janeiro 29, 2014

"Os "rolezinhos": explicações que ecoam da Idade Média", por Fernando Ribeiro e Maurício Loboda Fronzaglia

PICICA: "A situação de incômodo tem sua origem em uma situação social (de consequências políticas e econômicas ainda em construção) muito semelhante: a apropriação dos meios e modos de vida das “primeiras classes” pelas “classes inferiores”"


DESIGUALDADE
Os "rolezinhos": explicações que ecoam da Idade Média
A situação de incômodo tem sua origem em uma situação social (de consequências políticas e econômicas ainda em construção) muito semelhante: a apropriação dos meios e modos de vida das “primeiras classes” pelas “classes inferiores”
por Fernando Ribeiro e Maurício Loboda Fronzaglia
No século XIV, com a disseminação da Peste Negra, a Inglaterra perdeu, em meses, metade da sua população. No período que se seguiu após a Peste, o cenário era de cidades e vilarejos abandonados e não havia mão de obra suficiente para o cultivo da terra. Por conseguinte, a demanda por trabalho e seu preço cresceram. Os trabalhadores, que formavam a terceira ordem da sociedade medieval, não mais se submeteriam aos seus antigos senhores da mesma forma que outrora. Um exemplo está na história de William de Cayburn, um lavrador de Lincolnshire, que a partir de então não mais trabalharia a não ser pelo pagamento diário, que  se recusava a carne conservada no sal, queria carne fresca. Sem receber o que demandara, William deixou o condado. Assim como William, muitos trabalhadores ingleses perceberam e aproveitaram a oportunidade para procurar por melhores salários e condições de trabalho.

As autoridades e os membros pertencentes à primeira e à segunda ordem, nobreza e clero, entraram em pânico diante dessa nova situação social, em que trabalhadores não mais se sujeitavam a senhores. Como seria possível que a ordem que não tinha terra nem “sangue” pudesse ousar a desafiar o regime de servidão?  Em 1349 foram aprovadas leis que proibiam trabalhadores de viajarem em busca de emprego, além de congelarem seus salários, com o claro intuito de restituir a situação social anterior. Anos depois, em 1363, os senhores fizeram valer uma lei que determinava quais trajes eram adequados para cada ordem, dando visibilidade à estrutura de desigualdade social na qual se apoiava a sociedade medieval. A terceira ordem, agora em melhor situação, aumentara seus ganhos e começara a adquirir roupas e tecidos outrora apenas disponíveis ao Clero e à Nobreza.  Segundo a lei, um camponês deveria se vestir como um camponês e não poderia gastar mais do que um determinado montante para suas roupas, além de estar proibido de usar qualquer vestimenta que fosse de uso das classes superiores. Havia severas penas para quem não cumprisse. A Nobreza e o Clero demonstravam concretamente, através desta lei , o incômodo e o ódio que sentiram ao ver que a terceira ordem, considerada naturalmente inferior, ousava em ter e vestir os mesmos hábitos. Ambas não concebiam ver condições de igualdade, não se reconheciam e não reconheciam o direito dos trabalhadores de ocuparem os “seus” lugares e vestirem “suas” roupas. Daí nascem um estranhamento e uma tensão que culminam na grande revolta de 1381, conhecida, posteriormente, como The Peasants’ Revolt.

As leis de segregação do final da Idade Média na Inglaterra não tiveram o efeito desejado pelas ordens que a fizeram. Pelo contrário, ao longo do século XV os campos da Inglaterra prosperam e os traços do sistema senhorial começam a se desfazer. A Inglaterra foi a primeira a abolir a servidão e a corveia, tornando-se a protagonista da longa transição, passando pelas revoluções do século XVII, para o capitalismo em sua totalidade (economia de mercado associada a direitos civis, políticos e, posteriormente, sociais). O país percorre um longo caminho para consolidar a igualdade perante a lei, em uma prática cotidiana e socialmente aceita.

Os atuais “rolezinhos” expressam uma situação social análoga à ilustrada acima, na breve citação sobre a história inglesa. Está claro que lidamos com realidades sociais distintas, que apresentam construções históricas também distintas, e que as classes sociais envolvidas apresentam diferenças em sua gênese e desenvolvimento. No entanto, a situação de incômodo tem sua origem em uma situação social (de consequências políticas e econômicas ainda em construção) muito semelhante: a apropriação dos meios e modos de vida das “primeiras classes” pelas “classes inferiores”. 

Na aurora do século XXI o Brasil cresce, a renda cresce, o crédito cresce. As cidades continuam vibrantes e barulhentas com seus automóveis, suas lojas e seus shoppings parecem tranquilos, pois ainda são frequentados pelas “devidas pessoas” com carros prateados. O Brasil é um espetáculo, Brazil takes off e, por conseguinte, a demanda por trabalho aumenta, especialmente no setor de serviços. Os salários reais se elevam como poucas vezes se viu na economia brasileira. Os pardos, negros, deslocados, periféricos não comerão apenas iogurte e frango, não se falarão apenas pelo uso de anacrônicas fichas metálicas, não cruzarão o país em velocidade pouco mais rápida que os Bandeirantes por terra. Agora, com melhores salários: carne fresca de primeira, celulares, Iphones, smartphones e todos os requisitos para se integrar à rede mundial (ainda uma integração virtual, que mais frustra do que realiza) e, por fim, os destinos se encontram mais em aeroportos do que em sujas e decadentes rodoviárias.

