ao sistema político apodrecido que existia e existe entre as pessoas. Tiveram um êxito inicial, porém muito breve, mesmo assim isso ajudou a dar base a certas análises apressadas de que “a direita havia se apoderado dos protestos” (voltarei a isso). Já as novas oligarquias representadas pelo PT e movimentos associados responderam conclamando a uma reunião em torno da “pauta” apresentada por Dilma em seu pronunciamento ainda em junho, principalmente a “reforma política”, que pudesse incluir até uma nova constituinte.
Ambas tentativas fracassaram, e é possível que muitos vejam nisto a razão para os atos terem perdido o caráter massivo nos meses seguintes (até outubro, no Rio de Janeiro). Mas a verdade é que, ainda em junho, nos protestos que continuaram até o final da Copa das Confederações, a “pauta” geral que a maior parte das pessoas na rua abraçou, além do repúdio à repressão brutal (também voltarei a esse ponto fundamental), foi a exigência de serviços públicos decentes, principalmente na saúde e na educação, exigência intimamente associada à denúncia dos gastos absurdos nos estádios e outras estruturas visando a Copa de 2014 e (no Rio) as Olimpíadas de 2016. Pauta essa cultivada por anos a fio por movimentos sociais de base e incompatível com os interesses das oligarquias velhas e novas.
E está longe de ser uma pauta genérica e mal-definida. Claro que nem todo manifestante saberia indicar com exatidão quais medidas ou reformas propõe para se conquistar serviços públicos acessíveis e de qualidade, mas sempre foi assim em movimentos verdadeiramente de massas. Os detalhes dos “programas” e das reivindicações são de domínio dos militantes mais ativos e dedicados (ou dos “dirigentes”, nos movimentos mais hierarquizados), mas isso não nega sua organicidade. Uma enorme multiplicidade de movimentos e grupos têm realizado encontros, produzido literatura militante e traçado programas de reivindicações nas últimas décadas, e isso forneceu a base para a continuidade das mobilizações quando, a partir de julho, os grandes atos deram lugar a milhares de lutas e protestos menores e mais fragmentados.
Que revolução?
Essa fragmentação, claro, serviu para um outro tipo de crítica do tipo “falta uma pauta”, dessa vez por parte de setores de esquerda anti-sistêmicos que lamentaram os protestos não adotarem suas propostas e “programas” revolucionários. Criticava-se (e critica-se) o fato dos movimentos não adotarem uma postura “claramente socialista” e buscarem explicitamente “a derrocada do Estado burguês”.
A questão toda aqui é se existe hoje “clareza” em algum lugar sobre como desestruturar o Estado, ultrapassar o capitalismo e construir uma nova sociabilidade melhor, igualitária e livre. Vivemos já há algumas décadas uma época de transição histórica profunda, na qual os grandes movimentos anti-sistêmicos estruturados desde o século XIX ou mesmo antes (socialismo, anti-colonialismo e suas numerosas variantes) chegaram aparentemente ao seu apogeu sem destruir definitivamente o sistema mundial capitalista, embora modificando-o profundamente. As estratégias de revolução concebidas ao longo do século XX encontram-se todas em crise, o que não tem um aspecto puramente negativo.
Tais afirmações não querem dizer que vejo tudo como uma indefinição tão grande que não haveria hoje caminhos ao menos para se tentar decifrar os rudimentos de novas estratégias revolucionárias globais. Muita coisa já está sendo pensada e formulada nesse sentido, em todo o mundo. Não cabe aqui aprofundar, pois ficaria um texto extremamente longo, mas quero dizer que eu também tenho buscado nesse sentido já faz algum tempo. Em 2002 escrevi um texto bastante pesado e que eu mesmo acho difícil de ler, com um título meio pedante (“A construção da estratégia é a chave para a vitória revolucionária”), e que circulou somente para um número restrito de pessoas (nas referências bibliográficas acadêmicas seria mimeo), o qual citarei algumas vezes mais adiante, e no qual traço um conjunto bastante amplo de questões que podem servir de roteiro auxiliar para uma elaboração estratégica, mas há poucas conclusões. Posteriormente, diversos aspectos refinei, revisei e aprofundei em outros escritos, mas ainda não há muitas conclusões. Não vejo como ser diferente atualmente, é necessário um processo bastante árduo de aproximações, que só podem ser feitas se mergulhamos sem receio no turbilhão das revoltas espontâneas que se sucedem em todo mundo.
Portanto não vejo como criticar os protestos e os movimentos do levante brasileiro por não terem “clareza revolucionária”. O que podemos “exigir”, de um ponto de vista anti-sistêmico, é que os novos movimentos sejam fiéis aos seus próprios postulados radicais.
Vejamos o exemplo do MPL, que tem em sua carta de princípios a definição anticapitalista. Pode-se questionar, com alguma razão, que esse anticapitalismo, na prática, se expressa apenas em metodologias organizacionais (horizontalidade, independência, etc) e não se fala claramente em abolição da propriedade privada dos meios de produção e das relações mercantis, fundamentos do capitalismo nas relações econômicas. Contudo, o programa do MPL, no seu campo específico de atuação, tem como bandeira “emergencial” a tarifa zero para os transportes coletivos urbanos, que é incompatível com relações de mercado. No mínimo, a tarifa zero introduz, caso o serviço concreto – valor de uso – do transporte continuasse a ser prestado por empresas privadas, uma tensão insuperável entre o Estado subsidiador e o capital em busca de lucro máximo.
Mas o programa do MPL não pára na tarifa zero. Sua carta de princípios coloca como objetivo “uma outra lógica de transporte”, “um transporte gerido pelo interesse dos trabalhadores. Não as empresas, os políticos ou os técnicos que devem definir como deve funcionar. Quem tem autoridade para dizer como o sistema de transporte vai ser administrado é quem o utiliza todo dia” (declarações de Caio Martins, ativista do MPL/SP, na reportagem “Por uma vida sem catracas”, na já citada edição especial da revista Fórum de julho). Uma rota de luta claramente incompatível com o capitalismo.
Mas não há como ser anticapitalista numa luta específica pois o capitalismo é um sistema global, reclamarão os revolucionários socialistas ortodoxos. Sim, mas se cada movimento persiste no seu radicalismo e se todos se encontram na insurreição, essa limitação se supera, na prática, como deve ser, e não na pura teoria.
Essa discussão se aplica igualmente aos movimentos que combatem as chamadas “opressões específicas”, como os movimentos feministas, LGBT, etc (os movimentos anti-racistas têm um estatuto e um significado um tanto diferente; no Brasil, são muito mais “gerais” que “específicos”, falarei deles mais adiante), e que não por acaso tiveram um espaço destacado nos protestos desse ano. Muitas vezes se produz uma crítica “de esquerda” a tais movimentos porque eles não levariam em conta o “sistema como um todo”, não adotariam, junto com suas pautas específicas, um “programa revolucionário geral”, etc. Bem, tais movimentos, se forem radicais (radicalmente anti-machistas, anti-homofóbicos, anti-criminalização das drogas, etc) serão anti-sistêmicos, anti-capitalistas. E a superação das suas “particularidades” não é uma questão a ser resolvida teoricamente, mas praticamente, na prática do levante, da insurreição.
Partidos, de vilões a vítimas e vice-versa
Relacionada às criticas de “falta de pauta” e “falta de clareza revolucionária”, está a crítica aos protestos por manifestarem uma tendência “violentamente” anti-partidos. É uma crítica bem mais especificamente “de esquerda”, proveniente da esquerda partidária, é claro. A oligarquia brasileira tradicional, com seus partidos de direita já profundamente desgastados, concluiu que era oportuno se aproveitar do sentimento anti-partido para buscar atacar a “esquerda” governista e a extrema-esquerda oposicionista através do discurso difuso da anti-corrupção. E a extrema-direita fascista resolveu finalmente se expor e partir para a tática skinhead de comprar briga de rua com a extrema-esquerda partidária. Ganharam as brigas mas erraram o alvo, falarei disso mais adiante.
Seja como for, essa explosão de truculência fascista, se aproveitando do sentimento anti-partido, foi o momento mais confuso dos protestos. Ouvi companheiros profundamente desolados falarem que “havíamos sido derrotados”, “a direita tomou conta dos protestos”, “o fascismo está crescendo”, etc. Muitos se retiraram das manifestações. E até movimentos apartidários que estavam na linha de frente desde o início vacilaram e quase recuaram. Foi muito estranho. Mas foi só um momento.
A esquerda partidária, é claro, trata a posição anti-partido como um erro simplesmente. Atribuem-na a uma campanha sorrateira da grande imprensa e à inconseqüência do “anarquismo”. A extrema-esquerda partidária reconhece a contribuição que o oportunismo e a degeneração política do PT, PCdoB e outros deram a tal sentimento, mas insiste que se trata de uma “falsa lógica, segundo a qual todos os partidos são iguais, daí a rejeição” (declaração de Ivan Valente, deputado federal do PSOL, na reportagem “Os Descontentes Políticos”, na edição n. 196, junho de 2013, da revista Caros Amigos). Essa posição aproxima-se curiosamente de certo discurso da grande imprensa segundo o qual o problema do sistema político da democracia representativa liberal estaria simplesmente nos desvios “de corrupção”.
Outra parte da extrema-esquerda partidária, aquela que participa de eleições mas não tem praticamente nenhuma expressão eleitoral, e contra a qual acusações de corrupção são bem frágeis (a não ser para certas utilizações escusas da máquina burocrática dos sindicatos), centra suas críticas, por sua vez, na “inconseqüência” do anarquismo/autonomismo. Diante disso, o historiador da USP Lincoln Secco, na mesma reportagem “Os Descontentes Políticos” perguntou com razão: “Mas se um partido teria sido mais eficiente do que o MPL então por que nenhum dos partidos disponíveis de extrema esquerda foi seguido pelas ‘massas’?”
Na mesma edição da Caros Amigos, na entrevista “A tarefa é fortalecer as lutas sociais”, o militante do MTST/SP, Gabriel Simeoni, aproximou-se de uma resposta ao afirmar que “se alguém aparecer com alguma bandeira de algum partido, seja do PT, do PSOL, do PSTU ou do PCO numa manifestação, soa como oportunismo eleitoral, não é uma aversão aos partidos, é uma aversão às eleições”. Sim, mas é um pouco mais que isso. Não só grupos de partidos, mas inclusive grupos de movimentos como o MTST e o MST, por exemplo, também foram hostilizados, embora não participem de eleições, é óbvio. Entretanto, na estética dos protestos, pareciam-se com as colunas partidárias por comportarem-se com uma certa “uniformidade” de bandeiras (quase sempre vermelhas), e às vezes de bonés e camisetas. A grande maioria dos manifestantes fugia conscientemente dessa uniformidade, e mesmo sendo “massa” (no sentido de quantidade), e exatamente por serem multidão revelarem sua potência nas ruas, cada pequeno grupo ou manifestante fazia questão de marcar sua individualidade carregando sua própria faixa e seu cartaz, revivendo inclusive a técnica básica da cartolina e hidrocor, uma das marcas registradas dos protestos de 2013.
Essa divergência estética reflete também uma diferença de ação política. As faixas e cartazes dos manifestantes “não-uniformizados” não reproduziam siglas, símbolos ou logotipos de partidos ou movimentos, mas tinham cada uma sua própria mensagem, reivindicação, crítica, sarcasmo, desabafo, enfim, essa explosão de criatividade popular que foi um dos tantos milagres de um ano tão miraculoso.
Abro aqui parênteses. Não acredito que “uniformes” sejam algo totalmente ultrapassado e inútil na luta social anti-sistêmica. Mas penso que sua utilidade se reduz cada vez mais à sua função original na técnica bélica/militar: identificar com a maior precisão possível quem é amigo e quem é inimigo no campo de batalha. Muitos grupos que nos protestos empenhavam-se nos confrontos com a polícia usaram muito eficientemente bandeiras com esse propósito. A própria tática black bloc, longe de ser puro esteticismo (como já ouvi várias vezes), em parte é uma recuperação dessa função primordial do uniforme. Fecha parênteses.
