PICICA: "Questionar os rumos tomados pelos
distintos feminismos é estritamente necessário. Assim como de qualquer
outro movimento e lutas que se propõem à superação desse sistema e desse
mundo, o valor que deve nortear as organizações é o da autocrítica
permanente."
Reflexão acerca das nossas lutas pelo feminismo
2 de dezembro de 2014
Questionar os rumos tomados pelos
distintos feminismos é estritamente necessário. Assim como de qualquer
outro movimento e lutas que se propõem à superação desse sistema e desse
mundo, o valor que deve nortear as organizações é o da autocrítica
permanente. Por Suellen
Nas lutas contra o capitalismo, contra o
machismo e o patriarcado é importante estar atento à totalidade que
estamos combatendo e não apenas alguns dos seus aspectos particulares
mais visíveis. “O Estado capitalista não é formado só por algumas das
peças de jogo, mas, sobretudo pelas regras de jogo” [1].
Nesse sentido, uma parte da militância feminista que não atenta para a
totalidade do sistema que combatem em algumas de suas especificidades
acaba por se valer da prática do inimigo e, desta forma, reproduz
internamente o sistema: não só se submete ao Estado capitalista e ao
sistema enquanto um todo integrado, mas pior, se integra nele. A luta
acaba, então, sendo assimilada, e passa a cumprir funções de legitimação
do sistema causador das demandas que a luta inicialmente buscava ver
atendidas.
O feminismo não é experiência nova, como
se num ato, num evento ou data o assunto estivesse em pauta. Durante a
segunda metade do século XIX e XX podemos encontrar mulheres que lutaram
e contribuíram para a perspectiva feminista. Como exemplo, e
seguramente não como marco inicial, em 1885 já apareciam reflexões como
no periódico italiano La questione Sociale que abordavam temas como família, relações livres, exploração do trabalho fabril e diversas formas de violência conjugal.
É
de grande importância também apontar que não existe apenas um tipo de
feminismo, mas muitos feminismos, dentro das correntes existentes
algumas se reivindicam liberais, marxistas, libertárias, radicais, as
feministas da igualdade, pós-feministas, multicuturalistas,
antiessencialismos, enfim são muitas as correntes. Numa simples
interpretação poderia-se resumi-las em feminismo classista ou não. Ao
longo deste breve apontamento de ideias isso ficará mais claro.
Para a feminista brasileira Heleieth
Saffioti, por mais progressista que tenha sido o movimento feminista
pequeno-burguês, não se contentando com conquistas dos direitos formais,
a mulher não chegou, contudo, a “encarar a questão da igualdade entre
os sexos em função de um tipo estrutural negador desta igualdade” (2013:
190). Isto é, não relacionou a questão de gênero com a questão de
classe que perfaz a totalidade da dinâmica social capitalista [2]
Tendo em vista a totalidade do sistema, a
relação a ser contestada pelas mulheres organizadas não é apenas a de
submissão ao sistema patriarcal, mas a simbiose de dominação-exploração.
Isso facilmente se verifica ao
atentarmos para o fato de que as mulheres negras estão entre as parcelas
de maior pobreza e privação do Brasil, e não é preciso uma análise
empírica exaustiva para supor com realismo que a situação se repete
noutros países. Possuem menor escolaridade, com taxa de analfabetismo
três vezes maior que as mulheres brancas, além de menor expectativa de
vida. Outros indicadores (IPEA, 2011) explicitam que no contexto da
informalidade 21,4% das mulheres negras estão no trabalho doméstico e
nas menores proporções de trabalho com carteira assinada (23,3%)
ocupando, assim, como confirmam os dados de renda, a pior posição na
escala social. A situação das mulheres negras explicita de modo gritante
o caráter simbiótico da lógica capitalista de dominação e exploração,
uma vez que neste sistema a dominação patriarcal atinge o ápice de
hierarquização em detrimento das mulheres e, ao mesmo tempo, se
aproveita e reproduz essa dominação tendo em vista melhores patamares de
exploração da força de trabalho feminina e negra. Se o capital reproduz
essa situação histórica e se aproveita da lógica da dominação para
auferir maiores lucros, seria o caso das lutas feministas se organizarem
tendo em vista o enfrentamento simultâneo de todas essas “demandas
específicas”, sem repetir nas lutas a lógica da hierarquização, pelo
simples fato de que, sem deixarem de ser demandas específicas com algum
grau de “separação” entre si, na realidade concreta essas questões se
fundem e originam de uma mesma base hierárquica de dominação e
exploração dos trabalhadores e trabalhadoras pelo capital enquanto
sistema totalitário que inunda todas as esferas de nosso cotidiano. O
inimigo é um só, mas a luta insiste em se organizar aos fragmentos.
