PICICA: "[...]a gentrificação como fenômeno social impulsionado pela
expropriação do solo urbano expande seu raio de ação para os espaços
populares de entretenimento, empurrando os “desabrigados” para o campo
virtual da televisão. O calor humano e a vibração seguem para o
vestiário. No lugar deles entra o consumo."
IMPRENSA ESPORTIVA
A gentrificação no futebol
Por João Batista de Abreu em 31/12/2013 na edição 779
Este texto é uma condensação de artigo do livro Políticas públicas e pluralidade na comunicação e na cultura, com previsão de lançamento em março de 2014 pela editora E-papers
O futebol brasileiro vive hoje um processo semelhante ao que os
urbanistas e geógrafos chamam de gentrificação, ou seja, o processo de
se apropriar de áreas degradadas de uma metrópole, expulsar os pobres,
reurbanizar e depois revendê-las às camadas médias ou à elite, com
investimentos públicos em infraestrutura.
Basta olhar o que acontece com os estádios de futebol. Quarenta anos atrás, o Brasil orgulhava-se de possuir os maiores estádios do mundo. Tivemos jogos com quase 200 mil pessoas, como Brasil e Uruguai, na final da Copa do Mundo de 1950; Brasil 1x0 Paraguai em 1969, pelas eliminatórias da Copa do ano seguinte; e Flamengo 0x0 Fluminense, em 1963, na decisão do Campeonato Carioca. Todos no Maracanã, onde oficialmente cabiam 150 mil pessoas entre arquibancada, geral e cadeiras.
O que vimos nos últimos dez anos começou na Europa e atravessou o Atlântico. A maioria dos estádios encolheu para satisfazer as exigências de um modelo que privilegia pequenas camadas sociais em condições de pagar caro pelo ingresso e assistir passivamente a um espetáculo. As áreas populares, como a geral, deram lugar a camarotes e a espaços vip. O preço dos ingressos saltou mais de 300% em dez anos, para uma inflação que nem chegou a 50%. Aquele torcedor da geral, rádio de pilha colado ao ouvido – eternizado pela teleobjetiva do cinejornal Canal 100 – ficou no passado. O que os administradores privados desejam é o torcedor comportado, que não carrega bandeiras, só se levanta na hora de gritar gol e aceita pagar taxas caras para usar o estacionamento do estádio em cidades onde o transporte público está abaixo da crítica.
O futebol brasileiro sofreu um processo de europeização, com a aprovação ou o silêncio da imprensa esportiva, que em sua grande maioria embarcou no discurso neoliberal da globalização do futebol. Vários argumentos tentam justificar o aumento dos ingressos: a comparação com as entradas de teatro, a necessidade de compensar os clubes que perderam receita com o fim do passe do jogador após a Lei Pelé, e até mesmo a referência aos ingressos do futebol europeu, onde a libra e o euro são moedas muito mais valorizadas que o real.
O imponente palco de grandes clássicos, erguido em 1950 para a primeira Copa do Mundo no Brasil, diminuiu sua capacidade de 150 mil para 79,8 mil pessoas. Áreas populares foram eliminadas. A geral desapareceu por exigência da Fifa em nome da segurança. Os ingressos sofreram valorização absurda. No caso do Rio de Janeiro, o Brasil só jogará no estádio Mário Filho se chegar à final. Imagine o nível de frustração se a final for, por exemplo, entre Argentina e Itália.
Dos estádios para a TV
Mas por que isso acontece? Alguns números ajudam a entender o processo. É claro que quando se reduz a capacidade do estádio e se aumenta o valor dos ingressos, impõe-se ao torcedor um novo modelo de participação. E que modelo é este? A televisão. Uma forma confortável de assistir ao espetáculo, mas a distância. Você passa a ser um torcedor da poltrona. É por isso que chamo esse fenômeno de gentrificação do futebol – a expulsão dos torcedores pobres dos estádios e sua migração para outras localidades, físicas ou virtuais.
E onde se localiza essa nova periferia? Na televisão, tanto no canal aberto, como na TV por assinatura. A periferia não se concentra nos lares. Pode expandir-se também pelos bares e botequins, hoje quase todos dotados de aparelhos de tela plana, ou ocupar os cinemas, uma tendência que começa a ganhar espaço nos grandes centros.