O “desgaste” dos partidos é parte da exaustão dos processos políticos dominantes desde o século XIX, o que inclui mas não se resume aos mecanismos eleitorais da democracia representativa. O que vemos em todo mundo é uma demanda incontida de participação direta nas decisões públicas, um repúdio veemente às oligarquias, elites, hierarquias e “direções” que buscam monopolizar as escolhas políticas que dizem respeito à toda sociedade através de mecanismos opacos e pouco compreensíveis à grande maioria das pessoas. Nem a representação através de eleições periódicas com sufrágio universal, o máximo que a elite capitalista ocidentalizada do mundo aceita como “participação”, dá conta disso. Os partidos, parte inseparável desse sistema capenga, entram em crise irremediavelmente porque, sejam eleitorais ou não, reacionários ou revolucionários, concebem-se e existem como instrumentos de poder distintos dos organismos de poder não concentrado ou hierarquizado, que potencialmente criam o que chamamos poder popular.
Essa não é uma posição que assumo de forma oportunista, embriagado pelos acontecimentos deste ano. A reformulação profunda da visão que eu tinha dos partidos já tem bem mais de uma década, e a parte final do texto mimeo de 2002 do qual já falei mais acima (“A construção da estratégia…”) é dedicada somente a isso, inclusive com uma resenha histórica resumida sobre a evolução da concepção de partido revolucionário. Acho que até vale a pena divulgá-la como artigo em separado, mas por enquanto cito apenas um trecho, que também serve para mostrar que, quem repudia a organização partidária, não necessariamente repudia a construção de organizações militantes reunindo pessoas com objetivos revolucionários:
“A completa superação da concepção da organização militante como instrumento de poder é essencial para a construção conseqüente de organizações revolucionárias e para um trabalho que leve as organizações de lutas de massas a se tornarem órgãos de poder popular. Contudo, se abandonamos essa concepção, não existe mais nenhuma justificativa para chamarmos as organizações militantes de partidos. Não se trata de um expediente tático, pelo fato do termo ‘partido’ estar desgastado ou coisa parecida, mas uma inevitável conclusão conceitual. As organizações militantes revolucionárias do proletariado surgiram como ‘partidos’ porque concebiam-se desde o início como instrumentos de poder. Continuaram chamando-se ‘partidos’, por longo tempo, porque embora desmentida pela experiência histórica, a concepção delas como instrumentos de poder ressurgiu e consolidou-se através das complexas experiências de derrotas e retrocessos das revoluções proletárias dos séculos XIX e XX. Se tirarmos as corretas conclusões de toda esta história, só podemos concluir que estamos nos livrando com muito atraso desse inadequado termo ‘partido’.”
“Direita” e “vandalismo”
Lembro de uma reunião, ainda em junho, na qual participei, onde se debatia calorosamente se os protestos tinham um caráter emancipador, progressista, ou ao contrário seriam reacionários e até mesmo “fascistas”. Intervi dizendo que, em algo tão grande como uma autêntica insurreição popular, e a reação contra-revolucionária que a segue, é inevitável que o melhor e o pior que existe na sociedade se revele, se exponha, mas que isso não pode nos levar a perder o foco.
Entres os candidatos a “pior da sociedade” que se revelaram a partir de junho, duas coisas bem diferentes se destacaram: os grupos, bandeiras e reivindicações de extrema-direita; e a violência contra bens materiais e, em escala bem menor, pessoas ligadas ao aparato político e policial.
A súbita irrupção das sombras fascistas atordoou a esquerda e os movimentos sociais, mas foi pouco evidenciada pela grande imprensa. Mas no fundo não revelou nada de novo. Grupos fascistas têm proliferado meio silenciosamente no Brasil já há algum tempo, e nunca foram de fato confrontados pelos movimentos progressistas. Esse crescimento na penumbra política foi, na verdade, muito favorecido pela vergonhosa conciliação que marcou a transição da ditadura civil-militar para a “democracia” nos anos 80 do século passado, e que deixou intocados tanto o essencial do aparato repressivo da tirania (polícia militar e civil, oficialato das forças armadas, justiça militar separada, órgãos de inteligência e monitoramento dos movimentos populares, etc) quanto os crimes de tortura, desaparecimento forçado e assassinatos cometidos por mais de 20 anos quando a extrema-direita esteve abertamente controlando o poder de Estado.
Por outro lado, já há alguns anos uma insidiosa afirmação de reivindicações ultra-conservadoras, como a redução da maioridade penal e a grita por endurecimento penal em geral, retorno do ensino religioso nas escolas públicas (do qual se favorecem as religiões cristãs, hegemônicas, é claro), definição de leis “anti-terroristas” e outras que apontam para o renascimento da idéia de “segurança nacional”, combinam-se com a repetição de atos e movimentos abertamente racistas, sexistas e homofóbicos. Mas tudo isso acontece de forma contraditória, pois ao mesmo tempo há uma afirmação crescente e pública, como não se via há muito tempo, de visões e movimentos que desafiam de forma muito aberta os padrões cristãos/ocidentais/masculinos/repressores dominantes, e que em alguns casos conquistaram marcos institucionais importantes. O que se observa, portanto, é muito mais uma polarização entre posições neo-conservadoras e progressistas, que o fortalecimento indiscutível do atraso. Mais um sinal de tensões sociais crescentes na sociedade brasileira.
O aparecimento disso tudo na rua foi, assim penso, algo no fundo positivo, pois obrigou a “cair a ficha” de muita gente. Mostra que as forças da mudança precisam se organizar e se mobilizar muito mais, e não se acomodarem com pequenos avanços na lei ou com a multiplicação de pesquisas acadêmicas progressistas, por exemplo. Mas de modo nenhum mostrou uma força irresistível da extrema-direita. Sua pujança sumiu quando resolveu convocar atos exclusivamente em torno de suas bandeiras moralistas e por “mais segurança”, grandes fracassos. Aqui no Rio, não conseguiram nem mesmo polarizar a massa católica de “peregrinos” durante a Jornada Mundial da Juventude para massacrar uma minoritária mas significativa Marcha das Vadias. Os bandos fascistas que agrediram militantes de partidos e movimentos, por sua vez, logo se retiraram de cena e voltaram a atuar exclusivamente no seu habitat natural, os aparatos repressivos do Estado.
O chamado “vandalismo”, por sua vez, é algo de fato novo nas lutas sociais no Brasil. Não que atos de depredação material, quebra-quebras e resistência massiva à repressão policial nas ruas fossem inexistentes (em algumas ocasiões houve quebradeiras realmente grandiosas, como a dos ônibus no centro do Rio em 1987), mas a novidade esteve na permanência do desafio à repressão policial mesmo com tanta brutalidade. Manifestantes rapidamente desenvolveram táticas de defesa e ataque para sustentar confrontos durante horas nas ruas, algo que apenas as batalhas entre vendedores ambulantes (camelôs, marreteiros, etc) ou torcedores de futebol, e a polícia (Choque da PM e Guarda Municipal) haviam tenuemente antecipado em algumas cidades brasileiras. Barricadas, cercos, incêndios direcionados, movimentação rápida de manifestantes, todas essas técnicas em muito pouco tempo tornaram-se comuns nos protestos. O medo de enfrentar a polícia, se não desapareceu, enfraqueceu-se de maneira notável. É um dos fatos mais significativos da insurreição popular de junho, um marco nas lutas populares no Brasil. E é mais um milagre de 2013.
O ataque midiático ao “vandalismo” tornou-se por sua vez o centro da disputa pela opinião pública tanto por parte da direita tradicional como da esquerda institucionalista, que assim se revelaram afinadas e aliadas na defesa da ordem questionada pelas ruas. Centrando fogo em ações sem dúvida desnecessárias e contraproducentes, mas bastante minoritárias, como a destruição de pontos de ônibus ou bancas de jornais, tentaram colocar a opinião popular contra ações inteiramente legítimas, do ponto de vista do protesto popular contra uma ordem injusta, como o bloqueio de ruas, barricadas e ataques contra símbolos do grande capital (bancos e sedes de grandes empresas) e do Estado (assembléias e palácios). Tentaram e ainda tentam, mas não foram bem sucedidos até agora. O maior símbolo de seu fracasso, ainda que parcial, foi a inesquecível imagem do Datena (apresentador sensacionalista da TV Bandeirantes) sendo surpreendido ao vivo pela aprovação popular, numa enquete em tempo real que ele tentou manipular, aos “protestos com baderna”. Tenho essa cena gravada e sugiro que a assistam todos que se sintam um pouco deprimidos com as dificuldades da conjuntura…
O “vandalismo” nos protestos foi acusado, de forma grotesca, como motivador da repressão e dos “excessos” da PM (como se algumas vidraças quebradas justificassem atingir os olhos de jornalistas e manifestantes com balas de borracha ou sufocar pessoas – inclusive causando sua morte – com quantidades absurdas de gás lacrimogênio e spray de pimenta, sem falar nos espancamentos) e, assim, por ter “afastado das ruas” milhares de “manifestantes pacíficos”. Mas, mesmo admitindo que foi assim, o que para mim é muito questionável, quem se afastou? E porque?
Uma resposta pode ser sugerida assistindo-se a um dos melhores documentários “ninja” produzidos sobre o protesto, Com Vandalismo (Nigéria Filmes). Percebe-se aí que os manifestantes “pacíficos” e “vândalos” diferenciam-se não apenas pela forma de se manifestar (“pacífica” ou “violenta”) mas também pela origem/posição de classe (os “vândalos” são majoritariamente proletários bem pobres, enquanto os “pacíficos” tendem a ser de classe média mais remediada) e pelos posicionamentos sociais e políticos (o discurso dos “vândalos” é notadamente mais radical e exige mudanças sociais mais profundas). Então, se o “vandalismo” realmente esvaziou os atos (eu penso que foi a repressão estatal que o fez) foi num sentido de torná-los mais radicalizados e mais “populares” (no sentido de “proletários”).
Os papéis tanto da “direita” como do “vandalismo” ficaram muito claros no grande protesto do dia 20/06 na Pres. Vargas no Rio de Janeiro. A extrema-direita fascista se organizou para emboscar os partidos de esquerda e alguns movimentos nas imediações da Candelária (próximo à rua Uruguiana), a massa “cara pintada” convocada pela Globo ficou entre a Candelária e a Central, aproximadamente, e os manifestantes mais radicais (incluindo um grande número de jovens das favelas da região central do Rio) se dirigiram para o início da avenida buscando a direção da Praça da Bandeira e do Maracanã (onde transcorria a partida entre Espanha e Taiti pela Copa das Confederações, lembro bem porque assisti a partida com meus filhos e amigos no estádio e abrimos duas grandes faixas em apoio à Aldeia Maracanã durante o jogo). Essa massa radicalizada entrou em confronto com o imenso aparato policial, detonando uma repressão tresloucada da PM, que perseguiu pessoas por todo o centro do Rio e áreas próximas noite adentro. A essa altura a extrema-direita e os cara-pintadas, com suas bandeiras conservadoras, já haviam se retirado da cena, e não mais voltaram às ruas com a mesma força. Já a parte mais à esquerda e radicalizada, ainda que confusa e com contradições, voltaria à rua pelo resto do ano, aperfeiçoando progressivamente a maneira de combinar os momentos “pacíficos” e “violentos” dos protestos.
“Classe média” e “proletários”, ou “brancos” e “favelados”
Essa questão do “vandalismo” nos então leva a duas outras questões decisivas e relacionadas: a dita “composição de classe” dos protestos e o desmascaramento do caráter brutalmente repressor, racista e burguês do Estado brasileiro. Começarei pela primeira.
Tornou-se rapidamente senso comum a afirmação de que os protestos foram iniciados e sempre dominados por uma classe média urbana, branca, instruída e politizada; e que a participação da “classe trabalhadora” ou da “favela” era secundária ou subordinada. Essa afirmação quase sempre era feita com uma carga negativa, e a mesma depreciação se aplicava à juventude da grande maioria dos manifestantes. Na reportagem “Das redes às ruas” da já citada edição n. 196 da Caros Amigos, o filósofo e cientista político da UFRJ Wanderley Guilherme dos Santos, exemplo de opiniões alarmistas sobre as conseqüências das manifestações (que para ele seriam simplesmente um golpe da direita parecido com 1964), diz: “É um besteirol imenso ficar festejando a juventude. No meu tempo de juventude tinha altruísmo, mas o futuro que a minha geração de idealistas construiu é esse que está aí”.
