PICICA: "O
moralismo é o argumento preferencial de quem não pode ir fundo na
análise da sociedade porque tem interesses inconfessáveis na exploração e
opressão dos outros.
Quando alguém grita “vagabundo”, “puta”
ou “maconheiro” é muito provável que, mais do que ignorância, estejamos
diante da defesa de interesses que não podem dizer seu nome.
Quando clamam por um “reativo violento”
contra o “vagabundo”, a “puta” ou o “maconheiro” é muito provável que
estejamos diante de uma máscara que encobre a verdadeira face da
exploração.
Violento é o capital.
Violento é o trabalho."
Violento é o trabalho: sobre o amor dos pobres à preguiça
“A fome e a miséria são só devidas à preguiça do povo, que ali devia viver na abundancia.
Qual o motivo porque uma mulher, que não tem o que comer no dia seguinte; que mora em um rancho de palha, que não possui mais que uma rede velha e rota, que verte a saúde por todos os poros – rejeita 30$000 por mês para amamentar uma criança, recebendo além do salario um bom tratamento, ao passo que não tem pejo de estender a mão para implorar a caridade publica?
Qual o motivo porque uma rapariga que vive na prostituição rejeita 20$000 mensais para servir de criada grave, e prefere ao ganho certo a nudez e a fome, uma vez que tenha liberdade para viver na devassidão?
E homens robustos-que passam a vida em continua bebedeira, deitados debaixo de miseras palhoças, acordando somente para comerem um pouco de mandioca, porque recusam 30$000 por mês para servirem como criados ou camaradas?
Não será tudo isto negação completa ao trabalho, amor excessivo á preguiça?”
O excerto acima foi tirado de um livro
escrito por um comerciante português que viveu no Brasil há cerca de 150
anos. A primeira coisa que percebemos nele é que sempre antes na
história deste país o discurso sobre a preguiça dos pobres existiu.
Atualizados os valores, as mesmas frases poderiam ser encontradas
facilmente na internet hoje.
A segunda coisa é que a pergunta retórica
no final do excerto pode ser respondida de maneira diferente daquela
esperada pelo autor usando apenas dados fornecidos por ele mesmo. No
texto ele informa alguns preços do mercado local. Uma galinha custava
2$500, uma abóbora podia custar 1$000, um bom peixe, 3$000. Ou seja,
amamentar filho de rico (podendo comprometer a amamentação do próprio
filho) ou trabalhar como criado rendia um salário que dava pra comprar
12 galinhas por mês, ou 30 abóboras, ou 10 peixes. Ser uma “criada
grave” (a opção dada à prostituta), permitia comprar 8 galinhas, ou 20
abóboras, ou 6 peixes por mês.
Ora, o próprio autor afirma no trecho
citado que é possível para essas pessoas “comer um pouco de mandioca”
(provavelmente plantada no próprio terreno) e “passar a vida em continua
bebedeira” (graças a trabalhos esporádicos ou à comercialização de uma
pequena produção própria) sem ter que se sujeitar a isso.
Então por que diabos alguém em sã
consciência se sujeitaria à exploração de sua força de trabalho nessas
condições? Por um salário que compra 10 peixes ao mês é que não é. Mas
também aí o autor dá a resposta, revelando a mágica que transformou
pobres relativamente autônomos em pobres sujeitos a vender sua
mão-de-obra:
“Lance o governo um olhar de compaixão
para aquele povo, e procure dar-lhe um remédio eficaz à preguiça, ao
contrario terá de vê-lo sempre miserável no meio da abundância, a
província inabitável. É-lhe necessário um reativo violento!”
Um reativo violento! Forçar os pobres ao
trabalho, impedindo a posse de terras para cultivo próprio e punindo
violentamente a suposta “vadiagem”: eis a receita mágica aplicada no
Brasil e no mundo. Note que nem estamos falando da escravidão, sistema
fundado na violência mais brutal e que na primeira metade do século XIX
explorava quase metade da população brasileira. Foi o “reativo violento”
que tornou o pobre, além de pobre, um sujeito explorado e dependente – e
no caso dos escravos, tornou o alforriado um “vadio” para que
continuasse sendo violentamente forçado ao trabalho.
Pode esquecer aquela edificante estória
do contrato entre indivíduos autônomos que trocam livremente dinheiro
por força de trabalho. Sem o “reativo violento” dado pelo “governo”,
nada de exploração! E isso nosso amigo do século XIX já sabia muito bem.
Ele só não podia confessar que o que lhe interessava era a exploração
do outro, e não a melhoria de sua situação (ou alguém acha que a
situação de uma mulher melhora com 6 peixes por mês em troca de um filho
potencialmente subnutrido?). É por isso que o autor tinha que apelar
para o moralismo, falando da preguiça, da prostituição e da bebedeira. O
moralismo é o argumento preferencial de quem não pode ir fundo na
análise da sociedade porque tem interesses inconfessáveis na exploração e
opressão dos outros.
Quando alguém grita “vagabundo”, “puta”
ou “maconheiro” é muito provável que, mais do que ignorância, estejamos
diante da defesa de interesses que não podem dizer seu nome.
Quando clamam por um “reativo violento”
contra o “vagabundo”, a “puta” ou o “maconheiro” é muito provável que
estejamos diante de uma máscara que encobre a verdadeira face da
exploração.
Violento é o capital.
Violento é o trabalho.
Baderna Midiática
Fonte: Baderna Midiática
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