PICICA: "Foi o poeta da solidão e da dor, do amor e da esperança. Foi o poeta da
ira contida e da fé permanente. Ou seja, foi o poeta da vida. Escreveu
um dos poemas de amor mais marcantes do idioma espanhol, aquele que
começa assim: “Essa mulher se parecia à palavra nunca/ de sua nuca subia
um encanto particular/ uma espécie de esquecimento onde guardar os
olhos/ essa mulher se instalava em meu lado esquerdo”. E de delicadezas
como essa: “Teu corpo é alto como os pátios da infância/ doce como a luz
dos crepúsculos/ e triste./ Teu corpo dura como o sol”.
Seus versos eram minuciosamente construídos, buscando o tom da fala coloquial, buscando o ritmo das ruas, a melodia da memória."
JUAN GELMAN (1930-2014)
O humor ácido contra o desespero e medo
Por Eric Nepomuceno em 21/01/2013 na edição 782
Reproduzido do Estado de S.Paulo, 18/1/2014; título original “O humor ácido era a sua arma contra o desespero e medo”, intertítulos do OI
Nos últimos muitos anos, Juan Gelman morava num bairro chamado Colônia
Condessa, na Cidade do México. Um bairro que, desde a década de 50,
serviu e serve de abrigo para pintores, músicos, cineastas, escritores. E
poetas, como ele.
Foi no apartamento amplo e luminoso, coalhado de quadros, livros e
memórias, que às quatro e meia da tarde da terça-feira, dia 14, Juan
Gelman morreu. E com ele morreu o maior poeta do bairro, da cidade e um
dos maiores do idioma espanhol das últimas muitas décadas.
Juan aportou na Colônia Condessa em 1989, depois de 14 anos vagando
entre Roma e Paris, Madri, Manágua e Nova York, além de breves pousos em
outras paisagens. Foi um exílio duplo. O primeiro, em 1975, pelas
ameaças da nefasta AAA, a Aliança Anticomunista Argentina, ainda em
tempos da bizarra presidência de Isabelita Perón. O segundo, já na
democracia recuperada pelos argentinos em 1983. Juan voltou várias vezes
às ruas da sua Buenos Aires, e em 1988 tinha se instalado para viver.
Até que o dia em que encontrou na rua um dos responsáveis pela morte de
seu filho Marcelo, em 1976, uma das milhares de vítimas do terrorismo de
Estado implantado pela ditadura dos militares. Viu o homem andando
livre e solto, e decidiu ir embora para sempre. Foi quanto se mudou para
a Cidade do México, e decidiu que lá passaria o resto de seus dias.
Tinha olhos claros e eternamente tristes. A voz, gasta pelos cigarros e
as madrugadas varadas à espera da luz, era grave e suave. A voz, gasta
pelos cigarros e as madrugadas varadas em claro, era grave e suave. Ao
longo dos 40 anos em que convivemos, foram poucas, pouquíssimas as vezes
em que ouvi Juan erguer o tom de voz. Tinha um humor ágil e veloz, e
que de vez em quando ficava ácido. Era impressionante: mesmo nos
momentos da maior angústia, da dor mais sem-fim, restava algo desse
humor. Era como se fosse uma arma contra o desespero, contra o medo.
Foi o poeta da solidão e da dor, do amor e da esperança. Foi o poeta da
ira contida e da fé permanente. Ou seja, foi o poeta da vida. Escreveu
um dos poemas de amor mais marcantes do idioma espanhol, aquele que
começa assim: “Essa mulher se parecia à palavra nunca/ de sua nuca subia
um encanto particular/ uma espécie de esquecimento onde guardar os
olhos/ essa mulher se instalava em meu lado esquerdo”. E de delicadezas
como essa: “Teu corpo é alto como os pátios da infância/ doce como a luz
dos crepúsculos/ e triste./ Teu corpo dura como o sol”.
Seus versos eram minuciosamente construídos, buscando o tom da fala coloquial, buscando o ritmo das ruas, a melodia da memória.
Vício de viver
Começou escrevendo para encontrar o amor. Ou, mais precisamente: lá
pelos 9 ou 10 anos, copiava versos de Almafuerte, um poeta argentino do
século 19, para tentar conquistar o primeiro de seus grandes e
definitivos amores, uma menina vizinha que talvez se chamava Ana. Digo
talvez porque ele mesmo não se lembrava ao certo. A menina não deu a
menor confiança e Juan decidiu escrever seus próprios versos. Em vão.
“Ela seguiu seu caminho”, dizia Juan com sua voz de madrugada, “e eu
fiquei com a poesia”.
Na verdade, a poesia tinha chegado antes. Filho de imigrantes judeus
russos, Juan nasceu no bairro portenho de Villa Crespo. Na primeira
infância, seu irmão mais velho, Boris, lia para ele, em russo, versos de
Pushkin. Ele não entendia as palavras: entendia a melodia das palavras.
Assim descobriu a poesia. A função da poesia, descobriu mais tarde. E
dela viveu para sempre, nela viverá para sempre.