É muito comum pessoas que na juventude participaram de lutas importantes, mas depois se afastaram de qualquer movimento importante nas ruas, não compreenderem e menosprezarem as novas batalhas travadas pelos jovens. Mas felizmente há os que permanecem jovens na vontade e no inconformismo, como os senhores que protagonizaram uma das mais belas cenas dos protestos, ao levarem uma faixa onde se dizia “a geração de 1968 apóia a geração de 2013”! A generosidade e conseqüência desses senhores é bem ilustrada pelo artigo de Mouzar Benedito na já citada edição especial da revista Fórum, “Aprende-se a fazer fazendo”. Ele compara as formas de comunicação, a improvisação e o enfrentamento com a repressão de 1968 com as de 2013, e mostra que apesar das grandes diferenças há muito mais pontos de contato e convergências. Os jovens de hoje também percebem isso: no protesto de 17/06 aqui no Rio uma das palavras de ordem mais bradadas foi “um, dois, três, quatro, cinco mil; essa é a nova passeata dos 100 mil”!
Sou de uma geração posterior à de 1968, mas na minha juventude (a partir dos 15 anos aproximadamente) participei das lutas finais contra a ditadura, desde as passeatas pela Anistia até as Diretas Já, e das lutas sociais radicalizadas dos anos 80, que culminaram nas greves gerais de 1989 e 1990. Estive ao lado dos jovens de hoje em 2013, inclusive nas barricadas e confrontos, e posso afirmar, ao contrário do filósofo da UFRJ, que encontrei neles altruísmo e camaradagem, pelo menos na mesma medida que havia entre meus companheiros e amigos de 1978 a 1989.
Como em 2013, no início dos protestos, as manifestações de 1968 eram quase inteiramente constituídas por jovens estudantes, que na época eram muito mais de classe média do que hoje. Mas isso não os impediu de se tornarem a vanguarda de lutas radicalizadas e anti-sistêmicas, inclusive da luta armada contra a ditadura. E não representavam “a” classe média como um todo (que se beneficiou largamente do boom econômico sob a ditadura nos anos 70), mas a parte minoritária que se identificava com a situação dos trabalhadores mais pobres e buscava lutar junto a eles.
Não conseguiram. A aliança entre os movimentos de estudantes e as greves “selvagens” de Osasco e Contagem não foi adiante. A brutal repressão militar (tanto sobre estudantes como sobre operários) teve um papel nisso, bem como alguns erros das organizações clandestinas construídas pelos jovens, mas o principal problema foi que não se consolidou um importante movimento dos trabalhadores mais pobres, em especial os negros e moradores de favelas e periferias.
Tal como em 1968, o “problema” hoje não é a juventude nas ruas ter origem na classe média, mas que essa juventude consiga se juntar à vida e à luta dos mais explorados e oprimidos, os trabalhadores, os camponeses, os moradores de favelas e periferias e os sem-teto, o povo negro e os indígenas, um conjunto que, mais por comodidade que por definição sociológica, chamarei de “proletariado”. Não é um problema simples, mas determinadas condições permitem-nos ter esperanças que o desfecho será melhor que em 68.
Primeiro, algumas condições “objetivas”. Atualmente existe, tanto em números absolutos como proporcionalmente, muito mais estudantes universitários de origem proletária que há 45 anos atrás. Eles constituem uma “ponte” natural entre os dois mundos. E também existe hoje um verdadeiro movimento de base nas favelas e periferias (para não falar dos camponeses, quilombolas, indígenas, etc), ainda com muitas deficiências e contradições, é certo, mas real.
Em segundo lugar, uma condição “subjetiva”, quase um “sentimento”. A juventude dos protestos, mesmo aquela que não é da Baixada, de São Gonçalo, do subúrbio e das favelas, tem hoje uma facilidade muito maior em conhecer e se articular com o proletariado. Falo por experiência direta: conheci desde junho muitos jovens da Zona Sul ou de partes ricas da Zona Norte que em muito pouco tempo se aproximaram dos movimentos de favelas e estabeleceram laços de confiança e cooperação, somando-se a um número expressivo que já tinha essa experiência antes do levante.
Porém, por mais que seja importante essa aproximação, o decisivo para o futuro dos protestos está na capacidade dos movimentos proletários expandirem-se na nova conjuntura. Essa avaliação pode parecer a da esquerda tradicional segundo a qual os futuro dos protestos depende da “classe trabalhadora assumir o protagonismo” do movimento. Mas a diferença está no que se considera “movimento proletário”.
A esquerda eleitoral e mesmo a extrema-esquerda partidária quando fala em “movimento da classe trabalhadora” está pensando essencialmente em partidos, sindicatos e centrais sindicais. Mesmo José Arbex Jr, por exemplo, que evoluiu para posições mais radicais nos últimos anos, colocou não só nos partidos e sindicatos em geral, mas especificamente no PT e na CUT (!), o destino dos protestos e de todo o país: “O momento decisivo será a entrada em cena dos trabalhadores organizados em seus partidos e sindicatos. Apenas a ação organizada da classe operária tem a força necessária e suficiente para levar até as últimas conseqüências o movimento por conquistas sociais significativas […] Os dirigentes do PT e da CUT encontram-se agora numa encruzilhada definitiva: ou abraçam suas origens […] ou terão que enfrentar um formidável movimento de revolta que está apenas no seu início. A primeira alternativa conduzirá o Brasil a uma situação progressista […] a segunda estilhaçará o PT e a CUT e lançará o Pais no caos.” (“Dilma: rompa com os patrões!”, em Caros Amigos edição n. 196, junho/2013).
Tenho muita curiosidade em saber o que pensa Arbex hoje após prognósticos tão apocalípticos, depois das “direções do PT e da CUT” não terem feito nenhum movimento no sentido de “abraçarem suas origens”, muito pelo contrário…
Partidos de esquerda e sindicatos (e alguns movimentos como o MST) tiveram sua oportunidade de “momento decisivo” na “paralisação nacional” do dia 11/07, ainda com os protestos quentes, mas o resultado foi um fiasco quase total (aqui no Rio, ainda tivemos que assistir cenas vergonhosas de militantes do PCdoB agarrando black blocs e os entregando à polícia!). Nenhuma outra mobilização convocada e organizada pelas centrais sindicais conseguiu empolgar tanto como as chamadas “espontaneístas”.
Isso não quer dizer que o movimento sindical passou em brancas nuvens 2013. Como parte da multiplicação de lutas desde junho, o número de greves e paralisações teve um aumento expressivo, e em diversas categorias começam a germinar movimentos que questionam a burocratização e acomodação dos sindicatos. Os resultados maiores ainda estão para se ver, mas um caso específico mostra a potencialidade da luta sindical dos trabalhadores, quando seus métodos específicos são combinados com as novas formas de luta surgidas ou aperfeiçoadas no levante. Claro que estou falando da greve dos professores da rede pública do Rio de Janeiro entre agosto e outubro.
A greve foi deflagrada em assembléias nada massivas, contra a vontade da direção do Sepe (Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação), e parecia ser uma aventura de “anarquistas”, mas logo tornou-se uma mobilização impressionante da categoria, impulsionada principalmente pela conjuntura geral. A greve tornou-se o estopim para a retomada dos protestos populares em níveis semelhantes aos de junho, mostrando que a situação continua madura para novos levantes, desde que haja a combinação favorável de circunstâncias.
Para a categoria, os resultados (econômicos) foram decepcionantes, mas o aprendizado político foi fundamental. Em próximas greves, é preciso levar em conta uma deficiência fatal dessa última: o baixo envolvimento de alunos e pais com a greve, o que poderia ter feito toda a diferença, pois no setor de serviços públicos a pressão sobre o patrão (o Estado) é menos econômica (pois não existe aqui a possibilidade de “redução dos lucros”) que política (perspectiva de quebra de legitimidade e perda de votos), e nisso os “usuários” dos serviços têm papel fundamental. Esse foi um dos segredos da Comuna de Oaxaca no México (2006), que começou com reivindicação de professores e tornou-se uma experiência profunda de poder popular, cujas conseqüências para a luta proletária naquele país se fazem sentir até hoje. Os professores de Oaxaca e outras regiões do México têm um trabalho orgânico profundo com as comunidades indígenas, os principais “usuários” de seus “serviços”. Algo semelhante precisa ser construído entre os professores, as favelas e os bairros de periferia nas cidades brasileiras.
É bastante provável que a retomada de lutas sindicais se concentre nas categorias de serviço público, e isso cria um potencial de envolvimento da população muito importante. Em “A construção da estratégia…” já havia abordado em parte essa possibilidade:
“[…]o setor que mais têm se destacado, em volume e radicalização, nas lutas sindicais têm sido o dos “serviços”: educação, saúde, energia, comunicações, transportes, infraestrutura e administração urbana em geral. Foram estes, por exemplo, que fizeram as grandes greves e manifestações do final de 1995 na França, que marcou a retomada de grandes lutas sindicais na Europa. Isso não acontece por acaso, estes setores de “serviços” são precisamente aqueles em que o capital mais investe atualmente e nos quais busca criar novos campos de acumulação (daí a pressão para a privatização daqueles que ainda são em grande medida serviços públicos) que compensem o congestionamento de capital nos setores industriais tradicionais. Por conseguinte, o proletariado destes setores não só cresce numericamente em comparação com o dos setores industriais, mas é submetido a pressões de aumento das taxas de exploração significativamente maiores que a classe operária tradicional.”
O que faltou foi fazer a ligação com essa outra avaliação fundamental, que vou citar aqui embora seja um trecho longo, pois me economiza explicar o que entendo por “movimento proletário” atualmente:
“Porém, o mais importante é a contínua e crescente movimentação de classe dos setores mais empobrecidos e explorados: desempregados (subempregados, mal-empregados) em geral, habitantes das periferias, guetos e ruas, camponeses sem-terra, imigrantes e etnias oprimidas, etc. Temos defendido há algum tempo que esse é o setor mais dinâmico e de maior capacidade ofensiva do proletariado atualmente, e os últimos anos têm confirmado essa avaliação. Não se trata apenas da multiplicação quantitativa de motins, saques, ocupações, bloqueios e outras formas de luta que aos poucos vão se consolidando e se aperfeiçoando e se tornando tão características desse setor de pobres como as greves se tornaram em relação à classe operária tradicional. Trata-se que essas lutas vão se tornando cada vez mais organizadas e planejadas, mais efetivas em atingir o inimigo de classe, e mais decisivas em momentos concentrados de lutas de classes: levantes e insurreições. Desde os motins de Los Angeles em 1992 (ou antes, desde o caracazo venezuelano em 1989), têm se tornado mais freqüentes as ocasiões em que a movimentação de massas dos mais pobres determinou a direção de mudança das correlações de força e dos confrontos de classe: Chiapas em 1994, Albânia em 1997, Indonésia em 1998, Equador em 2000, Palestina (nova Intifada) em 2000, Argentina em 2001, Venezuela (insurreição que derrotou a tentativa de golpe) agora em 2002… Em alguns países latino-americanos, como Equador, Bolívia e principalmente a Argentina, bloqueios de estradas e outras formas de interromper a circulação de mercadorias já se converteram numa forma regular de luta econômica dos proletários mais pobres, com eficácia crescente. O mesmo acontece com as ocupações de terra (rurais) e terrenos em várias partes do mundo.”
O levante brasileiro de 2013 comprova este teorema? À primeira vista parece que não, mas é fato que as pautas das favelas, periferias, quilombolas, indígenas, sem-teto e juventude negra têm ocupado um papel cada vez mais central nas lutas desde junho, e marcaram o clima de tensão social que precedeu o levante. Aqui no Rio, boa parte do que aconteceu a partir de junho nas ruas foi antecipado na luta em torno da Aldeia Maracanã (ocupação do antigo Museu do Índio). Em todo o Brasil, os conflitos envolvendo a resistência indígena e a demarcação de terras se agravaram progressivamente nos últimos anos, chegando a um ponto de enfrentamento armado em vários casos (guarani-kaiowá, terena, povos do Xingu contra Belo Monte, etc). O mesmo em relação aos quilombolas, praticamente no país todo. Em São Paulo, o maior conflito antes da explosão de 2013 foi a batalha da Ocupação Pinheirinho no início de 2012, que teve repercussão nacional, e desde agosto desse ano, pelo menos, temos visto o maior ascenso dos últimos anos de ocupações de sem-teto e lutas contra despejos no estado. Os exemplos são muitos e se multiplicam…
Mas é na exacerbação da guerra brutal entre o proletariado e o braço armado do Estado racista e capitalista que toda a potencialidade e o drama da situação aberta pelos levantes de junho se revelam.
