PICICA: "A luta indigenista não é mais importante que a luta indígena, isso
sabemos muito bem, e nem é intenção aqui atenuar a força e determinação
dos povos indígenas, mas é preciso que se conte todas essas coisas,
essas histórias ativistas em torno dos povos indígenas, inclusive
histórias de mulheres corajosas como Verenilde, para que não se esqueça
dessas vidas que abriram e abrem mão de si mesmas e se lançam em
existências periféricas. E principalmente, para ampliar o imaginário
sobre ditadura militar no Brasil, colocá-la firme e forte no meio das
florestas, para ver o que se passou aí."
Verenilde, uma vida na Amazônia
Lutas e paixões de uma indigenista que enfrentou a
ditadura e o projeto de reduzir floresta a monocultura, pasto e
matérias-primas para “progresso”
Por Fabiane Morais Borges
Foi no começo de 2007 que conheci Verenilde Santos
Pereira – minha chefe no departamento de comunicação em uma faculdade em
Brasília (Unicesp). Como não tinha onde morar, ela me convidou para
ficar num quarto vago em sua casa. Ao chegar, me ofereceu dois livros
que escreveu sobre a Amazônia, sua terra: Não da maneira que Aconteceu e Um Rio Sem Fim1.
Li ambos rapidamente e percebi uma diferença entre a escritora da
floresta e a mulher severa e estressada que tinha me contratado. Não
combinavam.
Certo dia, dois meses depois, fui acometida de um
ataque de curiosidade lancinante, e abri todas gavetas do quarto. Malas,
caixas, revistas antigas, jornais amarelos, fitas cassetes, fotografias
velhas, armários, abri tudo. Cada papel dobrado, uma surpresa. Percebi
que os livros que eu tinha lido eram auto-biográficos: apesar das
passagens ficcionais, a protagonista da maioria das cenas era ela
própria. Vi isso nas reportagens dos jornais antigos, nos diários, nas
cartas de amor, nos rabiscos em guardanapos de papel. Verenilde tinha
vivido densas experiências na Amazônia profunda e isso tomou todo meu
interesse.
Quando ela chegou em casa, teve um choque. Suas
coisas por cima do sofá, das cadeiras, esparramadas pelo chão. Mesmo que
eu quisesse, não teria como juntar tudo aquilo de novo. O passado tinha
extravasado e era muito mais volumoso que as caixas que o continha. Era
maior que a casa. Os papéis estavam libertos do silêncio imposto,
medroso, quase conivente, não fossem os suspiros. Diante da estupefação
dela, me adiantei perguntando: O que significa isso?
Não tinha para onde fugir. De certa, forma estava
aliviada que alguém tivesse alforriado tantas blasfêmias. Tantas
verdades vividas a cabresto. Ela também sabia que era hora de limpeza.
Talvez por isso, tenha me chamado para habitar o quarto, porque queria
que alguém abrisse aqueles porões mofados e girasse até fazer ventania.
Aos poucos contou sua vida: era filha de índio com
negra, uma Satarê Mawê desgarrada, destribalizada, favelada, criada em
Barcelos, no Rio Negro. Menina pobre que cuidava dos irmãos mais novos,
vítima de uma constante guerra racial no antro familiar. Era preciso
saber quem podia ser mais humilhado, entre negro e índio, ambos escravos
– nativos ou trazidos. Educada por freiras salesianas em internatos que
mais pareciam purgatórios, que lhe ensinaram sobretudo o medo, das
quais guarda rancor.
Letrada pelos salesianos, teve boas condições de fazer uma faculdade de jornalismo. Engajou-se no movimento indigenista2.
Passou a viver nos barcos percorrendo rio por rio da região: quase
tinha o mapa dos rios da Amazônia estampado nas linhas das mãos.
Participou das demarcações de terra, conheceu dezenas de povos, integrou
o primeiro jornal indigenista do Brasil, o Porantim3,
onde publicava suas reportagens ativistas e defendia a causa indígena
na época da ditadura. Arriscava sua vida pela boa causa, o sentido mais
contundente e óbvio a que aderiu. Foi no indigenismo que viveu os
romances mais ardentes e as dores mais prementes, fez amizades para toda
a vida, para nunca mais esquecer. Era a parceria com os povos da terra,
da floresta, dos alucinógenos e da pajelança que produzia a força para
escrever o que escrevia, desafiando todas as autoridades, todos os
militares, delatando a vilania produzida pela ordem e progresso
nacional.