Publicou seu primeiro livro, Violín y Otras Cuestiones, em 1956. Trazia
um prólogo carregado de entusiasmo, escrito por um poeta maior, um
mestre rigoroso chamado Raúl González Tuñón. Juan tinha 26 anos.
Esta voz, notável e singular na poesia do idioma castelhano, teve
momentos – longos momentos – de silêncio. Quando soube do
desaparecimento de seu filho Marcelo e de sua nora grávida, Maria
Cláudia, sua mão secou. Ele havia saído da Argentina em 1975. Lembro bem
da vez em que nos despedimos, na redação da revista Crisis, que Eduardo
Galeano dirigia em Buenos Aires: um paletó de tweed, os bigodes
eternos, um sorriso estacionado num canto da boca, uma mala pequena,
quase maleta, um embrulho na mão esquerda. Nunca entendi aquele
embrulho. Nunca perguntei o que havia nele.
Passou um tempinho, veio o golpe, veio a ditadura, e no dia 24 de
agosto de 1976 um grupo de militares – pouca gente, o suficiente – foi
até a casa onde Juan havia morado. Levaram seu filho Marcelo, de 20
anos, sua nora Maria Cláudia, de 19. Treze anos depois, Juan conseguiu
recuperar os restos do filho. Estavam dentro de um barril de aço,
mergulhados em cimento. O barril foi tirado das águas do Rio da Prata.
De Maria Cláudia, soube-se que tinha sido mantida viva. Foi levada para o
Uruguai, dentro da Operação Condor. Mulheres grávidas eram preservadas,
uma espécie de troféu. Logo depois de terem seus filhos, eram mortas. E
os bebês eram entregues a militares ou policiais. Tudo isso era parte
do plano sistemático e macabro do terrorismo de Estado praticado pelos
militares argentinos. Havia uma lógica sinistra: filhos de terroristas
não podiam ser criados por famílias de terroristas. Seriam contaminados.
Marcelo e Maria Cláudia nunca foram terroristas. Eram militantes
estudantis. E a única arma empunhada por Juan foi sempre a palavra. Mas
isso não importou. Maria Cláudia teve uma filha, nascida num quartel
uruguaio. Vinte dias depois, o bebê foi dado de presente a um chefe de
polícia. Cresceu achando que aquela era a sua história. De Maria
Cláudia, nunca mais se teve notícia. Foi morta, e é só.
Assim que Juan soube do sequestro de Marcelo, e ele sabia que naquela
Argentina ser sequestrado significava ser assassinado, foi abandonado
pela poesia. Foram anos sem conseguir escrever. Uma vez, me explicou: “A
poesia é uma senhora que nos visita ou não. Convocar essa senhora é uma
impertinência inútil. Durante uns bons quatro anos, o choque do exílio e
da dor fez com que essa senhora não me visitasse. Já tinha acontecido
antes, é verdade, mas nunca por um tempo tão prolongado”. Um dia, a
senhora voltou. E não o abandonou jamais.
E como eram essas visitas e essa permanência? Dizia Juan: “Na verdade, é
como uma obsessão. Uma espécie de ruído junto ao ouvido. Escrevo para
entender o que está acontecendo. Em determinado momento, essa obsessão
me leva a escrever. É sempre uma obsessão muito forte e meio nebulosa.
Quando você começa a escrever, a obsessão está num ponto muito elevado, e
a expressão dessa obsessão, num ponto muito baixo. Quase sempre a
expressão traz elementos de uma obsessão anterior, que ficaram
incrustados na memória. Isso aparece naquilo que os estudiosos chamam de
‘técnica’, de ‘estilo’. Qual o quê. À medida que você vai escrevendo, a
obsessão baixa, e aumenta sua proximidade em relação à expressão. Há um
ponto em que elas se cruzam, e aí, então, surge o poema”.
Achava graça na própria explicação. E rindo seu riso travesso, dizia de
lado: “O que eu faço, na verdade, é buscar. A partir de uma certa
idade, você percebe que escrever deixou de ser vocação e virou vício. E,
você sabe, é preciso cultivar algum vício nessa vida...”.
O vício – esse vício – manteve Juan vivo, desde que enfrentou a dor
maior de um ser humano, que é a de enterrar o próprio filho. E antes,
enquanto durou a busca alucinada primeiro pelos restos do filho e, ao
mesmo tempo e depois, pela filha do filho. Juan encontrou sua neta,
Macarena, no ano 2000. Devolveu a ela sua história, roubada 24 anos
antes. E ela devolveu a ele o direito de ser avô.
Amigo fraterno
Juan Gelman morreu em casa e em paz. Uma paz que não teve ao longo da
vida. Muitos, muitos anos antes, havia escrito um poema estranho: “Um
homem morreu e estão juntando seu sangue em colherinhas/ querido Juan,
morreste finalmente./ De nada serviram teus pedaços/ molhados em
ternura./ Como foi possível/ que tu fosses embora por um furinho/e
ninguém tenha posto o dedo/ para que ficasses?”.
Fonte: Observatório da Imprensa
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