“A polícia que reprime na avenida é a mesma que mata na favela”
Essa frase, de um dos novos movimentos em que milito , foi posta numa faixa que estreou no protesto de 20/06 na Pres. Vargas. Reapareceu no dia 25/06 na Maré, no protesto dos moradores contra a chacina da noite anterior. As fotos com ela viralizaram rapidamente nas redes sociais e a frase virou meme na Internet. Isso só pode significar que tais palavras exprimiram uma identificação súbita entre as pessoas nas ruas tomadas pela insurgência, e as pessoas submetidas ao Estado de sítio permanente nas favelas e periferias.
Dificilmente os protestos de junho teriam a dimensão que tomaram se o Estado, através de sua face mais assassina, a Polícia Militar, não decidisse extinguir no nascedouro a rebeldia impertinente dos manifestantes. Foi o massacre e as prisões em massa (mais de 200 manifestantes) no protesto de 13/06 em São Paulo que geraram indignação nacional e acenderam o rastilho para a explosão nas ruas nas semanas seguintes.
A PM utilizou nas ruas apenas um limitado subconjunto do repertório de atrocidades que aplica regularmente nas quebradas e favelas para “disciplinar” o povo descendente de africanos e indígenas, e sustentar a ordem perversa dessa sociedade ainda em grande medida escravocrata e colonial. Mas foi o suficiente para despertar para a realidade aqueles ativistas, ou mesmo militantes de longa data que, mergulhados até então numa rotina de vida “pacífica”, ou em movimentos institucionalizados e bem comportados, nunca haviam contemplado a face medonha do apartheid brasileiro.
Houve, é claro, e ainda há, uma tendência de certos setores (principalmente jurídicos e acadêmicos) a restringir a denúncia do Estado da “ditadura democrática” às violações cometidas contra as manifestações. Mas aos poucos a compreensão de que a brutalidade dirigida aos protestos é apenas um caso particular e limitado de uma realidade permanente de exceção e genocídio vai se impondo. Aqui no Rio, o caminho para essa compreensão foi aberto traumaticamente, durante o levante, pela chacina da Maré, e depois, pelo seqüestro, tortura e assassinato de Amarildo de Souza pela UPP da Rocinha.
Daí a importância do posicionamento de acadêmicos como Giuseppe Cocco, professor da UFRJ com inequívoca formação e experiência de vida européia, que conseguem por em primeiro plano a característica fundamentalmente racista e colonial da sociedade brasileira, como na entrevista de 07/12 ao Instituto Humanitas Unisinos:
“O movimento [dos levantes de junho e outubro] não apenas nos diz que a separação da fonte (o povo) vis-à-vis do resultado (os representantes) é imoral, mas explícita, e torna visível que essa dimensão imoral do poder está baseada na violência de suas polícias. Ou seja, o movimento teve a capacidade de mostrar para o Brasil e para o mundo as dimensões perversas do monopólio estatal do uso da força no Brasil; um regime de terror de Estado que, por meio do regime discursivo sustentando pela mídia da elite neoescravagista, é tratado como se fosse ‘externo’ e independente dos governos […] Seria irônico se não fosse o cúmulo do cinismo escravocrata. É que a forma espúria de agir do Estado, ou conluio generalizado entre forças de polícias e crime organizado, no meio da histeria repressiva contra o tráfico de drogas, funciona como principal mecanismo de legitimação da guerra contra os pobres e contra suas mobilizações democráticas. Como sempre fez, desde junho, o poder multiplica os boatos sobre participação do narcotráfico nas mobilizações democráticas. Na senzala — ou seja, nas favelas, subúrbios e periferias — o terror anda a pleno vapor, quer a polícia seja do PSDB, do PT, do PSB ou do PMDB. É um terror estatal com vieses classistas e, sobretudo, racistas […] O que o movimento fez e faz não é praticar a violência, mas tornar explícita e visível a violência do poder e seus sistemas de (in)justiça, como do caso Amarildo […] A mesma coisa aconteceu com os mais de 10 moradores assassinados na favela da Maré em junho, durante o movimento, pela “Tropa de Elite” da PM do Rio e em relação à qual sequer existe um procedimento disciplinar. O movimento mostrou que os moradores da senzala não têm cidadania nem direito de lutar. A chacina da Maré foi um recado claro, genuinamente neoescravagista, aos pobres: vocês não têm direito de lutar e se lutarem serão mortos. Essa é a democracia que vivemos: não nos grotões do Brasil remoto, mas na metrópole olímpica, o Rio de Janeiro.”
Faltou acrescentar, ou destacar, que o “movimento” que revelou tudo isso não foi, em primeiro lugar, os protestos no centro da cidade, mas os protestos dos próprios favelados: dos moradores da Maré que desafiaram a PM que cercava a Nova Holanda e o Parque União em 25/06, e que forçaram a retirada do caveirão; e a dos parentes, vizinhos e amigos de Amarildo, que fecharam mais de uma vez o túnel Zuzu Angel em São Conrado, impedindo que o caso se tornasse mais um perdido e esquecido nas estatísticas policiais.
A luta aberta e inadiável contra esse terror de Estado tem que estar no centro das mobilizações doravante, para que toda a energia desatada pelos levantes não termine como uma distração passageira na longa história de silêncio e segregação do Brasil. Alguns avanços neste sentido já aconteceram, como a difusão da campanha pela desmilitarização das polícias, e a importante mobilização contra o genocídio do povo negro em Salvador, mas o principal é estender as estruturas e redes criadas contra a repressão nos protestos, para a proteção dos habitantes das favelas e periferias. Na Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, há muito estabelecemos que um trabalho orgânico de autodefesa jurídica calcada em direitos humanos, e de denúncia qualificada utilizando as técnicas de comunicação e mídia alternativa, são essenciais para apoiar a resistência cotidiana dos povos contra a violência estatal.
No levante de junho, em pouco tempo se constituíram redes voluntárias de advogados e juristas (aqui no Rio através de grupos como o Habeas Corpus e instituições como a OAB e o IDDH) por um lado, e redes e grupos de midiativistas e comunicadores (os chamados “ninjas”), que tiveram papel fundamental na continuidade dos protestos. Isso mostra que há uma profunda analogia entre a resistência ao terror de Estado na favela e no “asfalto”. Mas é preciso descobrir como levar o ativismo jurídico e o midiativismo do “asfalto” para o terreno estranho e sombrio das quebradas ocupadas ou sitiadas pela polícia mais brutal do planeta.
2014?
Amanhã já será dia de voltar às ruas. Em épocas insurreicionais, os momentos da reflexão e da ação não têm como ser claramente separados. Mas temos que aperfeiçoar tanto a ação como a reflexão, porque os desafios das lutas em 2014 serão significativamente maiores que os de 2013. As oligarquias já se movem para saber como dosar repressão e engano neste ano que juntará Copa do Mundo, eleições gerais e sabe-se lá o que mais. Temos que nos mover rapidamente para tirar as lições da quantidade de fatos descomunais que vivemos em 2013.
Algo importante devemos reconhecer desde já: apesar das coisas grandiosas e novas que vivemos, ainda foram poucas e efêmeras as experiências de construção de órgãos de poder popular, como assembléias populares e comissões de luta por local de trabalho ou moradia. Neste aspecto, o levante brasileiro ainda está bastante aquém de experiências semelhantes em países como México, Argentina ou Bolívia, por exemplo. Descobrir como avançar nesse campo é um dos nossos principais desafios.
E não é um desafio somente para nós do Brasil. Se até junho tínhamos todas as razões para desejar que nenhum de nossos amigos e aliados do exterior viesse para cá engrossar o caldo da festa das elites na Copa, hoje precisamos e muito de sua presença e de sua ajuda. Em 2013 o Brasil, depois de longa espera, entrou finalmente no circuito dos levantes populares mundiais. Em 2014, há toda probabilidade que o país seja a escala mais importante desse circuito rebelde.
“Os grandes acontecimentos
revolucionários possuem a particularidade de que, por mais que tenham
sido antecipados e esperados, não obstante tão logo se produzem,
apresentam-se diante nós, em sua complicação e sua configuração
concreta, como uma esfinge, como um problema que é preciso compreender,
indagar-se e apreender-se em cada uma de suas fibras.”
(Rosa Luxemburgo, “A Revolução na Rússia (I)”, primeiro de uma série de artigos escritos imediatamente após o início da revolução de 1905 no Império Russo. Em Obras Escogidas, vol. 1, Ediciones Era, México, 1978)
(Rosa Luxemburgo, “A Revolução na Rússia (I)”, primeiro de uma série de artigos escritos imediatamente após o início da revolução de 1905 no Império Russo. Em Obras Escogidas, vol. 1, Ediciones Era, México, 1978)
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Opinião certamente herética segundo a maior parte da esquerda ortodoxa, mas a partir dela escrevi e me referi repetidamente a tais rebeliões, desde os levantes negros em Los Angeles de 1992, passando pelo Argentinazo de 2001, a revolta das banlieues francesas em 2005, a Comuna de Oaxaca em 2006, etc.
Claro que tal “obsessão” continha e estimulava também a esperança que explosões semelhantes acontecessem no Brasil mais cedo ou mais tarde. Há algum tempo já havia me tornado descrente de que os partidos de esquerda e movimentos sociais mais tradicionais do Brasil pudessem iniciar alguma movimentação de massas com potencial revolucionário. Por outro lado, já valorizava e participava dos “novos movimentos” que se multiplicavam no vácuo de luta e consciência que partidos e movimentos como o PT e a CUT, e depois os governos por eles hegemonizados, haviam criado.
Mesmo assim, por mais que me dedicasse a vários desses “novos movimentos”, sempre pensei que em alguma hora haveria que acontecer o famoso “salto de qualidade”, que unisse tantas lutas e resistências fragmentárias em algum tipo de levante de massas, sem o qual as perspectivas revolucionárias de tais movimentos pioneiros ficariam muito restritas.
Em junho desse ano essa esperança acalentada durante tantos anos começou a concretizar-se. O júbilo (não consigo encontrar outra palavra para descrever meus sentimentos) foi tão grande que a última coisa que pensei foi escrever sobre os levantes populares. Ir às ruas, aos confrontos, às barricadas, registrar e divulgar tudo isso, era o que mais importava. Ainda acho que, no fundo, é o que importa. Mas a advertência de Rosa na epígrafe acima também é fundamental. É preciso enfrentar a esfinge, com as ferramentas analíticas que exigem tempo, foco, reflexão, e se expressam muito melhor na escrita.
Não tenho certeza se tal análise já seja plenamente possível. A voragem não acabou, temporadas rebeldes ainda assomam no horizonte. Mas vi tantas “análises” apressadas e disparatadas feitas por gente que não só não participou, como assumiu uma posição quase hostil frente aos levantes, e isso me parece que obriga a quem mergulhou nas lutas desde o início, e não se abalou com muitas coisas realmente estranhas que aconteceram, a também deixar seus rabiscos como contribuição.
Era óbvio?
Seguindo um padrão de “análises de conjuntura” supostamente marxista, muitos buscaram compilar dados econômicos e sociais que mostrassem uma situação deveras insuportável que explicasse uma explosão tão inesperada de gentes na rua. Certamente chamaram a atenção para coisas relevantes, como a péssima qualidade dos serviços públicos no país e outras realidades que, de toda forma, estão longe de ser novidade.
A vida sob o capitalismo não tem como não ser insuportável, se levarmos em conta todo seu desenvolvimento histórico e sua extensão mundial. Toda a arte de dominação das oligarquias mundiais consiste precisamente em obrigar os dominados a suportarem o insuportável. O que tem que ser explicado é como e quando falha essa arte dos dominadores.
