PICICA: "Em um
movimento espontâneo, livre, uma geração inteira nascida sob a égide da
democratização da sobrevivência à mortalidade infantil, mas exposta a
uma massiva violência -- inclusive, e sobretudo, de Estado -- na
juventude, se vê diante de uma paradoxal liberdade: autorizada a cruzar a
terra, descobrindo novos mundos, e forte o suficiente para fazê-lo, ela
se vê atacada quando extrapola a camisa de força da vida cotidiana. Não
tendo feito nada de errado, nem segundo o sistema. Daí, não é estranho o
choque com a face real e inglória do sistema; a reação imediata é uma
perplexidade existencial dolorosa, como a do garoto Douglas, morto pela
polícia, que, antes de morrer, inquiriu o algoz: por que o senhor atirou em mim? No
momento em que as barreiras jurídicas e econômicas são minoradas, o
Estado revela sua verdadeira face: o exercício do poder é de fato,
alheio ao próprio direito."
O Rolezinho: Ou Quando a Classe sem Nome Resolveu dar uma Volta
Exodo -- Descals
"Uma classe sem nome ascende, de modo selvagem, deixando o debate político brasileiro em chamas. E dizemos que ela é sem nome justamente por ter tantos, por haver tanta insistência no fato de que ela precisa ter um: classe c, nova classe média, subproletariado, consumitariado, proletariado endinheirado, batalhadores e tantos outros possíveis e imagináveis. Mas ela assume a todos e, assim, os recusa plenamente, pondo em sobrecarga a máquina paranoica de identificação. E dizemos que esta classe ascende de modo selvagem no sentido antagônico a civilizado em sua acepção moderna: se o moderno nos diz, à moda de Kant, que devemos agir, apenas e tão somente, reproduzindo condutas que possam ser universalizáveis na convivência, no Brasil, isto se cristalizou no seguinte mandamento: aja sabendo qual o seu lugar.
Se mesmo os universais, enquanto abstrações ideais, ganham sempre um modo prático, é precisamente este o que a materialidade das relações sociais lhe deu por aqui: saber onde fica a Senzala e a Casa Grande e ter em mente, de forma clara, a qual desses dois mundos (afinal, são apenas dimensões do mesmo), você pertence. A classe sem nome ascende, pois, pela suspensão dessa lei universal, demonstrando que o rei está nu, que a lei gira no vazio -- já que uma vez criação humana, ela pode ser suspensa pelo desejo, pela vontade de potência: ela faz tumulto, indo para espaços que não são seus por direito [mas passam a ser de fato]; se ela orkutizou o Orkut, agora, ela orkutiza a vida, os aeroportos e o próprio Facebook."
Desde do final do ano passado, o fenômeno conhecido como Rolezinho se tornou um estouro. Trata-se de algo bastante simples: jovens pobres da periferia, por meio das redes sociais, convocam gigantescos flashmobs
em shoppings. Lá, eles combinam de passear, ver as lojas, entrar num
mundo que lhes é socialmente proibido -- mas cuja imagem é o próprio
ápice do que o sistema oferece. De repente, o assunto se tornou caso de polícia nos maiores shoppings paulistas. Mas não há crime, apenas o fato de que os jovens "parecem querer bagunça" como admitem as próprias autoridades. No último caso, o shopping JK, inclusive, conseguiu uma decisão liminar na Justiça
impedindo a entrada, sob ameaça de multa, de quem pretendesse adentrar
nas suas dependências para participar do evento -- em uma decisão que,
por certo, já entrou para os anais do nosso judiciário.