Para além de ressaltar que as relações
sociais no capitalismo estão permeadas pela lógica patriarcal e que tais
demandas são perseguidas de modo cindido, o que gostaria de colocar em
discussão, neste momento, é o processo de recuperação ou assimilação do
símbolo do feminismo pelo capitalismo. Especificamente, a cooptação de
bandeiras e da radicalidade das lutas feministas aos setores
governistas, progressistas e afins!
Dois exemplos, que não são fatos isolados, para ilustrar.
Revistas empresariais que ditam
comportamentos e modas para mulheres com capas “o novo feminismo”, sites
comerciais que se propõem a discutir desde relações abertas a orgasmo
feminino, tudo que num passado indicava um lado radical das propostas da
esquerda hoje é facilmente editado por jornalistas da mídia de massas.
Muitos veem esse processo como um avanço civilizatório resultante das
lutas sociais feministas. Será? O próprio fato de que tais ideologias
pretensamente progressistas vêm sempre acopladas a algum tipo de
orientação mercadológica e consumista nos põe a pensar sobre o caráter
de tal “radicalidade” de ideias e que tipo de emancipação feminina se
está a fomentar nestes meios.
Não somente dentro desses veículos de
comunicação conformes à lógica da mercadoria é que se mostram as
contradições. Na própria esquerda podem-se constatar situações
similares, igualmente criticáveis. Em fotos da Marcha das Vadias podemos
encontrar cartazes como: mulheres machistas criam monstros estupradores.
Para além da intenção, que talvez seja inocentemente boa, vale a
reflexão: será o “lado biologizante” gritando mais uma vez que todas as
pessoas do sexo masculino são potencialmente estupradores, ou também
será a culpa da mulher = mãe?. Em todo caso, o próprio cartaz contém
implícita uma cisão interna que não tem nada de inocente: aquela que o
escreveu certamente não se considera uma “mulher machista” e sim uma
mulher feminista, feminista de verdade, feminista revolucionária, ou
coisa que o valha. Trata-se, portanto, de uma manifestação daquele
“feminismo excludente” que tantos males causa à luta feminista (ver aqui).
Além disso, de todas as possibilidades de denúncia ou grito de luta ou
expressão de protesto etc. a pessoa que escreveu tal cartaz optou por
culpabilizar algumas mulheres como “criadoras” dos monstros
estupradores, o que por si só já bastaria para constatar o grau de
confusão ideológica que está presente tanto na mídia burguesa quanto nas
lutas da esquerda: num caso busca-se aumentar as vendas de certas
mercadorias associadas à “nova mulher” etc., no outro busca-se uma
diferenciação de cunho moral ou ético, interna à luta feminista, e tão
ou mais prejudicial à luta pela emancipação da mulher.
Claro que não negamos o sentido político
progressista destas marchas, pois não negamos o papel político dos
movimentos feministas. O choque contra a moral religiosa numa sociedade
tradicionalmente cristã; o questionamento do corpo da mulher como uma
mercadoria a ser usada e consumida sem autorização; como também a luta
pelo reconhecimento social do direito ao prazer, à escolha dx(s)
parceirx(s) nos relacionamentos íntimos e a liberdade feminina como um
todo, foram e são bandeiras necessárias.
Entretanto essa necessária resistência
pode ser feita por outras vias. Imagino ser preciso superar o
midiatismo, de uma sociedade de espetáculos, construindo assim o avanço
na discussão, pois ainda estamos no campo da culpabilização do
individuo, do caráter punitivista, e vale lembrar que os movimentos
feministas a partir da década de 70 já incluíam em suas plataformas
bandeiras de punições aos que cometeram atos de violência.
Obviamente não é um desejo a
desresponsabilização dos assuntos relativos às mulheres. Não superamos o
machismo sequer no âmbito interno às lutas e organizações que se
propõem a instituição de um mundo sem machismo. Questionar os rumos
tomados pelos distintos feminismos é estritamente necessário. Assim como
de qualquer outro movimento e lutas que se propõem à superação desse
sistema e desse mundo, o valor que deve nortear as organizações é o da
autocrítica permanente.
Um olhar atento à bagagem histórica das
lutas feministas pode muitas vezes indicar caminhos. Os movimentos que
tentaram articular na luta a simbiose entre dominação e exploração, tais
como os Panteras Negras, utilizariam as mesmas regras do jogo do Estado
capitalista para a resolução dos conflitos, ou nos mesmos marcos
colocados pelo sistema. Como procederiam quando houvesse violências
contra as mulheres, ou homofobia, dentro da própria organização
feminista? Como tratariam estas questões?