Os levantes de junho no Brasil de forma alguma podem ser colocados na mesma categoria, quanto às suas motivações iniciais, que o Caracazo, o Argentinazo, ou mesmo as revoltas árabes e os movimentos europeus que se sucedem desde 2008. Nestes casos, havia uma situação econômica bastante exasperante empurrando massas do povo para o protesto de rua.
Entretanto, muitos outros levantes pelo mundo não precisaram de uma conjuntura econômica particularmente dramática para acontecer. A brecha no cotidiano de dominação pode nascer de conflitos sociais localizados amadurecidos ao longo do tempo até chegarem ao ponto de ruptura. Assim foi em Los Angeles em 1992, em Oaxaca em 2006, na França em 2005 ou no Chile nos últimos anos, por exemplo.
Aproximaram-se mais de uma “explicação” quem buscou as raízes da revolta na deterioração acelerada da mobilidade urbana nos últimos anos no Brasil, que se liga a uma série de outros conflitos urbanos que tem se agravado em função do próprio “boom” econômico da última década. Assim fez, por exemplo, Ermínia Maricato em entrevista na edição especial da revista Fórum de julho de 2013 (n. 124, ano 12). Segundo ela, “uma das coisas que era óbvia para todo mundo era a condição de vida insuportável das cidades brasileiras”.
Como já disse, dizer que a vida sob o domínio do capital é insuportável é de fato bastante óbvio, mas isso não explica nada. Se era tudo tão “óbvio”, porque não foi previsto? Ok, tudo bem, exigir previsão é demais, ciência social não é bola de cristal. Mas porque a grande maioria destes pensadores que vieram com análises tão bem elaboradas sobre as “crises” que motivaram a revolta, em geral NUNCA apoiaram os movimentos, invariavelmente não institucionalizados, que atuam sobre os conflitos urbanos há muito tempo?
A própria Ermínia Maricato nunca foi muito próxima dos movimentos pautados pelas ações diretas e de rua em São Paulo, como o MPL (Movimento Passe Livre) e o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), e sempre orientou-se por aqueles “movimentos” mais institucionalizados, pautados por co-administrar projetos de alcance reduzido numa parceria espúria com o poder público, em fóruns que sugam a energia militante dos ativistas enquanto a crise urbana se agrava. Sua miopia política permanece, quando classifica de “bom” o discurso de Dilma em junho, no auge dos protestos, quando fez promessas vagas que não tiveram grande desdobramento até hoje. Segundo Maricato, foi positivo que Dilma “não ficou falando de baderna”, mas ela falou sim de “vandalismo” e não citou nem uma única vez a questão da brutal repressão policial às manifestações.
“Falta uma pauta”
O problema geral das análises que se concentram nas ditas “causas objetivas” dos levantes repentinos é conduzir a um raciocínio que deprecia os elementos de consciência e organização presentes em quaisquer lutas que durem mais que um par de horas. Assim, “espontâneo” vira sintoma de algo puramente reflexo, como se as massas do povo reagissem de maneira puramente animal às tais “causas objetivas”. Tal como na social-democracia do século passado, criticada por Rosa Luxemburg, esse tipo de visão só considera “organizado” o que se enquadra nos partidos e sindicatos adaptados à disputa rotineira das eleições e dos acordos coletivos.
A crítica ao “espontaneísmo” das manifestações manifestou-se igualmente na afirmação de que, após a derrubada dos aumentos das tarifas em 19 e 20/06, “faltava uma pauta” ao movimento para que a energia de tantas pessoas nas ruas simplesmente não se dissipasse. Tal crítica partiu indistintamente tanto da “direita” (a grande imprensa e figuras públicas da velha oligarquia) como da “esquerda” (o PT e aliados e também a esquerda de oposição), e foi imediatamente seguida por uma sucessão de tentativas de impor uma certa “pauta” aos protestos. Quer dizer, ao se dizer “falta uma pauta” se queria dizer na verdade “sigam minha pauta”!
As oligarquias mais tradicionais (a “direita” histórica) propuseram de forma totalmente oportunista uma “pauta” moralista, abstratamente anti-corrupção, aproveitando-se do sentimento difuso de repúdio ao sistema político apodrecido que existia e existe entre as pessoas. Tiveram um êxito inicial, porém muito breve, mesmo assim isso ajudou a dar base a certas análises apressadas de que “a direita havia se apoderado dos protestos” (voltarei a isso). Já as novas oligarquias representadas pelo PT e movimentos associados responderam conclamando a uma reunião em torno da “pauta” apresentada por Dilma em seu pronunciamento ainda em junho, principalmente a “reforma política”, que pudesse incluir até uma nova constituinte.
Ambas tentativas fracassaram, e é possível que muitos vejam nisto a razão para os atos terem perdido o caráter massivo nos meses seguintes (até outubro, no Rio de Janeiro). Mas a verdade é que, ainda em junho, nos protestos que continuaram até o final da Copa das Confederações, a “pauta” geral que a maior parte das pessoas na rua abraçou, além do repúdio à repressão brutal (também voltarei a esse ponto fundamental), foi a exigência de serviços públicos decentes, principalmente na saúde e na educação, exigência intimamente associada à denúncia dos gastos absurdos nos estádios e outras estruturas visando a Copa de 2014 e (no Rio) as Olimpíadas de 2016. Pauta essa cultivada por anos a fio por movimentos sociais de base e incompatível com os interesses das oligarquias velhas e novas.
E está longe de ser uma pauta genérica e mal-definida. Claro que nem todo manifestante saberia indicar com exatidão quais medidas ou reformas propõe para se conquistar serviços públicos acessíveis e de qualidade, mas sempre foi assim em movimentos verdadeiramente de massas. Os detalhes dos “programas” e das reivindicações são de domínio dos militantes mais ativos e dedicados (ou dos “dirigentes”, nos movimentos mais hierarquizados), mas isso não nega sua organicidade. Uma enorme multiplicidade de movimentos e grupos têm realizado encontros, produzido literatura militante e traçado programas de reivindicações nas últimas décadas, e isso forneceu a base para a continuidade das mobilizações quando, a partir de julho, os grandes atos deram lugar a milhares de lutas e protestos menores e mais fragmentados.
Que revolução?
Essa fragmentação, claro, serviu para um outro tipo de crítica do tipo “falta uma pauta”, dessa vez por parte de setores de esquerda anti-sistêmicos que lamentaram os protestos não adotarem suas propostas e “programas” revolucionários. Criticava-se (e critica-se) o fato dos movimentos não adotarem uma postura “claramente socialista” e buscarem explicitamente “a derrocada do Estado burguês”.
A questão toda aqui é se existe hoje “clareza” em algum lugar sobre como desestruturar o Estado, ultrapassar o capitalismo e construir uma nova sociabilidade melhor, igualitária e livre. Vivemos já há algumas décadas uma época de transição histórica profunda, na qual os grandes movimentos anti-sistêmicos estruturados desde o século XIX ou mesmo antes (socialismo, anti-colonialismo e suas numerosas variantes) chegaram aparentemente ao seu apogeu sem destruir definitivamente o sistema mundial capitalista, embora modificando-o profundamente. As estratégias de revolução concebidas ao longo do século XX encontram-se todas em crise, o que não tem um aspecto puramente negativo.
Tais afirmações não querem dizer que vejo tudo como uma indefinição tão grande que não haveria hoje caminhos ao menos para se tentar decifrar os rudimentos de novas estratégias revolucionárias globais. Muita coisa já está sendo pensada e formulada nesse sentido, em todo o mundo. Não cabe aqui aprofundar, pois ficaria um texto extremamente longo, mas quero dizer que eu também tenho buscado nesse sentido já faz algum tempo. Em 2002 escrevi um texto bastante pesado e que eu mesmo acho difícil de ler, com um título meio pedante (“A construção da estratégia é a chave para a vitória revolucionária”), e que circulou somente para um número restrito de pessoas (nas referências bibliográficas acadêmicas seria mimeo), o qual citarei algumas vezes mais adiante, e no qual traço um conjunto bastante amplo de questões que podem servir de roteiro auxiliar para uma elaboração estratégica, mas há poucas conclusões. Posteriormente, diversos aspectos refinei, revisei e aprofundei em outros escritos, mas ainda não há muitas conclusões. Não vejo como ser diferente atualmente, é necessário um processo bastante árduo de aproximações, que só podem ser feitas se mergulhamos sem receio no turbilhão das revoltas espontâneas que se sucedem em todo mundo.
Portanto não vejo como criticar os protestos e os movimentos do levante brasileiro por não terem “clareza revolucionária”. O que podemos “exigir”, de um ponto de vista anti-sistêmico, é que os novos movimentos sejam fiéis aos seus próprios postulados radicais.
Vejamos o exemplo do MPL, que tem em sua carta de princípios a definição anticapitalista. Pode-se questionar, com alguma razão, que esse anticapitalismo, na prática, se expressa apenas em metodologias organizacionais (horizontalidade, independência, etc) e não se fala claramente em abolição da propriedade privada dos meios de produção e das relações mercantis, fundamentos do capitalismo nas relações econômicas. Contudo, o programa do MPL, no seu campo específico de atuação, tem como bandeira “emergencial” a tarifa zero para os transportes coletivos urbanos, que é incompatível com relações de mercado. No mínimo, a tarifa zero introduz, caso o serviço concreto – valor de uso – do transporte continuasse a ser prestado por empresas privadas, uma tensão insuperável entre o Estado subsidiador e o capital em busca de lucro máximo.
Mas o programa do MPL não pára na tarifa zero. Sua carta de princípios coloca como objetivo “uma outra lógica de transporte”, “um transporte gerido pelo interesse dos trabalhadores. Não as empresas, os políticos ou os técnicos que devem definir como deve funcionar. Quem tem autoridade para dizer como o sistema de transporte vai ser administrado é quem o utiliza todo dia” (declarações de Caio Martins, ativista do MPL/SP, na reportagem “Por uma vida sem catracas”, na já citada edição especial da revista Fórum de julho). Uma rota de luta claramente incompatível com o capitalismo.
Mas não há como ser anticapitalista numa luta específica pois o capitalismo é um sistema global, reclamarão os revolucionários socialistas ortodoxos. Sim, mas se cada movimento persiste no seu radicalismo e se todos se encontram na insurreição, essa limitação se supera, na prática, como deve ser, e não na pura teoria.
Essa discussão se aplica igualmente aos movimentos que combatem as chamadas “opressões específicas”, como os movimentos feministas, LGBT, etc (os movimentos anti-racistas têm um estatuto e um significado um tanto diferente; no Brasil, são muito mais “gerais” que “específicos”, falarei deles mais adiante), e que não por acaso tiveram um espaço destacado nos protestos desse ano. Muitas vezes se produz uma crítica “de esquerda” a tais movimentos porque eles não levariam em conta o “sistema como um todo”, não adotariam, junto com suas pautas específicas, um “programa revolucionário geral”, etc. Bem, tais movimentos, se forem radicais (radicalmente anti-machistas, anti-homofóbicos, anti-criminalização das drogas, etc) serão anti-sistêmicos, anti-capitalistas. E a superação das suas “particularidades” não é uma questão a ser resolvida teoricamente, mas praticamente, na prática do levante, da insurreição.
Partidos, de vilões a vítimas e vice-versa
Relacionada às criticas de “falta de pauta” e “falta de clareza revolucionária”, está a crítica aos protestos por manifestarem uma tendência “violentamente” anti-partidos. É uma crítica bem mais especificamente “de esquerda”, proveniente da esquerda partidária, é claro. A oligarquia brasileira tradicional, com seus partidos de direita já profundamente desgastados, concluiu que era oportuno se aproveitar do sentimento anti-partido para buscar atacar a “esquerda” governista e a extrema-esquerda oposicionista através do discurso difuso da anti-corrupção. E a extrema-direita fascista resolveu finalmente se expor e partir para a tática skinhead de comprar briga de rua com a extrema-esquerda partidária. Ganharam as brigas mas erraram o alvo, falarei disso mais adiante.
Seja como for, essa explosão de truculência fascista, se aproveitando do sentimento anti-partido, foi o momento mais confuso dos protestos. Ouvi companheiros profundamente desolados falarem que “havíamos sido derrotados”, “a direita tomou conta dos protestos”, “o fascismo está crescendo”, etc. Muitos se retiraram das manifestações. E até movimentos apartidários que estavam na linha de frente desde o início vacilaram e quase recuaram. Foi muito estranho. Mas foi só um momento.