Pelos idos dos anos 1970, andava paranóica, queria
sair de São Gabriel da Cachoeira rumo a Manaus. São Gabriel era uma das
sedes do seu trabalho e também foco de militarização. Cinco dias de
barco de Manaus, e depois os pequenos barcos pelos afluentes do Alto Rio
Negro, até encontrar as comunidades com as quais atuava. Estava
assustada, queria ir para Manaus. Pegaria um barco, mas o perdeu. Uma
hora depois, ele explodiu. Quando soube o que tinha acontecido percebeu
que estava sendo procurada. As vítimas tinham a sua cara. Intuía que era
pelos militares. Tentou fugir escondida mas foi pega. Na prisão,
ameaçada, torturada. Foi Alvaro Tukano4
que lhe ajudou a fugir. Ele conta em conversas particulares, que ela
andava dezenas de quilômetros por dia, atravessando as ilhanas do Rio
Negro, pedindo carona de barco, a nado, não parou até chegar em Manaus.
Anos se passaram e ele repete essa história com admiração dizendo que
nunca conhecera mulher tão determinada.
Ela chegou a Manaus em pânico, desesperada, se
assustava com a própria sombra na parede, com uma fala em tom alto, com
um latido de cão. Paralisava diante de qualquer impedimento. Tinha sido
julgada pela juíza que a condenou culpada e a calou por tempo demasiado.
Juíza que hoje em dia distribui sorrisos na timeline do facebook.
Conheceu um homem, um antropólogo, que entendia sua
sina e a levou para Brasília, onde ela vive até os idos dessa escrita.
Conseguiu escrever dois romances ficcionais sobre as coisas sofridas na
Amazônia. Durante certo tempo, ainda andava às voltas dessas derivas,
testando narrativas mesmo muda como estava. Foi preciso terapia, para
fazer a boca rir de novo, falar desimportâncias que fosse, porque não
conseguia sair da paralisia que o “desenvolvimento na Amazônia”
inaugurou dentro dela. Nem as mortes todas que acompanhou conseguiam
vazar. Estava obesa de incredulidade. Silenciou por quase vinte anos.
Quanto custa calar uma força? O que conforta uma
memória amedrontada? Uma voz pode ser calada até esquecer-se do que
tinha para falar. Sua importância é deslegitimada. Seu circuito
sináptico, atrofiado. Por fim começa-se duvidar de si mesmo, pensando
que talvez as coisas nem tivessem acontecido do modo como se lembra
delas.
Verenilde não perdeu inteiramente o contato com os
temas indígenas. Seu marido era professor de antropologia na UnB
(Universidade de Brasília), por isso ainda encontrava antropólogos com
pesquisa de campo ou lideranças indígenas que foram trabalhar na
capital. Mas isso não a convocava inteiramente. Tinha-se rompido um elo,
que talvez nenhum antropólogo, nem um índio urbano conseguisse religar.
O que fazia na Amazônia não era pesquisa acadêmica, nem política de
Estado. Era outra coisa. Protegia os povos da floresta, e por isso era
guardiã da própria Terra. Não era profissão, era missão de vida. Tinha
outro peso.
Ela não era somente negra, índia ou indigenista, ela
era todos aqueles povos com quem trabalhava. Tinha ultrapassado o
paradigma evolucionista da sociedade nacional. Não queria evoluir, nem
progredir, nem desenvolver os índios, nem embranquecer. Ela queria toda
aquela diferença viva, de preferência bem longe das fábricas, das
madeireiras, das hidrelétricas, das monoculturas, que nos idos dos anos
1970 invadiam o norte do país. Ela tinha feito um pacto com os povos da
floresta, e o que interessava agora era conter a praga urbana que se
estendia faminta. Mas foi capturada e essa violência gerou algumas
idiossincrasias: horas na frente da janela vendo o vento bater nos
vitrais da escola, ou o olhar que atravessa um muro vazio… Com o tempo
adquiriu um certo niilismo, um deboche, um cansaço de aventuras, e
sobretudo medo: sensação para toda vida – dos salesianos aos militares.
Quando me contava essas coisas, era como se abrisse
uma torneirinha. Cada vez de começar uma história, outras tantas
apareciam. Uma que se ligava na outra, outra que tropeçava em outra, e
outra que puxava mais duas, três, quatro histórias. E uma cachoeira de
histórias brotava dos seus olhos, da sua gargalhada, dos seus silêncios
perdidos em meio a um gesto rápido de onde vinham mais histórias
penduradas, e mais dez histórias acrobatas em salto triplo. Verenilde
era e é uma contadora de histórias.