A categoria “torcedor de futebol” vai além do frequentador de estádio, sócio de clube ou consumidor de produtos licenciados. Abrange uma gama de pessoas que acompanham o time, a negociação de jogadores, enfim, o noticiário que envolve o cotidiano do esporte mais popular no Brasil. Não é à toa que a maioria dos diários de grande circulação mantém um caderno de esporte que impulsiona a venda às segundas-feiras, principalmente quando um time de grande torcida vence no domingo. Neste caso, o jornal, mais do que informação, oferece catarse.
Quem lucra com isso? A emissora e os anunciantes, que se beneficiam da audiência para conquistar cada vez mais consumidores. O importante é consumir os produtos veiculados durante a transmissão. Os anúncios da TV e o merchandising no uniforme dos jogadores ganham mais visibilidade, na medida em que o diretor de TV tem a capacidade de selecionar o que o espectador deve ver, tanto no que diz respeito ao enquadramento quanto no tempo de exposição.
O Brasil tem 15 milhões de domicílios dotados de TV por assinatura. Desses, 59% lares recebem o sinal por satélite e os outros 41%, por cabo. A Região Sudeste é a que ostenta o maior número de assinantes, com 9,5 milhões de lares, porém a que mais cresceu em 2012 foi a Região Norte: 45% contra 27% da Região Sudeste.
Curiosamente, a imprensa esportiva brasileira se mantém a distância dessa discussão, em parte pelos compromissos que envolvem os grandes conglomerados de comunicação, que congregam jornais, revistas, emissoras de rádio e TV, e em parte também porque muitos de nossos cronistas se deixam contagiar cada vez mais pela organização europeia do futebol, propondo, entre outros absurdos, o fim dos campeonatos regionais. Quanto aos benefícios deixados à população pelos grandes eventos, a exceção que merece registro é a série de reportagens “(Re)legado do Pan”, do jovem repórter Lucas Calil, publicada no diário Extra e vencedora do Prêmio Petrobras de Jornalismo na categoria esportes, sobre o legado dos Jogos Pan-americanos realizados no Rio de Janeiro em 2007.
Enfim, a gentrificação como fenômeno social impulsionado pela expropriação do solo urbano expande seu raio de ação para os espaços populares de entretenimento, empurrando os “desabrigados” para o campo virtual da televisão. O calor humano e a vibração seguem para o vestiário. No lugar deles entra o consumo.
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Jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense
Basta olhar o que acontece com os estádios de futebol. Quarenta anos atrás, o Brasil orgulhava-se de possuir os maiores estádios do mundo. Tivemos jogos com quase 200 mil pessoas, como Brasil e Uruguai, na final da Copa do Mundo de 1950; Brasil 1x0 Paraguai em 1969, pelas eliminatórias da Copa do ano seguinte; e Flamengo 0x0 Fluminense, em 1963, na decisão do Campeonato Carioca. Todos no Maracanã, onde oficialmente cabiam 150 mil pessoas entre arquibancada, geral e cadeiras.
O que vimos nos últimos dez anos começou na Europa e atravessou o Atlântico. A maioria dos estádios encolheu para satisfazer as exigências de um modelo que privilegia pequenas camadas sociais em condições de pagar caro pelo ingresso e assistir passivamente a um espetáculo. As áreas populares, como a geral, deram lugar a camarotes e a espaços vip. O preço dos ingressos saltou mais de 300% em dez anos, para uma inflação que nem chegou a 50%. Aquele torcedor da geral, rádio de pilha colado ao ouvido – eternizado pela teleobjetiva do cinejornal Canal 100 – ficou no passado. O que os administradores privados desejam é o torcedor comportado, que não carrega bandeiras, só se levanta na hora de gritar gol e aceita pagar taxas caras para usar o estacionamento do estádio em cidades onde o transporte público está abaixo da crítica.