A esquerda partidária, é claro, trata a posição anti-partido como um erro simplesmente. Atribuem-na a uma campanha sorrateira da grande imprensa e à inconseqüência do “anarquismo”. A extrema-esquerda partidária reconhece a contribuição que o oportunismo e a degeneração política do PT, PCdoB e outros deram a tal sentimento, mas insiste que se trata de uma “falsa lógica, segundo a qual todos os partidos são iguais, daí a rejeição” (declaração de Ivan Valente, deputado federal do PSOL, na reportagem “Os Descontentes Políticos”, na edição n. 196, junho de 2013, da revista Caros Amigos). Essa posição aproxima-se curiosamente de certo discurso da grande imprensa segundo o qual o problema do sistema político da democracia representativa liberal estaria simplesmente nos desvios “de corrupção”.
Outra parte da extrema-esquerda partidária, aquela que participa de eleições mas não tem praticamente nenhuma expressão eleitoral, e contra a qual acusações de corrupção são bem frágeis (a não ser para certas utilizações escusas da máquina burocrática dos sindicatos), centra suas críticas, por sua vez, na “inconseqüência” do anarquismo/autonomismo. Diante disso, o historiador da USP Lincoln Secco, na mesma reportagem “Os Descontentes Políticos” perguntou com razão: “Mas se um partido teria sido mais eficiente do que o MPL então por que nenhum dos partidos disponíveis de extrema esquerda foi seguido pelas ‘massas’?”
Na mesma edição da Caros Amigos, na entrevista “A tarefa é fortalecer as lutas sociais”, o militante do MTST/SP, Gabriel Simeoni, aproximou-se de uma resposta ao afirmar que “se alguém aparecer com alguma bandeira de algum partido, seja do PT, do PSOL, do PSTU ou do PCO numa manifestação, soa como oportunismo eleitoral, não é uma aversão aos partidos, é uma aversão às eleições”. Sim, mas é um pouco mais que isso. Não só grupos de partidos, mas inclusive grupos de movimentos como o MTST e o MST, por exemplo, também foram hostilizados, embora não participem de eleições, é óbvio. Entretanto, na estética dos protestos, pareciam-se com as colunas partidárias por comportarem-se com uma certa “uniformidade” de bandeiras (quase sempre vermelhas), e às vezes de bonés e camisetas. A grande maioria dos manifestantes fugia conscientemente dessa uniformidade, e mesmo sendo “massa” (no sentido de quantidade), e exatamente por serem multidão revelarem sua potência nas ruas, cada pequeno grupo ou manifestante fazia questão de marcar sua individualidade carregando sua própria faixa e seu cartaz, revivendo inclusive a técnica básica da cartolina e hidrocor, uma das marcas registradas dos protestos de 2013.
Essa divergência estética reflete também uma diferença de ação política. As faixas e cartazes dos manifestantes “não-uniformizados” não reproduziam siglas, símbolos ou logotipos de partidos ou movimentos, mas tinham cada uma sua própria mensagem, reivindicação, crítica, sarcasmo, desabafo, enfim, essa explosão de criatividade popular que foi um dos tantos milagres de um ano tão miraculoso.
Abro aqui parênteses. Não acredito que “uniformes” sejam algo totalmente ultrapassado e inútil na luta social anti-sistêmica. Mas penso que sua utilidade se reduz cada vez mais à sua função original na técnica bélica/militar: identificar com a maior precisão possível quem é amigo e quem é inimigo no campo de batalha. Muitos grupos que nos protestos empenhavam-se nos confrontos com a polícia usaram muito eficientemente bandeiras com esse propósito. A própria tática black bloc, longe de ser puro esteticismo (como já ouvi várias vezes), em parte é uma recuperação dessa função primordial do uniforme. Fecha parênteses.
O “desgaste” dos partidos é parte da exaustão dos processos políticos dominantes desde o século XIX, o que inclui mas não se resume aos mecanismos eleitorais da democracia representativa. O que vemos em todo mundo é uma demanda incontida de participação direta nas decisões públicas, um repúdio veemente às oligarquias, elites, hierarquias e “direções” que buscam monopolizar as escolhas políticas que dizem respeito à toda sociedade através de mecanismos opacos e pouco compreensíveis à grande maioria das pessoas. Nem a representação através de eleições periódicas com sufrágio universal, o máximo que a elite capitalista ocidentalizada do mundo aceita como “participação”, dá conta disso. Os partidos, parte inseparável desse sistema capenga, entram em crise irremediavelmente porque, sejam eleitorais ou não, reacionários ou revolucionários, concebem-se e existem como instrumentos de poder distintos dos organismos de poder não concentrado ou hierarquizado, que potencialmente criam o que chamamos poder popular.
Essa não é uma posição que assumo de forma oportunista, embriagado pelos acontecimentos deste ano. A reformulação profunda da visão que eu tinha dos partidos já tem bem mais de uma década, e a parte final do texto mimeo de 2002 do qual já falei mais acima (“A construção da estratégia…”) é dedicada somente a isso, inclusive com uma resenha histórica resumida sobre a evolução da concepção de partido revolucionário. Acho que até vale a pena divulgá-la como artigo em separado, mas por enquanto cito apenas um trecho, que também serve para mostrar que, quem repudia a organização partidária, não necessariamente repudia a construção de organizações militantes reunindo pessoas com objetivos revolucionários:
“A completa superação da concepção da organização militante como instrumento de poder é essencial para a construção conseqüente de organizações revolucionárias e para um trabalho que leve as organizações de lutas de massas a se tornarem órgãos de poder popular. Contudo, se abandonamos essa concepção, não existe mais nenhuma justificativa para chamarmos as organizações militantes de partidos. Não se trata de um expediente tático, pelo fato do termo ‘partido’ estar desgastado ou coisa parecida, mas uma inevitável conclusão conceitual. As organizações militantes revolucionárias do proletariado surgiram como ‘partidos’ porque concebiam-se desde o início como instrumentos de poder. Continuaram chamando-se ‘partidos’, por longo tempo, porque embora desmentida pela experiência histórica, a concepção delas como instrumentos de poder ressurgiu e consolidou-se através das complexas experiências de derrotas e retrocessos das revoluções proletárias dos séculos XIX e XX. Se tirarmos as corretas conclusões de toda esta história, só podemos concluir que estamos nos livrando com muito atraso desse inadequado termo ‘partido’.”
“Direita” e “vandalismo”
Lembro de uma reunião, ainda em junho, na qual participei, onde se debatia calorosamente se os protestos tinham um caráter emancipador, progressista, ou ao contrário seriam reacionários e até mesmo “fascistas”. Intervi dizendo que, em algo tão grande como uma autêntica insurreição popular, e a reação contra-revolucionária que a segue, é inevitável que o melhor e o pior que existe na sociedade se revele, se exponha, mas que isso não pode nos levar a perder o foco.
Entres os candidatos a “pior da sociedade” que se revelaram a partir de junho, duas coisas bem diferentes se destacaram: os grupos, bandeiras e reivindicações de extrema-direita; e a violência contra bens materiais e, em escala bem menor, pessoas ligadas ao aparato político e policial.
A súbita irrupção das sombras fascistas atordoou a esquerda e os movimentos sociais, mas foi pouco evidenciada pela grande imprensa. Mas no fundo não revelou nada de novo. Grupos fascistas têm proliferado meio silenciosamente no Brasil já há algum tempo, e nunca foram de fato confrontados pelos movimentos progressistas. Esse crescimento na penumbra política foi, na verdade, muito favorecido pela vergonhosa conciliação que marcou a transição da ditadura civil-militar para a “democracia” nos anos 80 do século passado, e que deixou intocados tanto o essencial do aparato repressivo da tirania (polícia militar e civil, oficialato das forças armadas, justiça militar separada, órgãos de inteligência e monitoramento dos movimentos populares, etc) quanto os crimes de tortura, desaparecimento forçado e assassinatos cometidos por mais de 20 anos quando a extrema-direita esteve abertamente controlando o poder de Estado.
Por outro lado, já há alguns anos uma insidiosa afirmação de reivindicações ultra-conservadoras, como a redução da maioridade penal e a grita por endurecimento penal em geral, retorno do ensino religioso nas escolas públicas (do qual se favorecem as religiões cristãs, hegemônicas, é claro), definição de leis “anti-terroristas” e outras que apontam para o renascimento da idéia de “segurança nacional”, combinam-se com a repetição de atos e movimentos abertamente racistas, sexistas e homofóbicos. Mas tudo isso acontece de forma contraditória, pois ao mesmo tempo há uma afirmação crescente e pública, como não se via há muito tempo, de visões e movimentos que desafiam de forma muito aberta os padrões cristãos/ocidentais/masculinos/repressores dominantes, e que em alguns casos conquistaram marcos institucionais importantes. O que se observa, portanto, é muito mais uma polarização entre posições neo-conservadoras e progressistas, que o fortalecimento indiscutível do atraso. Mais um sinal de tensões sociais crescentes na sociedade brasileira.
O aparecimento disso tudo na rua foi, assim penso, algo no fundo positivo, pois obrigou a “cair a ficha” de muita gente. Mostra que as forças da mudança precisam se organizar e se mobilizar muito mais, e não se acomodarem com pequenos avanços na lei ou com a multiplicação de pesquisas acadêmicas progressistas, por exemplo. Mas de modo nenhum mostrou uma força irresistível da extrema-direita. Sua pujança sumiu quando resolveu convocar atos exclusivamente em torno de suas bandeiras moralistas e por “mais segurança”, grandes fracassos. Aqui no Rio, não conseguiram nem mesmo polarizar a massa católica de “peregrinos” durante a Jornada Mundial da Juventude para massacrar uma minoritária mas significativa Marcha das Vadias. Os bandos fascistas que agrediram militantes de partidos e movimentos, por sua vez, logo se retiraram de cena e voltaram a atuar exclusivamente no seu habitat natural, os aparatos repressivos do Estado.
O chamado “vandalismo”, por sua vez, é algo de fato novo nas lutas sociais no Brasil. Não que atos de depredação material, quebra-quebras e resistência massiva à repressão policial nas ruas fossem inexistentes (em algumas ocasiões houve quebradeiras realmente grandiosas, como a dos ônibus no centro do Rio em 1987), mas a novidade esteve na permanência do desafio à repressão policial mesmo com tanta brutalidade. Manifestantes rapidamente desenvolveram táticas de defesa e ataque para sustentar confrontos durante horas nas ruas, algo que apenas as batalhas entre vendedores ambulantes (camelôs, marreteiros, etc) ou torcedores de futebol, e a polícia (Choque da PM e Guarda Municipal) haviam tenuemente antecipado em algumas cidades brasileiras. Barricadas, cercos, incêndios direcionados, movimentação rápida de manifestantes, todas essas técnicas em muito pouco tempo tornaram-se comuns nos protestos. O medo de enfrentar a polícia, se não desapareceu, enfraqueceu-se de maneira notável. É um dos fatos mais significativos da insurreição popular de junho, um marco nas lutas populares no Brasil. E é mais um milagre de 2013.
O ataque midiático ao “vandalismo” tornou-se por sua vez o centro da disputa pela opinião pública tanto por parte da direita tradicional como da esquerda institucionalista, que assim se revelaram afinadas e aliadas na defesa da ordem questionada pelas ruas. Centrando fogo em ações sem dúvida desnecessárias e contraproducentes, mas bastante minoritárias, como a destruição de pontos de ônibus ou bancas de jornais, tentaram colocar a opinião popular contra ações inteiramente legítimas, do ponto de vista do protesto popular contra uma ordem injusta, como o bloqueio de ruas, barricadas e ataques contra símbolos do grande capital (bancos e sedes de grandes empresas) e do Estado (assembléias e palácios). Tentaram e ainda tentam, mas não foram bem sucedidos até agora. O maior símbolo de seu fracasso, ainda que parcial, foi a inesquecível imagem do Datena (apresentador sensacionalista da TV Bandeirantes) sendo surpreendido ao vivo pela aprovação popular, numa enquete em tempo real que ele tentou manipular, aos “protestos com baderna”. Tenho essa cena gravada e sugiro que a assistam todos que se sintam um pouco deprimidos com as dificuldades da conjuntura…
O “vandalismo” nos protestos foi acusado, de forma grotesca, como motivador da repressão e dos “excessos” da PM (como se algumas vidraças quebradas justificassem atingir os olhos de jornalistas e manifestantes com balas de borracha ou sufocar pessoas – inclusive causando sua morte – com quantidades absurdas de gás lacrimogênio e spray de pimenta, sem falar nos espancamentos) e, assim, por ter “afastado das ruas” milhares de “manifestantes pacíficos”. Mas, mesmo admitindo que foi assim, o que para mim é muito questionável, quem se afastou? E porque?
