janeiro 08, 2014

"Azul demais, nada de mais" (A morte é uma borboleta)

PICICA: "Oh minha França bela França, meu mundo belo mundo machista, racista e ainda hoje colonialista por que eu tenho a impressão de que as mulheres continuam sendo usadas nas mãos de homens poderosos e não só poderosos como Kechiche, mas como Steven Spielberg, presidente do júri dessa edição do festival? É só quando Kechiche embranquece o seu cinema e a referência ao colonialismo torna-se uma simples alusão muito distante e que as personagens principais serão as musas brancas que ele vencerá Cannes, com um filme sobre amor entre mulheres que repete clichês do amor heteronormativo. Nada de novo no front, não em Cannes, mas não será lá que inventaremos novos amores."

Azul demais, nada de mais



Le bleu est une couleur chaude Julie Maroh  http://djou-bd.over-blog.com/


Tentei escrever esse texto sobre o filme "Azul a cor mais profunda", partindo primeiro das impressões que tive ao assistir ao filme sem saber da polêmica em torno dele e aos poucos acrescentar o que veio com leituras posteriores, o fora-tela. Tentei... depois misturou tudo. O texto é dedicado à Diana, Bruno e Davi pelas conversas, inspirações depois e a partir do filme.








Adèle, ai que tédio sua cara de peixe morto e sua boca entreaberta vista bem de perto nesse tom sensual. Logo que ela aparece já sabemos: essa é a musa que não quer ser musa, patinho feio só que não, bunda bonita que aparece todo o tempo, na calça apertada meio desengonçada por que é adolescente, no pijaminha dormindo. Aí a gente se pergunta, será que o diretor quer que a gente vá com o diário ou desconfie desse diário? O que incomoda no filme são esses caras bacanas e essas mulheres perfeitas que são um tédio. Será que o diretor acredita mesmo que o mundo é assim ou ele está sendo irônico? Ele tá tirando da cara de todo mundo? Será que ele está sendo tão manipulador e a sua violência com o mundo é essa de produzir esse discurso, essa estética, ou de reproduzi-la? Mas deixa eu tentar voltar pro que eu tava falando. Da Adèle, que é um tédio, olha o mundo, é profunda, ela lê e conversa com o carinha que não lê, pensando no amor verdadeiro que ela viu na rua, uma mulher perfeita de cabelo azul, olhos azuis. E tem aquela coisa do mundo parar quando elas se vêem. Ah, mas é um diário, então será que ela é perfeita só no diário? Elas são perfeitas só no diário? Aí o diretor estaria perdoado? Princesa encontra princesa. Ela vai nas boates gay e não dança, no bar lésbico mas não beija, bem mais tarde na trama encontra o colega de trabalho numa salsa e também não chega a dançar tanto. Vista sempre muito de perto com olhos de quem lhe coloca uma pureza, ou contada pelo seu diário que evoca essa pureza e, na mesma medida em que Adèle é pura o azul dos olhos e dos cabelos de Emma brilham, sua inteligência e seu modo descolado se destacam, ela faz belas artes e cita Sartre. Socorro. Deixa eu fugir do cinema. Não que essas características tenham algum problema por si sós, mas a maneira como são colocadas lado a lado num encontro de dois seres perfeitos, com suas belas tiradas de quem está no parque olhando o céu "e está tão bom" dizem elas... e então... a cena de sexo que, pela trama, aaaah ainda bem que ela existe! Até que enfim! Por que eu não aguentava mais tudo aquilo que se passava só na cabeça e nos olhos de Adèle, aquela perfeição de seu diário. Só ali então é que algo que parecia construído numa idealização de relação se torna real, pessoas fazem sexo e fazem sexo com closes, sem luz especial para isso. Se todo o filme é assim, não nos poupando das bundas, bocas, olhos e pessoas mastigando bem de perto por que agora o diretor nos pouparia, achei que foi importante, pois marca uma passagem do filme, quebra com aquele amor platônico (apesar de depois na trama ele deixar de ser platônico para passar a ser heteronormativo, cada uma cumprindo um papel bem claro: o homem e a mulher) e toda uma interioridade. Mas aí tem aquela vontade de perfeição que parece persistir também ali. O problema é que deixa de ser idealizada talvez a relação entre elas, mas não deixam de ser idealizados os corpos e a visão da mulher. Elas estavam no parque se olhando com cara de paixão como se fossem duas criaturas intocáveis e de repente uma cena de 10 minutos de sexo. Achei necessário por que aquela criatura nem se mexia, era o encontro de duas musas, a cena longa de sexo quebra um pouco da pureza e idealização das personagens, o que não quebra é a maneira como é filmado, não vou entrar ainda não questão do assédio moral alegado pelas atrizes no setting de filmagem (http://www.slate.fr/culture/77196/lea-seydoux-adele-exarchopoulos-kechiche), mas o resultado dessa cena e do filme é de corpos belos no sentido do corpo padrão, o próprio diretor defendendo-se das acusações em relação ao autoritarismo afirmou que não entendeu as acusações por que o que se queria passar era o desenho do encontro das personagens como uma pintura. Ah seu Kechiche, “like paintings?” (http://www.theupcoming.co.uk/2013/05/26/an-interview-with-abdellatif-kechiche-director-of-cannes-winner-blue-is-the-warmest-colour/), não era pra ser o desejo, o encontro? Novamente as deusas intocáveis que, vistas em seu momento sagrado, todos querem profanar? Então é isso? Preferiria fosse um rala e rola mesmo, com corpo todo errado. Nesse sentido a filmagem da cena de sexo de Adèle com o namorado do início do filme é mais interessante (fora a cara dela de sempre de “ai que tédio”), por ter imperfeições. Eles estão desconfortáveis, ela bate a cabeça na parede, o corpo não encaixa direito, mas isso é feito pra dizer que ela não está gostando, não gosta dele ou não gosta de mulheres, e não por que o quarto é pequeno, ou por que nossos corpos são mesmo imperfeitos ou somos descoordenados e não sabemos o que fazer num primeiro encontro e temos que aprender juntos como se faz. Mulheres ou homens. Duas mulheres transando não são “like paintings” mesmo se estão loucas de tesão e se amando mais que tudo.


