PICICA: "[...] a crítica deveria lembrar que o consumo
não é um mal em si. Antes, o problema é o controle sobre o processo de
produção e o consequente hiato criado entre o produzir e consumir. Não é
por um direito à propriedade que queremos o que é nosso, mas por um
direito a continuar um processo produtivo enquanto criadores de relações
e subjetividades. Se as subjetividades não fossem novas e desviantes do
padrão “consumidor de shopping”, se elas não fossem outras, não haveria
problemas no shopping, os rolezinhos simplesmente não existiriam, ou
quem exerce a prática seria só mais um docemente incluído no ambiente,
sem causar espanto ou horror algum ao andar pelos corredores cheio de
lojas. A aparência, a cor da pele e a forma de viver acompanham quem vai
ao shopping, e, neste caso, ir ao shopping não é só uma ação dentro do
direito de ir e vim, mas a desestabilização dos lugares pré-concebidos, a
continuidade do ciclo de lutas por mais direitos concretos e por uma
democracia real. Sobretudo, esse ato específico é o combate potente ao
racismo desde um ponto de vista concreto, onde as relações racistas se
impõe sobre a vida e a afetividade. Afirmamos mais uma vez que não
falamos do ato de comprar em si, e sim do processo anterior de
participação concreta na geração do valor e da vida. Se a nova classe
brasileira conseguia chamar atenção por conta de sua forma conflituosa
de ascender socialmente, agora é uma outra parte dela que entra nesse
processo, também de maneira conflituosa. Nesse sentido, gerar valor quer
dizer acrescentar indefinidamente valores na estrutura social,
modificando-a radicalmente."
Os rolezinhos e a bolha democrática.
Por Ricardo Gomes
Janeiro segue quente e festivo. Mais uma
vez, lutas nas ruas e redes, mais uma vez a partir dos pobres que
tomaram a dianteira no processo insurrecional. Por mais que este
processo necessite de desdobramentos, o fundamental é que ele se
agenciou com os levantes populares do ano passado. Não pela sua
existência pura e simples, mas por se aliar com as demandas e o modo de
organizar dos protestos anteriores e por fazer parte de um mesmo ciclo
produtivo de alteração e multiplicação dos direitos. Certamente não se
trata de um grupo organizado que, de forma centralizada e racional
formula e executa suas ações com objetivos claros e pré-estabelecidos. O
que faz o ‘rolezinho’ funcionar dentro da maquina revolucionária do
desejos dos pobres é sua capacidade de desestabilizar de forma rápida e
quase total o poder constituído, demonstrando toda a violência racista implícita nos atos e relações cotidianos
que lhe estruturam, virando o medo contra seus usuários mais hábeis,
não para gerar mais medo mas sim para intensificar a festa e a
efetivação da solidariedade. Além disso, os participantes dos
‘rolezinhos’ se organizam de maneira aberta, pelas redes, sem centros
hierárquicos formados, o que permite sua disseminação rápida e dispersão
positiva, quando necessário. É certo que vários grupos reprovam o fato
do acontecimento se dar num shopping – o espaço de poucos, o templo do
consumo, a morte do tempo, o único lugar em que a elite diz se sentir
protegida. Eles querem comprar e vender, explorar, ser um objeto, uma
mercadoria, querem ser iluminados pela mesma luz das vitrines e destruir
o brilho de todos, não só desconhecer e desprezar o brilho dos outros,
mas articular meios para interromper quem não sabe se destruir, quem não
sabe servir sem ser visto.
Mas a crítica deveria lembrar que o consumo
não é um mal em si. Antes, o problema é o controle sobre o processo de
produção e o consequente hiato criado entre o produzir e consumir. Não é
por um direito à propriedade que queremos o que é nosso, mas por um
direito a continuar um processo produtivo enquanto criadores de relações
e subjetividades. Se as subjetividades não fossem novas e desviantes do
padrão “consumidor de shopping”, se elas não fossem outras, não haveria
problemas no shopping, os rolezinhos simplesmente não existiriam, ou
quem exerce a prática seria só mais um docemente incluído no ambiente,
sem causar espanto ou horror algum ao andar pelos corredores cheio de
lojas. A aparência, a cor da pele e a forma de viver acompanham quem vai
ao shopping, e, neste caso, ir ao shopping não é só uma ação dentro do
direito de ir e vim, mas a desestabilização dos lugares pré-concebidos, a
continuidade do ciclo de lutas por mais direitos concretos e por uma
democracia real. Sobretudo, esse ato específico é o combate potente ao
racismo desde um ponto de vista concreto, onde as relações racistas se
impõe sobre a vida e a afetividade. Afirmamos mais uma vez que não
falamos do ato de comprar em si, e sim do processo anterior de
participação concreta na geração do valor e da vida. Se a nova classe
brasileira conseguia chamar atenção por conta de sua forma conflituosa
de ascender socialmente, agora é uma outra parte dela que entra nesse
processo, também de maneira conflituosa. Nesse sentido, gerar valor quer
dizer acrescentar indefinidamente valores na estrutura social,
modificando-a radicalmente.