Não houve
crimes, convocação para crimes ou preparação para atividades criminosas,
tampouco para ilícitos cíveis. Isso, ninguém nega. Como também, até que
se diga o contrário, a liberdade de ir e vir ainda está entre os
direitos fundamentais da Constituição -- e não, não pode ser restrita
pela simples vontade de alguém baseado em fundamentos moralistas. "Não
gostamos deles, queremos fora!". Essa aparente disfunção jurídica, no
entanto, revela o próprio funcionamento prático do sistema. Se o
liberalismo jamais criou vedações formais para os fluxos, ele tratou de
não criar jamais mecanismos que pudessem dar subsídios materiais para
isso poder se tornar um problema. Com o advento das políticas
social-democratizantes dos últimos anos, a universalização de informação
e proteínas esticou o corpo do sistema: não é que o capitalismo
científico tenha triunfado, ao contrário, ele fracassou redondamente,
pois a universalização geral da vida burguesa mostrou seus pés de barro,
isto é, trata-se de um modo de vida que só se sustenta a partir da
existência de mestes e escravos.
Em um
movimento espontâneo, livre, uma geração inteira nascida sob a égide da
democratização da sobrevivência à mortalidade infantil, mas exposta a
uma massiva violência -- inclusive, e sobretudo, de Estado -- na
juventude, se vê diante de uma paradoxal liberdade: autorizada a cruzar a
terra, descobrindo novos mundos, e forte o suficiente para fazê-lo, ela
se vê atacada quando extrapola a camisa de força da vida cotidiana. Não
tendo feito nada de errado, nem segundo o sistema. Daí, não é estranho o
choque com a face real e inglória do sistema; a reação imediata é uma
perplexidade existencial dolorosa, como a do garoto Douglas, morto pela
polícia, que, antes de morrer, inquiriu o algoz: por que o senhor atirou em mim? No
momento em que as barreiras jurídicas e econômicas são minoradas, o
Estado revela sua verdadeira face: o exercício do poder é de fato,
alheio ao próprio direito.
O exercício do mando no ocidente nunca foi o domínio
puro e simples. O senhor, o dono, jamais abriu mão do monopólio da
dádiva, da simulação da bondade, da construção de um ethos glorioso,
mas, de um outro lado, sempre precisou do vilão, o próprio
administrador da casa para delegar o monopólio do mal e, assim,
administrar castigos. Essa dualidade entre o senhor e o capataz é do que
falamos. Mas o tensionamento de certas relações força ao reconhecimento
do óbvio: não há distinção entre os dois, ambos representam o mesmo
teatro. Quando o sistema está em xeque, ele não vai ousar em usar de
força pura e simples. E "estar em xeque" não é o mesmo que "vender
pouco", ter o "patrimônio ameaçado", nada disso; é ver a ideia de
exclusividade, de escassez, que possibilita a relação de fetiche da
mercadoria estilhaçada: se algo se torna comum, como a área supostamente
livre de um shopping de luxo, se esconjura o feitiço que permite
aquelas relações, aquela falta, aquela agonia -- e a própria opressão.
Uma geração inteira de jovens -- dentre os quais, eu mesmo me incluo, embora a cor dos olhos, feliz
ou infelizmente, sempre me tenha feita voar abaixo do grosso do radar
da repressão -- experimenta a verdade da Coisa, da sua pior forma, mas
não aceita mais ser matável, excluível ou ignorável. Não estão
"alienados" pelo consumismo, apenas estão invocando o que é direito de
qualquer um -- ou não é? --, não aceitam o apartheid -- social e
racial -- de não poderem partilhar, mesmo como espectador, do que é
valoroso, pelo menos até que se diga o contrário. Em tempos nos quais
quase tudo se enuncia em inglês, algo bem tradicional do brasil se diz
em grego: a lei da casa grande, a rigor, se fala agora macroeconomia.
Eu não falo só do predomínio da preocupação com a índices, e
indicadores, econômicos em detrimento da política, mas da própria
ascensão de uma forma de organização que só concebe o homem como ser
boçal e animalizado, pronto a receber o castigo do chicote: mercado,
polícia e política, todos atados conceitualmente. Olhar o Brasil de hoje
sem ver a dinâmica da composição de classe, e do próprio fundamento do
que é uma classe ou uma sociedade, é um voo cego.
De todo modo, sim, nós sabemos agora porque o Senhor
atirou: não poderia ser diferente, sendo você o que é. À la Gombrowicz,
a Classe sem Nome faz arte, satisfaz os perturbados e perturba os
satisfeitos.
Fonte: O Descurvo
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