O ponto alto do filme é a comida e não a boca aberta das respirações vazias. O ponto alto de Adèle é a comida, é o que ela consegue afirmar. É um dos prazeres, uma das paixões, e a cozinha uma de suas qualidades. O que é impecável no filme são as cenas das pessoas comendo, desde o primeiro encontro com o menino comendo um sanduíche na rua, cenas nas mesas com closes das bocas comendo e falando, a fome, a cena do jantar, o cruzamento das falas da vida com as falas sobre a comida, ou de como a comida compõe sem ser citada, ou marca uma posição social, como na cena do jantar na casa de Emma, seu primeiro vernissage em que ela e seus amigos falam, numa conversa bastante intelectualizada, de como o prazer não é compartilhável, é particular, ao mesmo tempo em que estão todos comendo a mesma comida, de uma maneira quase irascível, estão todos unidos pelo estômago, devorando a massa cozinhada por Adèle, com as bocas sujas, falando de boca cheia. Ela que se sentia ali tão deslocada era que havia provocado esse comum de que as pessoas participavam, mas nem percebiam como havia sido criado, apesar de a reconhecerem nesse espaço, era ela quem se sentia invisível, desconfortável. Desconforto que só é percebido por Samir - interpretado pelo ator Salim Kechiouche - personagem árabe que trabalha como ator de filmes de ação nos EUA, que só conseguia papéis de terrorista e que acaba servindo a massa para Adèle. É nesse personagem que talvez possamos ver onde se localiza o olhar de Kechiche no filme, esse personagem surge como uma espécie de crítica ao mundo dos intelectuais artistas do mundo de Emma, ao mesmo tempo ele não está totalmente identificado com a narração do diário de Adèle, mas lhe é mais solícito, disponível.  Ele e Adèle tem um encontro por ambos não pertencerem àquele mundo. Mas aqui aparece outra questão do filme, a de que essa solicitude, esse apoio que Adèle encontra em alguns personagens do filme, num filme de amor entre duas mulheres, acontece justamente através de personagens masculinos. As cenas de mão estendida por parte de amizades do colégio também vão nesse sentido, seu melhor amigo era um menino, ajudando a reforçar a crença de que mulheres não sabem cultivar vínculos entre elas, não se apoiam mutuamente.


O diretor mostrou-se espantado e disse não entender o que significava uma visão masculina da história, que o acusavam de ter realizado.  "Do I need to be a woman, and a lesbian, to talk about love between women? We're talking about love here – it's absolute, it's cosmic.” (http://www.theguardian.com/film/2013/oct/27/abdellatif-kechiche-interview-blue-warmest).  Não, você não precisa ser uma mulher lésbica para falar do amor entre mulheres, mas o amor, ah o amor, ele não é cósmico, ele é cosmicamente heteronormativo. E para não o ser precisa ser reconstruído conjuntamente. Para dizer que o amor é cósmico, além da cultura, em que cosmo você vive Kechiche? A palavra Cosmos vem do grego, e na antiguidade significava a existência de ordem e harmonia superiores, guiando um universo aparentemente caótico. A ideia de um “amor cósmico” parece ressoar essa crença numa harmonia suprema, uma beleza unânime, presentes nos altos sentimentos, capazes de elevar-nos do mundo do interesse, do particular e do instinto. Essa ideia de amor cósmico parece muito próxima das musas desenhadas por Kechiche, musas sem marcas que, quando são marcadas ao longo da trama, pouco a pouco faz o amor acabar. 