Uma resposta pode ser sugerida assistindo-se a um dos melhores documentários “ninja” produzidos sobre o protesto, Com Vandalismo (Nigéria Filmes). Percebe-se aí que os manifestantes “pacíficos” e “vândalos” diferenciam-se não apenas pela forma de se manifestar (“pacífica” ou “violenta”) mas também pela origem/posição de classe (os “vândalos” são majoritariamente proletários bem pobres, enquanto os “pacíficos” tendem a ser de classe média mais remediada) e pelos posicionamentos sociais e políticos (o discurso dos “vândalos” é notadamente mais radical e exige mudanças sociais mais profundas). Então, se o “vandalismo” realmente esvaziou os atos (eu penso que foi a repressão estatal que o fez) foi num sentido de torná-los mais radicalizados e mais “populares” (no sentido de “proletários”).
Os papéis tanto da “direita” como do “vandalismo” ficaram muito claros no grande protesto do dia 20/06 na Pres. Vargas no Rio de Janeiro. A extrema-direita fascista se organizou para emboscar os partidos de esquerda e alguns movimentos nas imediações da Candelária (próximo à rua Uruguiana), a massa “cara pintada” convocada pela Globo ficou entre a Candelária e a Central, aproximadamente, e os manifestantes mais radicais (incluindo um grande número de jovens das favelas da região central do Rio) se dirigiram para o início da avenida buscando a direção da Praça da Bandeira e do Maracanã (onde transcorria a partida entre Espanha e Taiti pela Copa das Confederações, lembro bem porque assisti a partida com meus filhos e amigos no estádio e abrimos duas grandes faixas em apoio à Aldeia Maracanã durante o jogo). Essa massa radicalizada entrou em confronto com o imenso aparato policial, detonando uma repressão tresloucada da PM, que perseguiu pessoas por todo o centro do Rio e áreas próximas noite adentro. A essa altura a extrema-direita e os cara-pintadas, com suas bandeiras conservadoras, já haviam se retirado da cena, e não mais voltaram às ruas com a mesma força. Já a parte mais à esquerda e radicalizada, ainda que confusa e com contradições, voltaria à rua pelo resto do ano, aperfeiçoando progressivamente a maneira de combinar os momentos “pacíficos” e “violentos” dos protestos.
“Classe média” e “proletários”, ou “brancos” e “favelados”
Essa questão do “vandalismo” nos então leva a duas outras questões decisivas e relacionadas: a dita “composição de classe” dos protestos e o desmascaramento do caráter brutalmente repressor, racista e burguês do Estado brasileiro. Começarei pela primeira.
Tornou-se rapidamente senso comum a afirmação de que os protestos foram iniciados e sempre dominados por uma classe média urbana, branca, instruída e politizada; e que a participação da “classe trabalhadora” ou da “favela” era secundária ou subordinada. Essa afirmação quase sempre era feita com uma carga negativa, e a mesma depreciação se aplicava à juventude da grande maioria dos manifestantes. Na reportagem “Das redes às ruas” da já citada edição n. 196 da Caros Amigos, o filósofo e cientista político da UFRJ Wanderley Guilherme dos Santos, exemplo de opiniões alarmistas sobre as conseqüências das manifestações (que para ele seriam simplesmente um golpe da direita parecido com 1964), diz: “É um besteirol imenso ficar festejando a juventude. No meu tempo de juventude tinha altruísmo, mas o futuro que a minha geração de idealistas construiu é esse que está aí”.
É muito comum pessoas que na juventude participaram de lutas importantes, mas depois se afastaram de qualquer movimento importante nas ruas, não compreenderem e menosprezarem as novas batalhas travadas pelos jovens. Mas felizmente há os que permanecem jovens na vontade e no inconformismo, como os senhores que protagonizaram uma das mais belas cenas dos protestos, ao levarem uma faixa onde se dizia “a geração de 1968 apóia a geração de 2013”! A generosidade e conseqüência desses senhores é bem ilustrada pelo artigo de Mouzar Benedito na já citada edição especial da revista Fórum, “Aprende-se a fazer fazendo”. Ele compara as formas de comunicação, a improvisação e o enfrentamento com a repressão de 1968 com as de 2013, e mostra que apesar das grandes diferenças há muito mais pontos de contato e convergências. Os jovens de hoje também percebem isso: no protesto de 17/06 aqui no Rio uma das palavras de ordem mais bradadas foi “um, dois, três, quatro, cinco mil; essa é a nova passeata dos 100 mil”!
Sou de uma geração posterior à de 1968, mas na minha juventude (a partir dos 15 anos aproximadamente) participei das lutas finais contra a ditadura, desde as passeatas pela Anistia até as Diretas Já, e das lutas sociais radicalizadas dos anos 80, que culminaram nas greves gerais de 1989 e 1990. Estive ao lado dos jovens de hoje em 2013, inclusive nas barricadas e confrontos, e posso afirmar, ao contrário do filósofo da UFRJ, que encontrei neles altruísmo e camaradagem, pelo menos na mesma medida que havia entre meus companheiros e amigos de 1978 a 1989.
Como em 2013, no início dos protestos, as manifestações de 1968 eram quase inteiramente constituídas por jovens estudantes, que na época eram muito mais de classe média do que hoje. Mas isso não os impediu de se tornarem a vanguarda de lutas radicalizadas e anti-sistêmicas, inclusive da luta armada contra a ditadura. E não representavam “a” classe média como um todo (que se beneficiou largamente do boom econômico sob a ditadura nos anos 70), mas a parte minoritária que se identificava com a situação dos trabalhadores mais pobres e buscava lutar junto a eles.
Não conseguiram. A aliança entre os movimentos de estudantes e as greves “selvagens” de Osasco e Contagem não foi adiante. A brutal repressão militar (tanto sobre estudantes como sobre operários) teve um papel nisso, bem como alguns erros das organizações clandestinas construídas pelos jovens, mas o principal problema foi que não se consolidou um importante movimento dos trabalhadores mais pobres, em especial os negros e moradores de favelas e periferias.
Tal como em 1968, o “problema” hoje não é a juventude nas ruas ter origem na classe média, mas que essa juventude consiga se juntar à vida e à luta dos mais explorados e oprimidos, os trabalhadores, os camponeses, os moradores de favelas e periferias e os sem-teto, o povo negro e os indígenas, um conjunto que, mais por comodidade que por definição sociológica, chamarei de “proletariado”. Não é um problema simples, mas determinadas condições permitem-nos ter esperanças que o desfecho será melhor que em 68.
Primeiro, algumas condições “objetivas”. Atualmente existe, tanto em números absolutos como proporcionalmente, muito mais estudantes universitários de origem proletária que há 45 anos atrás. Eles constituem uma “ponte” natural entre os dois mundos. E também existe hoje um verdadeiro movimento de base nas favelas e periferias (para não falar dos camponeses, quilombolas, indígenas, etc), ainda com muitas deficiências e contradições, é certo, mas real.
Em segundo lugar, uma condição “subjetiva”, quase um “sentimento”. A juventude dos protestos, mesmo aquela que não é da Baixada, de São Gonçalo, do subúrbio e das favelas, tem hoje uma facilidade muito maior em conhecer e se articular com o proletariado. Falo por experiência direta: conheci desde junho muitos jovens da Zona Sul ou de partes ricas da Zona Norte que em muito pouco tempo se aproximaram dos movimentos de favelas e estabeleceram laços de confiança e cooperação, somando-se a um número expressivo que já tinha essa experiência antes do levante.
Porém, por mais que seja importante essa aproximação, o decisivo para o futuro dos protestos está na capacidade dos movimentos proletários expandirem-se na nova conjuntura. Essa avaliação pode parecer a da esquerda tradicional segundo a qual os futuro dos protestos depende da “classe trabalhadora assumir o protagonismo” do movimento. Mas a diferença está no que se considera “movimento proletário”.
A esquerda eleitoral e mesmo a extrema-esquerda partidária quando fala em “movimento da classe trabalhadora” está pensando essencialmente em partidos, sindicatos e centrais sindicais. Mesmo José Arbex Jr, por exemplo, que evoluiu para posições mais radicais nos últimos anos, colocou não só nos partidos e sindicatos em geral, mas especificamente no PT e na CUT (!), o destino dos protestos e de todo o país: “O momento decisivo será a entrada em cena dos trabalhadores organizados em seus partidos e sindicatos. Apenas a ação organizada da classe operária tem a força necessária e suficiente para levar até as últimas conseqüências o movimento por conquistas sociais significativas […] Os dirigentes do PT e da CUT encontram-se agora numa encruzilhada definitiva: ou abraçam suas origens […] ou terão que enfrentar um formidável movimento de revolta que está apenas no seu início. A primeira alternativa conduzirá o Brasil a uma situação progressista […] a segunda estilhaçará o PT e a CUT e lançará o Pais no caos.” (“Dilma: rompa com os patrões!”, em Caros Amigos edição n. 196, junho/2013).
Tenho muita curiosidade em saber o que pensa Arbex hoje após prognósticos tão apocalípticos, depois das “direções do PT e da CUT” não terem feito nenhum movimento no sentido de “abraçarem suas origens”, muito pelo contrário…
Partidos de esquerda e sindicatos (e alguns movimentos como o MST) tiveram sua oportunidade de “momento decisivo” na “paralisação nacional” do dia 11/07, ainda com os protestos quentes, mas o resultado foi um fiasco quase total (aqui no Rio, ainda tivemos que assistir cenas vergonhosas de militantes do PCdoB agarrando black blocs e os entregando à polícia!). Nenhuma outra mobilização convocada e organizada pelas centrais sindicais conseguiu empolgar tanto como as chamadas “espontaneístas”.
Isso não quer dizer que o movimento sindical passou em brancas nuvens 2013. Como parte da multiplicação de lutas desde junho, o número de greves e paralisações teve um aumento expressivo, e em diversas categorias começam a germinar movimentos que questionam a burocratização e acomodação dos sindicatos. Os resultados maiores ainda estão para se ver, mas um caso específico mostra a potencialidade da luta sindical dos trabalhadores, quando seus métodos específicos são combinados com as novas formas de luta surgidas ou aperfeiçoadas no levante. Claro que estou falando da greve dos professores da rede pública do Rio de Janeiro entre agosto e outubro.
A greve foi deflagrada em assembléias nada massivas, contra a vontade da direção do Sepe (Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação), e parecia ser uma aventura de “anarquistas”, mas logo tornou-se uma mobilização impressionante da categoria, impulsionada principalmente pela conjuntura geral. A greve tornou-se o estopim para a retomada dos protestos populares em níveis semelhantes aos de junho, mostrando que a situação continua madura para novos levantes, desde que haja a combinação favorável de circunstâncias.
Para a categoria, os resultados (econômicos) foram decepcionantes, mas o aprendizado político foi fundamental. Em próximas greves, é preciso levar em conta uma deficiência fatal dessa última: o baixo envolvimento de alunos e pais com a greve, o que poderia ter feito toda a diferença, pois no setor de serviços públicos a pressão sobre o patrão (o Estado) é menos econômica (pois não existe aqui a possibilidade de “redução dos lucros”) que política (perspectiva de quebra de legitimidade e perda de votos), e nisso os “usuários” dos serviços têm papel fundamental. Esse foi um dos segredos da Comuna de Oaxaca no México (2006), que começou com reivindicação de professores e tornou-se uma experiência profunda de poder popular, cujas conseqüências para a luta proletária naquele país se fazem sentir até hoje. Os professores de Oaxaca e outras regiões do México têm um trabalho orgânico profundo com as comunidades indígenas, os principais “usuários” de seus “serviços”. Algo semelhante precisa ser construído entre os professores, as favelas e os bairros de periferia nas cidades brasileiras.