Outro aspecto importante dos rolezinhos é
percebê-lo como a possível antecipação da multidão das ruas em agenciar
novas máquinas de desejos revolucionários. Todos estavam prontos para
a copa, manifestação nas ruas, repressão policial, gritos de ‘não vai
ter copa’ e etc., mas, de repente, o conflito se acendeu mais uma vez,
mais uma vez se expandiu sem centro de controle definível, por meio da
disseminação da comunicação e das subjetividades em colaboração, pegou
de surpresa as relações de poder, como convém a um processo real de
alteração na estrutura social. A quantidade relevante de atos
puxados em apoio ao ‘rolezinho’ em SP também escancara este processo,
mesmo que nestes casos não exista o ‘rolezinho’ propriamente dito. Ou
melhor, justamente porque este atos são efeitos positivos que produzem
outras ações e acontecimentos, que também constrangem o poder e, ao
mesmo tempo, colaboram com a luta anterior. A impressão é que o país
vive uma ‘bolha democrática’ perto de explodir, ou que talvez já tenha
explodido. Chegou a um limite máximo, os poderes constituídos não
conseguem mais atender minimamente os desejos, todas as instituições que
poderiam mediar as demandas foram tomadas por relações políticas
paralisantes ou, no máximo, obsoletas. É certo que, em raros
momentos, exista algum tipo de projeto importante acontecendo, mas o
caso é que já é real, novas formas políticas de organização
descentralizadas já estão na ‘linguagem comum’ dos jovens, o que
certamente não é suficiente mas sem dúvida é sintomático. Devemos
disputar este caminho sem volta, descentralizado, com baixa concentração
hierárquica e grande possibilidade de politização direta e disseminada.
Essas formas não vão até os partidos reclamarem suas questões, elas
tratam de efetuar concretamente suas ações, mantendo assim sua força
múltipla interna, levando a vários desdobramentos e fazendo da cidade um
espaço cheio de possibilidades e conflitos. Por exemplo, ao voltar do
‘rolezinho’ percebi que as praias continuavam cheias, aparentemente o
que ocorria no shopping do Leblon não tinha maior consequência sobre a
cidade, porém, mais tarde, alguns participantes do ‘rolezinho’ foram até
um show gratuito na praia e às vezes eles gritavam algumas palavras de
ordem. Num certo momento, um dos organizadores do show, um funcionário
de uma multinacional, subiu ao palco e pediu para que eles não fizessem
isso, dizendo que não era lugar para política. Grande parte do publico
reagiu imediatamente com vaias e garrafas d’água na direção do
funcionário. As pessoas queriam e querem se posicionar, e qualquer
fagulha pode ser suficiente para a intensificação necessária que torna
todo ato coletivo um ato político contestatório. Assim, se reafirma a
potencialidade descentralizada e imediatamente política do rolezinho,
sua espontaneidade e imprevisibilidade.
Falamos no início que os chamados
‘rolezinhos’ continuavam as manifestações de 2013 por conta das demandas
e forma de organizar, e isso é relativamente fácil de perceber. Em São
Paulo o movimento negro chamou um ato em solidariedade aos jovens e
contra a violência racista das PMs (link). Outros atos foram chamados em
apoio ao jovens de São Paulo. Contudo, logo aparecem as condenações à
direita e à esquerda que falam de ‘contaminação pelo consumo’ e
‘necessidade de conscientização’, enfim, os velhos clichês dos
supostamente “esclarecidos”, dos que tem por árduo trabalho apenas
desestabilizar o processo imanente de politização presente em todas as
manifestações populares descentralizadas. Sejamos francos, boa parte dos partidos de esquerda tradicional não faz outra coisa além disso.
Mas, eis que da contaminação surgem ou vibram demandas reais, lutas
revolucionárias, imagens e acontecimentos que rompem com o nível de
aceitabilidade do racismo cotidiano e de outras violências mais, e,
geralmente, surgem mais violentas e potentes do que qualquer ‘ação de
base politizada’, surgem como um funk fazendo tremer a caixa de som.
Sabemos, porém, que esta violência de que falamos não tem qualquer
relação com a violência assassina da PM, que age destruindo as vidas do
pretos e pobres. Aqueles que teimam não aceitar o papel de condenado
social por natureza, ouvirão sempre as ameaças como as que os jovens
paulistas ouviram da PM. Por isso apoiamos o fortalecimento de toda
política possível no que eles chamam de ‘contaminado’ e sua produção
imanente com diversos desdobramentos concretos e lutas propositivas.
Violência aqui quer dizer romper e propor ao mesmo tempo, é disso que se
trata o ‘rolezinho’.
Fonte: Das Lutas
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