Não é que seja masculino simplesmente por não ser realizado por mulheres ou por lésbicas, como se devesse adaptar-se à realidade, pois não é a realidade, apesar de Kechiche falar em realismo, é sim cinema. Por isso, também dizer que a cena de sexo não é verossímil, pois duas mulheres não fariam isso não faz sentido, pois já estaríamos julgando o que cabe ou não caberia a duas mulheres fazer, ou seja, formulando ainda outra norma do “sexualmente correto”. O problema é justamente reproduzir dos corpos o discurso masculino. A própria afirmação de que gostaria de se fazer uma cena de sexo onde os corpos delas sejam reproduzidos como uma pintura, é uma visão masculina da história e da mulher. A visão de que existe a Mulher, para endeusar nos quadros e aquela para colocar para trabalhar. Aquela para colocar o vestido de gala, com joias e ir para Cannes, mas que tem que ficar em silêncio em relação a situações que tenha achado desconfortáveis em relação a violências sofridas durante a filmagem, pois afinal essa é uma provação de sua capacidade, “Se ela realmente viveu o que contou, porque ela veio à Cannes chorar, agradecer, subir as escadas e passar o dia vestindo jóias e roupas? Qual é seu trabalho? Atriz ou artista de gala?” (http://www.telerama.fr/cinema/polemique-autour-de-la-vie-d-adele-abdellatif-kechiche-s-explique-dans-telerama,102550.php). Mulheres fazem sexo, é lindo sim, mas a nossa carne não é como uma pintura, nós fazemos sexo e é lindo como adoram dizer, bom, mas também feio, maldoso, engraçado, do jeito que nós quisermos. Não, o amor não é cósmico, o amor é cultural e para que seja algo bom é preciso transformá-lo. Ele é localizado como o machismo e como o racismo, outro possível personagem dessa história toda que não foi citado em nenhum momento. Uma das afirmações de Léa Seydoux é de que na França não é como nos Estados Unidos. O diretor tem todo o poder. Quando você é um ator filmando na França e você assina um contrato, você tem que se doar de tal maneira que você está preso. O que não é dito por Léa Seydoux, mas torna-se uma arma numa sociedade racista é que esse é um filme filmado na França por um diretor franco-tunisiano. São os métodos violentos de um diretor franco-tunisiano ou tunisiano, dependendo qual convenha ressaltar, que estão em questão. Afinal, isso é ressaltado o tempo todo em que se fala do diretor. Qual é o peso dessa marcação silenciosa nessa história? Os corpos marcados pelo racismo é inclusive um dos temas que se apresenta no filme sutilmente com a presença do personagem que desiste de ser ator de Hollywood por que só conseguia papéis de terrorista.


Léa Seydoux, quando acalmaram-se os ânimos afirmará: “eu nunca critiquei Kechiche, critiquei seus métodos”, mas são os métodos que são ou não “tirânicos”, “abusivos” e são essas críticas que devem ser levadas adiante, pois não é indiferente trabalhar com um diretor que tem métodos asfixiantes, tirânicos ou não respeita direitos trabalhistas (http://www.la-croix.com/Culture/Cinema/Polemique-autour-du-tournage-de-la-Vie-dAdele2013-05-29-966063). Alíás, isso de não respeitar os direitos trabalhistas foi o menos repercutido, mas é muito expressivo de como as coisas funcionam. Extenuantes horas de trabalho precisam de técnicos e de toda uma equipe em prontidão pra trabalhar, atores e diretor têm seu cachê garantido e o retorno através do reconhecimento do trabalho, enquanto isso as horas extras da equipe técnica precisam ser realizadas só pelo bem de um trabalho que nunca será reconhecido como deles, que aparecerá apenas nas letrinhas miúdas dos créditos que ninguém lê e sem o devido pagamento?