É bastante provável que a retomada de lutas sindicais se concentre nas categorias de serviço público, e isso cria um potencial de envolvimento da população muito importante. Em “A construção da estratégia…” já havia abordado em parte essa possibilidade:
“[…]o setor que mais têm se destacado, em volume e radicalização, nas lutas sindicais têm sido o dos “serviços”: educação, saúde, energia, comunicações, transportes, infraestrutura e administração urbana em geral. Foram estes, por exemplo, que fizeram as grandes greves e manifestações do final de 1995 na França, que marcou a retomada de grandes lutas sindicais na Europa. Isso não acontece por acaso, estes setores de “serviços” são precisamente aqueles em que o capital mais investe atualmente e nos quais busca criar novos campos de acumulação (daí a pressão para a privatização daqueles que ainda são em grande medida serviços públicos) que compensem o congestionamento de capital nos setores industriais tradicionais. Por conseguinte, o proletariado destes setores não só cresce numericamente em comparação com o dos setores industriais, mas é submetido a pressões de aumento das taxas de exploração significativamente maiores que a classe operária tradicional.”
O que faltou foi fazer a ligação com essa outra avaliação fundamental, que vou citar aqui embora seja um trecho longo, pois me economiza explicar o que entendo por “movimento proletário” atualmente:
“Porém, o mais importante é a contínua e crescente movimentação de classe dos setores mais empobrecidos e explorados: desempregados (subempregados, mal-empregados) em geral, habitantes das periferias, guetos e ruas, camponeses sem-terra, imigrantes e etnias oprimidas, etc. Temos defendido há algum tempo que esse é o setor mais dinâmico e de maior capacidade ofensiva do proletariado atualmente, e os últimos anos têm confirmado essa avaliação. Não se trata apenas da multiplicação quantitativa de motins, saques, ocupações, bloqueios e outras formas de luta que aos poucos vão se consolidando e se aperfeiçoando e se tornando tão características desse setor de pobres como as greves se tornaram em relação à classe operária tradicional. Trata-se que essas lutas vão se tornando cada vez mais organizadas e planejadas, mais efetivas em atingir o inimigo de classe, e mais decisivas em momentos concentrados de lutas de classes: levantes e insurreições. Desde os motins de Los Angeles em 1992 (ou antes, desde o caracazo venezuelano em 1989), têm se tornado mais freqüentes as ocasiões em que a movimentação de massas dos mais pobres determinou a direção de mudança das correlações de força e dos confrontos de classe: Chiapas em 1994, Albânia em 1997, Indonésia em 1998, Equador em 2000, Palestina (nova Intifada) em 2000, Argentina em 2001, Venezuela (insurreição que derrotou a tentativa de golpe) agora em 2002… Em alguns países latino-americanos, como Equador, Bolívia e principalmente a Argentina, bloqueios de estradas e outras formas de interromper a circulação de mercadorias já se converteram numa forma regular de luta econômica dos proletários mais pobres, com eficácia crescente. O mesmo acontece com as ocupações de terra (rurais) e terrenos em várias partes do mundo.”
O levante brasileiro de 2013 comprova este teorema? À primeira vista parece que não, mas é fato que as pautas das favelas, periferias, quilombolas, indígenas, sem-teto e juventude negra têm ocupado um papel cada vez mais central nas lutas desde junho, e marcaram o clima de tensão social que precedeu o levante. Aqui no Rio, boa parte do que aconteceu a partir de junho nas ruas foi antecipado na luta em torno da Aldeia Maracanã (ocupação do antigo Museu do Índio). Em todo o Brasil, os conflitos envolvendo a resistência indígena e a demarcação de terras se agravaram progressivamente nos últimos anos, chegando a um ponto de enfrentamento armado em vários casos (guarani-kaiowá, terena, povos do Xingu contra Belo Monte, etc). O mesmo em relação aos quilombolas, praticamente no país todo. Em São Paulo, o maior conflito antes da explosão de 2013 foi a batalha da Ocupação Pinheirinho no início de 2012, que teve repercussão nacional, e desde agosto desse ano, pelo menos, temos visto o maior ascenso dos últimos anos de ocupações de sem-teto e lutas contra despejos no estado. Os exemplos são muitos e se multiplicam…
Mas é na exacerbação da guerra brutal entre o proletariado e o braço armado do Estado racista e capitalista que toda a potencialidade e o drama da situação aberta pelos levantes de junho se revelam.
“A polícia que reprime na avenida é a mesma que mata na favela”
Essa frase, de um dos novos movimentos em que milito , foi posta numa faixa que estreou no protesto de 20/06 na Pres. Vargas. Reapareceu no dia 25/06 na Maré, no protesto dos moradores contra a chacina da noite anterior. As fotos com ela viralizaram rapidamente nas redes sociais e a frase virou meme na Internet. Isso só pode significar que tais palavras exprimiram uma identificação súbita entre as pessoas nas ruas tomadas pela insurgência, e as pessoas submetidas ao Estado de sítio permanente nas favelas e periferias.
Dificilmente os protestos de junho teriam a dimensão que tomaram se o Estado, através de sua face mais assassina, a Polícia Militar, não decidisse extinguir no nascedouro a rebeldia impertinente dos manifestantes. Foi o massacre e as prisões em massa (mais de 200 manifestantes) no protesto de 13/06 em São Paulo que geraram indignação nacional e acenderam o rastilho para a explosão nas ruas nas semanas seguintes.
A PM utilizou nas ruas apenas um limitado subconjunto do repertório de atrocidades que aplica regularmente nas quebradas e favelas para “disciplinar” o povo descendente de africanos e indígenas, e sustentar a ordem perversa dessa sociedade ainda em grande medida escravocrata e colonial. Mas foi o suficiente para despertar para a realidade aqueles ativistas, ou mesmo militantes de longa data que, mergulhados até então numa rotina de vida “pacífica”, ou em movimentos institucionalizados e bem comportados, nunca haviam contemplado a face medonha do apartheid brasileiro.
Houve, é claro, e ainda há, uma tendência de certos setores (principalmente jurídicos e acadêmicos) a restringir a denúncia do Estado da “ditadura democrática” às violações cometidas contra as manifestações. Mas aos poucos a compreensão de que a brutalidade dirigida aos protestos é apenas um caso particular e limitado de uma realidade permanente de exceção e genocídio vai se impondo. Aqui no Rio, o caminho para essa compreensão foi aberto traumaticamente, durante o levante, pela chacina da Maré, e depois, pelo seqüestro, tortura e assassinato de Amarildo de Souza pela UPP da Rocinha.
Daí a importância do posicionamento de acadêmicos como Giuseppe Cocco, professor da UFRJ com inequívoca formação e experiência de vida européia, que conseguem por em primeiro plano a característica fundamentalmente racista e colonial da sociedade brasileira, como na entrevista de 07/12 ao Instituto Humanitas Unisinos:
“O movimento [dos levantes de junho e outubro] não apenas nos diz que a separação da fonte (o povo) vis-à-vis do resultado (os representantes) é imoral, mas explícita, e torna visível que essa dimensão imoral do poder está baseada na violência de suas polícias. Ou seja, o movimento teve a capacidade de mostrar para o Brasil e para o mundo as dimensões perversas do monopólio estatal do uso da força no Brasil; um regime de terror de Estado que, por meio do regime discursivo sustentando pela mídia da elite neoescravagista, é tratado como se fosse ‘externo’ e independente dos governos […] Seria irônico se não fosse o cúmulo do cinismo escravocrata. É que a forma espúria de agir do Estado, ou conluio generalizado entre forças de polícias e crime organizado, no meio da histeria repressiva contra o tráfico de drogas, funciona como principal mecanismo de legitimação da guerra contra os pobres e contra suas mobilizações democráticas. Como sempre fez, desde junho, o poder multiplica os boatos sobre participação do narcotráfico nas mobilizações democráticas. Na senzala — ou seja, nas favelas, subúrbios e periferias — o terror anda a pleno vapor, quer a polícia seja do PSDB, do PT, do PSB ou do PMDB. É um terror estatal com vieses classistas e, sobretudo, racistas […] O que o movimento fez e faz não é praticar a violência, mas tornar explícita e visível a violência do poder e seus sistemas de (in)justiça, como do caso Amarildo […] A mesma coisa aconteceu com os mais de 10 moradores assassinados na favela da Maré em junho, durante o movimento, pela “Tropa de Elite” da PM do Rio e em relação à qual sequer existe um procedimento disciplinar. O movimento mostrou que os moradores da senzala não têm cidadania nem direito de lutar. A chacina da Maré foi um recado claro, genuinamente neoescravagista, aos pobres: vocês não têm direito de lutar e se lutarem serão mortos. Essa é a democracia que vivemos: não nos grotões do Brasil remoto, mas na metrópole olímpica, o Rio de Janeiro.”
Faltou acrescentar, ou destacar, que o “movimento” que revelou tudo isso não foi, em primeiro lugar, os protestos no centro da cidade, mas os protestos dos próprios favelados: dos moradores da Maré que desafiaram a PM que cercava a Nova Holanda e o Parque União em 25/06, e que forçaram a retirada do caveirão; e a dos parentes, vizinhos e amigos de Amarildo, que fecharam mais de uma vez o túnel Zuzu Angel em São Conrado, impedindo que o caso se tornasse mais um perdido e esquecido nas estatísticas policiais.
A luta aberta e inadiável contra esse terror de Estado tem que estar no centro das mobilizações doravante, para que toda a energia desatada pelos levantes não termine como uma distração passageira na longa história de silêncio e segregação do Brasil. Alguns avanços neste sentido já aconteceram, como a difusão da campanha pela desmilitarização das polícias, e a importante mobilização contra o genocídio do povo negro em Salvador, mas o principal é estender as estruturas e redes criadas contra a repressão nos protestos, para a proteção dos habitantes das favelas e periferias. Na Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, há muito estabelecemos que um trabalho orgânico de autodefesa jurídica calcada em direitos humanos, e de denúncia qualificada utilizando as técnicas de comunicação e mídia alternativa, são essenciais para apoiar a resistência cotidiana dos povos contra a violência estatal.
No levante de junho, em pouco tempo se constituíram redes voluntárias de advogados e juristas (aqui no Rio através de grupos como o Habeas Corpus e instituições como a OAB e o IDDH) por um lado, e redes e grupos de midiativistas e comunicadores (os chamados “ninjas”), que tiveram papel fundamental na continuidade dos protestos. Isso mostra que há uma profunda analogia entre a resistência ao terror de Estado na favela e no “asfalto”. Mas é preciso descobrir como levar o ativismo jurídico e o midiativismo do “asfalto” para o terreno estranho e sombrio das quebradas ocupadas ou sitiadas pela polícia mais brutal do planeta.
2014?
Amanhã já será dia de voltar às ruas. Em épocas insurreicionais, os momentos da reflexão e da ação não têm como ser claramente separados. Mas temos que aperfeiçoar tanto a ação como a reflexão, porque os desafios das lutas em 2014 serão significativamente maiores que os de 2013. As oligarquias já se movem para saber como dosar repressão e engano neste ano que juntará Copa do Mundo, eleições gerais e sabe-se lá o que mais. Temos que nos mover rapidamente para tirar as lições da quantidade de fatos descomunais que vivemos em 2013.
Algo importante devemos reconhecer desde já: apesar das coisas grandiosas e novas que vivemos, ainda foram poucas e efêmeras as experiências de construção de órgãos de poder popular, como assembléias populares e comissões de luta por local de trabalho ou moradia. Neste aspecto, o levante brasileiro ainda está bastante aquém de experiências semelhantes em países como México, Argentina ou Bolívia, por exemplo. Descobrir como avançar nesse campo é um dos nossos principais desafios.
E não é um desafio somente para nós do Brasil. Se até junho tínhamos todas as razões para desejar que nenhum de nossos amigos e aliados do exterior viesse para cá engrossar o caldo da festa das elites na Copa, hoje precisamos e muito de sua presença e de sua ajuda. Em 2013 o Brasil, depois de longa espera, entrou finalmente no circuito dos levantes populares mundiais. Em 2014, há toda probabilidade que o país seja a escala mais importante desse circuito rebelde.
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