Histórias que entraram dentro da minha medula,
viraram auto-biografia ficcional. Eu podia me ver em cada uma das
aventuras dela. Os amores do Rio Negro, as loucuras do Rio Purus, as
demarcações no Rio Amazonas. Não raras vezes ríamos até as lágrimas. As
histórias entram em nossas vidas em momentos propícios, de outro modo,
não são ouvidas. Quando o momento se abre, a história entra para dentro
do ouvido de quem ouve, como se ocupasse a memória com novas paisagens.
Meu imaginário não soprava com os ventos do Rio Negro, não sentia medo
de redemoinhos de águas doces, não nadava com botos cinzas, nem era
acostumada com ilhas desaparecidas no meio da água em épocas de cheia.
Essas coisas foram implantadas na minha cabeça pela voz de Verenilde,
que agora falava, falava, como há muito tempo não fazia.
A invasão da minha escuta nas memórias dela, a
invasão do indigenismo dela nas minhas ternuras. Não deu outra,
revolucionamos a universidade em que dávamos aula, levando dezenas de
indígenas para falar, dançar, reivindicar. Entramos em um devir índio
arrebatador, fizemos encontros imersivos, trouxemos índias feministas,
espalhamos discussões sobre a Amazônia para todos lados. Não sei se foi
isso ou outra coisa, mas o fato é que nossa festa indigenista durou um
semestre, logo fomos as duas demitidas da universidade, ela com o cachê
mais alto, por trabalhar há mais tempo; eu, mais baixo, por ter ficado
somente esse exato semestre. O que importa é que com o dinheiro comprei
uma câmera de vídeo, um laptop e fomos as duas para a Amazônia filmar um
pouco da vida pregressa dela.
Nossa viagem seguiu um roteiro baseado em suas
memórias indigenistas, de modo que procuramos pessoas que ela não via há
mais de vinte anos, que trabalhavam com a questão indígena nas décadas
de 1960, 1970 e 1980. Algumas dessas pessoas estavam mortas, outras
loucas, outras coordenadoras de ONGs indigenistas, outras com filhos e
netos vivendo no campo, outros na cidade com Alzheimer, outros ainda
morreram logo depois da nossa visita. Começamos pelo Amazonas, seguimos
para Roraima, Venezuela, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bolívia e
várias pequenas comunidades no interior de cada um desses lugares.
Encontramos sobretudo a história do indigenismo
brasileiro, feita por pessoas que assumiram a luta indígena como sua
luta pessoal, existencial, que transformaram totalmente seus cotidianos,
de certa forma traíram suas propriedades étnicas e culturais.
Há nesse meio muita luta por poder e histórias
desonrosas, mas me interessa aqui seguir adiante com as histórias
ativistas mais apaixonadas, porque elas foram e ainda são fundamentais
para a renovação do imaginário social sobre os povos da floresta, para
as demarcações e assentamentos de terras e também preservação das matas.
A luta indigenista não é mais importante que a luta indígena, isso
sabemos muito bem, e nem é intenção aqui atenuar a força e determinação
dos povos indígenas, mas é preciso que se conte todas essas coisas,
essas histórias ativistas em torno dos povos indígenas, inclusive
histórias de mulheres corajosas como Verenilde, para que não se esqueça
dessas vidas que abriram e abrem mão de si mesmas e se lançam em
existências periféricas. E principalmente, para ampliar o imaginário
sobre ditadura militar no Brasil, colocá-la firme e forte no meio das
florestas, para ver o que se passou aí.
1 Verenilde Santos Pereira “Não da Maneira como Aconteceu” – Ed. Thesaurus, Brasília 2002 e “Um Rio Sem Fim”, Ed. Thesaurus, Brasília 1998.
2 Indigenista: quem atua à favor dos povos indígenas, sem necessariamente ser indígena.
3
Na língua do povo Sateré-Mawé (AM), Porantim significa arma, remo e
memória. Baseado nestes significados, nasceu o Jornal Porantim. Uma
importante arma na luta pelos direitos dos povos indígenas. Um
instrumento de comunicação que há mais de 30 anos rema contra a maré de
poder dos grandes veículos. Cfe site oficial do jornal Porantim: http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=paginas&conteudo_id=5724&action=read
4 Álvaro Tukano. Líder indígena do Alto Rio Negro (Amigo de Verenilde). Hoje em dia mora e trabalha em Brasília.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
Nenhum comentário:
Postar um comentário