Então, há que se admirar e condenar o despautério, a arrogância, a impetuosidade desses que não conhecem seu lugar. Há que se domar e enquadrar esses que ousam sair da condição de submissos e que querem a igualdade, mesmo que seja a igualdade pelo consumo e pela inserção no mercado. Como na Inglaterra do século XIV, quer-se regular e restringir os direitos daqueles que não se mantém no seu lugar. Há pressa em corrigir o que está “fora do lugar” através das liminares. Porém, essas são peças jurídicas, expressão de conflito político regulado. Melhor, na dúvida, é mandar a cavalaria, a Guarda Pretoriana. Não são as vestes que farão a distinção, distinguem-se uns dos outros pelo cordão pretoriano que separa, ou antes, representa um país dividido.

O mal estar dos “rolezinhos” que ronda o Brasil não deriva do aumento da renda dos que vivem ao redor das cidades. Tampouco no simples ato de vestir e usar esse ou aquele tecido, esse ou aquele aparelho eletrônico, esse ou aquele carro (mesmo de segunda mão). Esse mal estar está na própria constituição de um país que foi um dos últimos a abolir a escravidão, que foi o que viveu a mais longa ditadura latino-americana no pós II Guerra.  Ou seja, uma história onde o pavor à Igualdade levou à supressão da Liberdade (para não falarmos da Fraternidade inexistente). Melhor presos em ditaduras e desiguais do que livres e iguais.  Afinal, trata-se de um país onde há gente diferenciada.

Ir e encontrar-se no shopping, em multidão, em reunião, é encontrar-se na Polis, na Ágora de uma sociedade onde o consumo nos parametriza e nos define. O uso fruto dos direitos civis requer o sentido de pertencimento, o qual não é dado pelos serviços públicos e, por extensão pelo Estado, mas sim pelo poder de compra, pelo ser aceito no mercado como consumidor.
A transição para a igualdade demora séculos e apresenta situações de tensão tão fortes quanto a desigualdade que tenta combater. O Brasil vive essa transição, ainda que parte dele não a queira fazer. 

Fernando Ribeiro e Maurício Loboda Fronzaglia 

Respectivamente, economista, professor da PUC-SP e do Insper e Doutor em Ciência Política, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ambos são sócios da Urbana Consultoria em Desenvolvimento Econômico e Social.

28 de Janeiro de 2014
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A reação conservadora à expressão da juventude negra da periferia

A repressão aos rolezinhos patrocinada pelos interesses privados (dos shopping centers) terá o potencial de disseminar a percepção de que os donos do capital são também promotores da violência, do racismo, do classismo e repressão às formas de expressão juvenis, periféricas, negras? Não nos subestimem, o movimento negro e a juventude negra estão dispostos a tornar concreta essa possibilidade

Em alguns templos do consumo, jovens passaram a ser “selecionados” na entrada
Foto: Estadão Conteúdo
Nas primeiras semanas de 2014 ganhou destaque a discussão sobre os chamados rolezinhos – encontros, em grandes grupos, de adolescentes e jovens em shopping centers, principalmente da cidade de São Paulo. Muito já se falou e escreveu sobre o assunto, e o acontecimento poderia ser ainda mais bem tratado em muitas perspectivas, como do planejamento urbano e do direito à cidade, da ideologia do consumo como realização máxima da existência, da disputa discursiva sobre os sentidos desses encontros juvenis, da estética do funk como forma de identificação geracional, das políticas públicas voltadas à juventude etc. Sem desprezar a possibilidade de outras abordagens. Enquanto militantes do movimento negro, entendemos que é indispensável destacar o racismo – articulado às dimensões de classe, geracionais/etárias e ao estilo (o funk) – como uma das bases fundamentais dessa polêmica.

A controvérsia pública gerada a partir dos rolezinhos tem, de um lado, o funk como trilha sonora e jovens negras(os), pobres e das periferias enquanto atores principais, que protagonizam com esses eventos a busca de uma opção de lazer, num local, o shopping center, totalmente adequado a essa busca segundo o senso comum. Do outro lado, como pretensos atores coadjuvantes, aparecem representantes de lojistas dos shoppings, o Judiciário, a Polícia Militar e grandes mídias, todos mais ou menos explicitamente se colocando contra esses encontros, incentivando, legalizando e efetivando a repressão. Deve-se evidenciar, entretanto, que esses coadjuvantes de maior poder, status e dinheiro (dos grupos e classes do privilégio – brancos, das classes médias tradicionais e elites – ou seus representantes) são, na verdade, parte do elenco principal de uma peça maior, que podemos definir como a tragédia do racismo brasileiro. No caso dos rolezinhos, os privilegiados e seus representantes responderam como secularmente reagem a qualquer forma de ação dos “de baixo” que subverta a ordem, mesmo que de maneira lateral e sem nenhuma intencionalidade. Não se pode escapar, nessa perspectiva, ao sentido político da reação dos privilegiados, pois ela não é um ponto fora da curva, e sim uma marca da reprodução de nossa ordem social ainda profundamente desigual, autoritária e racista.

