janeiro 24, 2014

"Rolezinho e o problema da crítica", por Caio Sarack

PICICA: "Um rolezinho - como está acontecendo - pode fazer "sozinho" emergir as contradições fundamentais do nosso capitalismo periférico à brasileira."
 
Opinião
18/01/2014 - Copyleft

Rolezinho e o problema da crítica

Um rolezinho - como está acontecendo - pode fazer "sozinho" emergir as contradições fundamentais do nosso capitalismo periférico à brasileira.



Duas críticas se colocam quando vemos os rolezinhos e suas recepções. Uma, a de que o rolezinho acirra o real, não o distorce, mas sim faz aparecer com mais luz e violência; a outra os esvazia fazendo com que sejam vistos como eventos volúveis que servem a esta ou aquela (ou ambas) ideologia. O convite não é que se façam cortes e recortes para que então se chegue à “verdade dos rolezinhos”, é ver como a constituição do processo social obriga a qualquer um que quer entender esse evento e sua consequência a aceitar o seu caráter contraditório.
 
O primeiro contraste que me veio foi a força que teve o rolezinho em organizar um aparente consenso no discurso da esquerda. Fica, então, um entrave que deve ser posto antes: o rolezinho - pelo olhar crítico da esquerda - demonstrou um problema (nada) adormecido no seio das relações de classes sociais, mas é estranho perceber que o mesmo olhar não foi acionado quando enfrentou a questão da tática Black Bloc que ainda susta muitos argumentos prontos das autoridades de esquerda.
 
Mas voltemos ao tema específico do texto, e também a uma das críticas de que citei no início: o rolezinho acirrou a realidade - não a distorce, e sim traz com violência algo que existe, subjaz  normalmente. Os eventos do facebook mostram que a politização não é motor do encontro, entretanto a partir do momento que o evento ocorre, algo surge para além dele. Mesmo a mais trivial aglomeração de jovens de periferia pardos e negros pode se tornar o sopro para fazer desabar esta conciliação que a inclusão pelo consumo dos últimos anos possibilitou. O embate classista se dá de maneira tão gritante que até o “causar” despreocupado de jovens da periferia, do bonde da ostentação assume brado emancipatório.
 
É preciso, no entanto, ponderar todas as provocações, o conceito, a ideia de emancipação no capitalismo tal como estamos vivendo - financeirista, global e abstrato, mas ainda excludente, desigual e explorador  - se conforma de maneira difusa e, pior, cada vez mais suscetível a virar mais um nicho de mercado. Exemplo interessante é ver que enquanto um livro elabora de maneira crítica e forte teses revolucionárias é publicado ao sabor das demandas do mercado editorial, um rolezinho - como está acontecendo - pode fazer “sozinho” emergir as contradições fundamentais do nosso capitalismo periférico à brasileira. A realidade complica muito nossas equações.
 
Racista, patriarcal e excludente. Foi assim que se constituiu o capitalismo moderno no Brasil; a mão invisível do mercado aqui não se deteriora, não permanece realmente fora do lugar, mas se atualiza: o capitalismo não é um algo "x" que foi deportado das terras europeias e então se comporta como um estrangeiro, e sim uma relação que se atualiza e toma suas medidas a partir daí, tornando-se nativo. É complicado fazer qualquer resumo desse "deslimite" do capitalismo e seu caráter de fugir de qualquer categorização fixa; se há alguma possibilidade de qualifica-lo é deixar claro que ele escapa de suas próprias medidas, as reiventa e as suspende no momento seguinte, reproduzindo a si mesmo mais uma vez. É o seu processo.
 
É daí que então sai o perigo da segunda crítica: o de esvaziar algo a serviço disto ou daquilo, alguns caracterizando o rolezinho como novo indivíduo revolucionário; outros como... bem, não há pretensão de pensamento, há só reprodução de status quo pela direita. E finalmente, o pior dos esvaziamentos: “não há o que ver nos rolezinhos”. Ele certamente não foi uma manifestação da insatisfação da classe que pode vir a representar, no entanto, não é - muito menos - mera retórica marxista dizer que a reação a esses rolezinhos pôs em choque o conflito que parecia silenciado pelo consumo, base inequívoca da relação social. Dou razão àqueles que não engolem o puro messianismo de que no par “explorador-explorado” um deles aparece como o sujeito revolucionário. Temos de lidar com um deserto muito maior do que nos é confortável acreditar, contudo o simples rechaço à coloração brasileira de nosso capitalismo serve a uma crítica que naturaliza os conflitos sejam eles de raça, gênero ou qualquer outro.
 
Encontrar tal debate num "simples" choque/encontro de aglomerações (a do rolezinho e a dos consumidores no shopping) não é torcer o real e dali tirar algo que valha para esta ou aquela vertente política, mas é perceber que algo nos conduz pelas costas, que nos organiza socialmente e apesar de nossa individualidade, justamente porque este algo constitui tais relações. O esvaziamento do debate, invalidando-o ou dando-lhe o sentido conveniente, serve para mostrar a quantas anda a possibilidade crítica da sociedade.

Fonte: Carta Maior

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