Somente bate-bocas e intriguinhas de bilheteria essas? Podem ser, mas o que expressam vão além delas e o filme realmente extrapolou-se, impôs-se para além de si, a violência que existe no cotidiano das mulheres, essa violência ser ligada também ao ambiente de trabalho, o ambiente de trabalho como espaço explorador. E o prêmio final, concedido pela primeira vez na história do festival de Cannes também a atrizes e não só ao diretor, como um reconhecimento a seu protagonismo e intervenção na construção da obra. Esse prêmio compartilhado pela primeira vez e com mulheres, feito a se comemorar, e pela primeira vez que é compartilhado... o diretor é um franco-tunisino. Oh minha França bela França, meu mundo belo mundo machista, racista e ainda hoje colonialista por que eu tenho a impressão de que as mulheres continuam sendo usadas nas mãos de homens poderosos e não só poderosos como Kechiche, mas como Steven Spielberg, presidente do júri dessa edição do festival? É só quando Kechiche embranquece o seu cinema e a referência ao colonialismo torna-se uma simples alusão muito distante e que as personagens principais serão as musas brancas que ele vencerá Cannes, com um filme sobre amor entre mulheres que repete clichês do amor heteronormativo. Nada de novo no front, não em Cannes, mas não será lá que inventaremos novos amores.



Voltando rapidamente ao filme:
Não li os quadrinhos franceses, mas para o filme acho bastante adequado o nome “La vie d'Adèle”, tal como é em francês, pois em seu diário as coisas apenas passam, e a personagem é realmente ela. A manifestação de que ela participa no período do colégio nós nem sabemos qual seja, além disso ela apenas passa pela marcha LGBT como espectadora, amigos desaparecem assim do nada, como o colega de trabalho, o amigo do colégio e a família. A única marca é o passar do tempo presente na amargura do rosto. Existem sim Adèle e Emma, e isso o diário nos mostra como elas, se tornam mais reais uma para a outra, se machucam, mudam, e o amor entra em crise quando elas não conseguem mudar juntas. Elas mudam, mas não necessariamente se transformam, mudam assim como estações do ano ou fases da vida, acabou a escola, agora é fase de trabalhar e viver o grande amor? Termina o filme e cada uma leva a outra consigo. Adèle caminha. É um filme sobre o amor sim, mas Adèle amou, ama uma mulher e ainda não sabe o que é amar uma mulher sendo uma mulher... não sei também se é uma questão de saber, mas Adèle, a Exarchopoulous, a atriz, disse  que acha que Adèle é das personagens a quem mais se entregou, a que faz o papel do sacrifício (se separou da família, dos amigos) e que também esse não é um filme que fala sobre a questão lésbica, mas sobre o amor entre duas pessoas (http://www.youtube.com/watch?v=TGKlgZQwVAM). Mas podemos pensar essas duas coisas separadas? A escolha forçada entre um mundo e outro não é forçada justamente por espaços heteronormativos, por uma separação construída? Termina o filme e Adèle está indo para casa. Ela é uma professora do primário, ela tem ainda muitos amores para construir, muitos amores por que lutar e entrar nessa luta.












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P.S.: Sobre o voyeurismo:





Acho uma graça os homens não vendo nada de mais no modo como ele filmou a cena, afinal ele filmou tudo de perto, em close. Citando o José Geraldo Couto "limpando a boca com a mão ao comer um lanche; dormindo de boca aberta; chorando como uma criança, com catarro escorrendo do nariz; erguendo as calças pela cintura, feito uma menina caipira." (http://revistaforum.com.br/blog/2013/12/quem-tem-medo-de-mulher-pelada/). Eu também não vejo nada de mais no de perto em si, como disse no texto, é o que esse de perto quer mostrar e como mostra, a questão é perguntar-se o que esse de perto realmente mostra. José Geraldo Couto continua falando também: “Truffaut costumava dizer, talvez não totalmente de brincadeira, que o papel do diretor de cinema é “mostrar uma mulher bonita fazendo coisas bonitas”. E que  “Kechiche mostrou logo duas, fazendo a coisa mais linda que elas poderiam fazer. Quem não quiser ver, que mude de canal, ou melhor, de sala.”. Eu pergunto para ele e os demais voyeurs:  e se fossem duas "feias" iriam dizer que era de "péssimo gosto", utilizando expressão que o próprio José Geraldo Couto também usa no texto? É claro que os homens não veem nada de mais na cena, é inclusive esse não ter nada de mais a questão, ela não traz outro discurso sobre a mulher que não seja o que já está aí dos corpos belos a serem admirados. A cena realmente não tem nada de mais, a violência está nos olhos de quem não percebe que a disponibilidade aos olhos é o que torna o corpo da mulher tão disponível a abusos.


Além do mais, o autor, nesse utiliza o infeliz exemplo do filme O Último tango em Paris (França, Bernardo Bertolucci, 1972), estigmatizado por causa de um abuso que a atriz sofreu durante as filmagens que o próprio diretor Bernardo Bertolucci  vergonhosamente pediu desculpas depois da morte dela. Ah sim, pobre filme estigmatizado. Não são as mulheres que são violentadas, são os homens que violentam que são estigmatizados. 
Fonte: A morte é uma borboleta

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