Foram dadas pelo Judiciário, não só em São Paulo, mas também em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, liminares de proibição aos rolezinhos. A polícia, quando acionada, portou-se da forma conhecida: com violência e força totalmente desproporcionais – até com balas de borracha e bombas de “efeito moral”. Para completar, em alguns shoppings as(os) jovens, principalmente menores de 18 anos, passaram a ser “selecionados” (eufemismo para a discriminação racial, de classe e etária, aqui articuladas) nas portarias desses templos do consumo. Bem ao modo do racismo à brasileira, em entrevista o representante nacional dos proprietários desses estabelecimentos disse que as(os) jovens deveriam procurar um local mais adequado para seus passeios em grupo – o sambódromo, por exemplo. Douglas Belchior, ativista do movimento negro de São Paulo, chamou a atenção com muita perspicácia para esse fato em seu blog Negro Belchior. Para os privilegiados, o único local de lazer e encontro “adequado” para jovens negras(os) de periferia é o sambódromo! Há melhor definição, além de racista, para o imaginário desse senhor?
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A reação conservadora à expressão da juventude negra da periferia

A repressão aos rolezinhos patrocinada pelos interesses privados (dos shopping centers) terá o potencial de disseminar a percepção de que os donos do capital são também promotores da violência, do racismo, do classismo e repressão às formas de expressão juvenis, periféricas, negras? Não nos subestimem, o movimento negro e a juventude negra estão dispostos a tornar concreta essa possibilidade

Em alguns templos do consumo, jovens passaram a ser “selecionados” na entrada
Foto: Estadão Conteúdo
Nas primeiras semanas de 2014 ganhou destaque a discussão sobre os chamados rolezinhos – encontros, em grandes grupos, de adolescentes e jovens em shopping centers, principalmente da cidade de São Paulo. Muito já se falou e escreveu sobre o assunto, e o acontecimento poderia ser ainda mais bem tratado em muitas perspectivas, como do planejamento urbano e do direito à cidade, da ideologia do consumo como realização máxima da existência, da disputa discursiva sobre os sentidos desses encontros juvenis, da estética do funk como forma de identificação geracional, das políticas públicas voltadas à juventude etc. Sem desprezar a possibilidade de outras abordagens. Enquanto militantes do movimento negro, entendemos que é indispensável destacar o racismo – articulado às dimensões de classe, geracionais/etárias e ao estilo (o funk) – como uma das bases fundamentais dessa polêmica.

A controvérsia pública gerada a partir dos rolezinhos tem, de um lado, o funk como trilha sonora e jovens negras(os), pobres e das periferias enquanto atores principais, que protagonizam com esses eventos a busca de uma opção de lazer, num local, o shopping center, totalmente adequado a essa busca segundo o senso comum. Do outro lado, como pretensos atores coadjuvantes, aparecem representantes de lojistas dos shoppings, o Judiciário, a Polícia Militar e grandes mídias, todos mais ou menos explicitamente se colocando contra esses encontros, incentivando, legalizando e efetivando a repressão. Deve-se evidenciar, entretanto, que esses coadjuvantes de maior poder, status e dinheiro (dos grupos e classes do privilégio – brancos, das classes médias tradicionais e elites – ou seus representantes) são, na verdade, parte do elenco principal de uma peça maior, que podemos definir como a tragédia do racismo brasileiro. No caso dos rolezinhos, os privilegiados e seus representantes responderam como secularmente reagem a qualquer forma de ação dos “de baixo” que subverta a ordem, mesmo que de maneira lateral e sem nenhuma intencionalidade. Não se pode escapar, nessa perspectiva, ao sentido político da reação dos privilegiados, pois ela não é um ponto fora da curva, e sim uma marca da reprodução de nossa ordem social ainda profundamente desigual, autoritária e racista.

Foram dadas pelo Judiciário, não só em São Paulo, mas também em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, liminares de proibição aos rolezinhos. A polícia, quando acionada, portou-se da forma conhecida: com violência e força totalmente desproporcionais – até com balas de borracha e bombas de “efeito moral”. Para completar, em alguns shoppings as(os) jovens, principalmente menores de 18 anos, passaram a ser “selecionados” (eufemismo para a discriminação racial, de classe e etária, aqui articuladas) nas portarias desses templos do consumo. Bem ao modo do racismo à brasileira, em entrevista o representante nacional dos proprietários desses estabelecimentos disse que as(os) jovens deveriam procurar um local mais adequado para seus passeios em grupo – o sambódromo, por exemplo. Douglas Belchior, ativista do movimento negro de São Paulo, chamou a atenção com muita perspicácia para esse fato em seu blog Negro Belchior. Para os privilegiados, o único local de lazer e encontro “adequado” para jovens negras(os) de periferia é o sambódromo! Há melhor definição, além de racista, para o imaginário desse senhor?
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Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

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