O futebol brasileiro sofreu um processo de europeização, com a aprovação ou o silêncio da imprensa esportiva, que em sua grande maioria embarcou no discurso neoliberal da globalização do futebol. Vários argumentos tentam justificar o aumento dos ingressos: a comparação com as entradas de teatro, a necessidade de compensar os clubes que perderam receita com o fim do passe do jogador após a Lei Pelé, e até mesmo a referência aos ingressos do futebol europeu, onde a libra e o euro são moedas muito mais valorizadas que o real.
O imponente palco de grandes clássicos, erguido em 1950 para a primeira Copa do Mundo no Brasil, diminuiu sua capacidade de 150 mil para 79,8 mil pessoas. Áreas populares foram eliminadas. A geral desapareceu por exigência da Fifa em nome da segurança. Os ingressos sofreram valorização absurda. No caso do Rio de Janeiro, o Brasil só jogará no estádio Mário Filho se chegar à final. Imagine o nível de frustração se a final for, por exemplo, entre Argentina e Itália.
Dos estádios para a TV
Mas por que isso acontece? Alguns números ajudam a entender o processo. É claro que quando se reduz a capacidade do estádio e se aumenta o valor dos ingressos, impõe-se ao torcedor um novo modelo de participação. E que modelo é este? A televisão. Uma forma confortável de assistir ao espetáculo, mas a distância. Você passa a ser um torcedor da poltrona. É por isso que chamo esse fenômeno de gentrificação do futebol – a expulsão dos torcedores pobres dos estádios e sua migração para outras localidades, físicas ou virtuais.
E onde se localiza essa nova periferia? Na televisão, tanto no canal aberto, como na TV por assinatura. A periferia não se concentra nos lares. Pode expandir-se também pelos bares e botequins, hoje quase todos dotados de aparelhos de tela plana, ou ocupar os cinemas, uma tendência que começa a ganhar espaço nos grandes centros.
A categoria “torcedor de futebol” vai além do frequentador de estádio, sócio de clube ou consumidor de produtos licenciados. Abrange uma gama de pessoas que acompanham o time, a negociação de jogadores, enfim, o noticiário que envolve o cotidiano do esporte mais popular no Brasil. Não é à toa que a maioria dos diários de grande circulação mantém um caderno de esporte que impulsiona a venda às segundas-feiras, principalmente quando um time de grande torcida vence no domingo. Neste caso, o jornal, mais do que informação, oferece catarse.
Quem lucra com isso? A emissora e os anunciantes, que se beneficiam da audiência para conquistar cada vez mais consumidores. O importante é consumir os produtos veiculados durante a transmissão. Os anúncios da TV e o merchandising no uniforme dos jogadores ganham mais visibilidade, na medida em que o diretor de TV tem a capacidade de selecionar o que o espectador deve ver, tanto no que diz respeito ao enquadramento quanto no tempo de exposição.
O Brasil tem 15 milhões de domicílios dotados de TV por assinatura. Desses, 59% lares recebem o sinal por satélite e os outros 41%, por cabo. A Região Sudeste é a que ostenta o maior número de assinantes, com 9,5 milhões de lares, porém a que mais cresceu em 2012 foi a Região Norte: 45% contra 27% da Região Sudeste.
Curiosamente, a imprensa esportiva brasileira se mantém a distância dessa discussão, em parte pelos compromissos que envolvem os grandes conglomerados de comunicação, que congregam jornais, revistas, emissoras de rádio e TV, e em parte também porque muitos de nossos cronistas se deixam contagiar cada vez mais pela organização europeia do futebol, propondo, entre outros absurdos, o fim dos campeonatos regionais. Quanto aos benefícios deixados à população pelos grandes eventos, a exceção que merece registro é a série de reportagens “(Re)legado do Pan”, do jovem repórter Lucas Calil, publicada no diário Extra e vencedora do Prêmio Petrobras de Jornalismo na categoria esportes, sobre o legado dos Jogos Pan-americanos realizados no Rio de Janeiro em 2007.
Enfim, a gentrificação como fenômeno social impulsionado pela expropriação do solo urbano expande seu raio de ação para os espaços populares de entretenimento, empurrando os “desabrigados” para o campo virtual da televisão. O calor humano e a vibração seguem para o vestiário. No lugar deles entra o consumo.
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Jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense
Fonte: Observatório da Imprensa
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