Numa entrevista feita em 2004 Angela Davis problematizou:
“Punição, para ser breve, pode ser vista em conexão com a vigilância. Mas é frequentemente resultado de uma vigilância maior. Aquelas comunidades mais sujeitas à vigilância da polícia são muito mais propensas a produzir mais corpos direcionados à prisão. E, mais importante, a instituição da prisão, parece-me, tem evoluído ao longo dos séculos, mas especialmente nos últimos vinte anos, para uma solução punitiva a toda uma gama de problemas sociais que não estão sendo tratados pelas instituições e que poderiam fazer a vida das pessoas melhor. Ao invés de construir moradias, jogue os sem-teto na prisão! Em lugar de desenvolver o sistema educacional, atire os analfabetos na prisão, como também os que perderam empregos por conta da desindustrialização relacionada à globalização do capital e ao ajustamento estrutural. O senhor sabe, livre-se deles! Eles são considerados populações dispensáveis. Assim, a prisão torna-se um meio de desaparecer com as pessoas e com os problemas sociais associados a elas.” [3]
Lembremo-nos do seguinte caso de
violência a uma mulher e a forma como coletivos de esquerda lidaram com a
situação, nesse caso em específico o fato ocorreu na Rádio Várzea (esse
comunicado pode ser visto na própria página de facebook da Rádio).
“…Na sexta-feira (03/10) quatro integrantes do coletivo Rádio Várzea Livre receberam uma denúncia de agressão à uma mulher por parte de um novo integrante do coletivo. A denúncia foi realizada pela própria vítima. A agressão foi anterior à participação do denunciado na Rádio Várzea Livre e até então era desconhecida por todxs – já que o caso estava sendo mantido em sigilo pela vítima. Ao tomarem conhecimento da agressão, os integrantes se colocaram ao lado vítima e se comprometeram (em nome do coletivo) a respeitar o encaminhamento proposto (isto é, pela vítima): expulsão do agressor do coletivo e de seus espaços; e manutenção do sigilo da denúncia e da vítima. Na segunda-feira, 06/10, foi solicitado ao agressor o seu afastamento do coletivo até que a denúncia se tornasse pública para os demais integrantes, o que ocorreu em reunião na quarta-feira, 08/10 (conforme acordado com a vítima e a partir da avaliação, feita em conjunto com a própria vítima, sobre a sua segurança)…”
A violência contra qualquer mulher não
pode ser tolerada, mas é esse tipo de resolução de problemas que a
esquerda adota? Atitude: Expulsão! Etiquetamento: Agressor Carlos
Henrique Almeida!!
Se são os espaços autonomos-libertários
que propõem outras formas de sociabilidade, como podem reproduzir o
mesmo Estado Penal? Esta é a resposta aos papéis de gênero construídos
historicamente… a patologização do agressor. Podem também justificar
junto com Lombroso que existem estereotípicos.
Um senhor muito conhecido por nós dizia
ainda em meados do século XIX que “a crítica não arranca flores
imaginárias dos grilhões para que os homens [e as mulheres] suportem os
grilhões sem fantasia e consolo, mas para que se livre deles e possam
brotar as flores vivas”. [4]
Detendo-se
a discussão primeira, me parece óbvio questionar as pautas e a que se
prestam tais movimentos feministas, como a nota em defesa da presidenta
Dilma pela violência machista sofrida na abertura da Copa do Mundo, já
comentada nesse site. Ou a utilização eleitoreira da legitimidade das
lutas e bandeiras feministas
Em 26 de setembro de 2014 o site
Viomundo publicou uma matéria graciosamente intitulada: Feministas
apoiam Dilma: “Os avanços não podem parar” [5]. Ali foi
defendida a ideia governista de que as lutas feministas teriam avançado
muito durante e em comunhão com o atual governo. A nosso ver o que
aquelas feministas apoiam é o desenvolvimento econômico capitalista, só
que com uma pequena palavra somada: a inclusão social. Com tal apoio
dado por feministas e órgãos de luta pautados pela bandeira feminista
tem-se o fortalecimento de iniciativas e políticas públicas de
institucionalização das bandeiras. Algo similar ocorre no âmbito da
bandeira da Reforma agrária, quando lutadores e órgãos de luta pautados
nessa bandeira defendem o governo alegando que o PT defende a
agricultura familiar. Fecha-se os olhos para a decidida opção governista
de privilegiamento do agronegócio em detrimento das lutas de base dos
movimentos rurais por outro modelo de desenvolvimento econômico,
político e social. Aliás, essa falta de olhar crítico sobre as mazelas e
déficits do governo é uma marca registrada na quase generalidade dos
discursos da ala governista. Cooptados e assimilados pelo governismo,
alguns órgãos de luta colocam de bandeja, no colo do governo, o que
foram demandas históricas expressas na prática das lutas, de diversos
setores e movimentos sociais, organizações de bairros, reproduzindo a
lógica de paternalismo/maternalismo estatal e governamental, e
permitindo a reorientação e metamorfose dessas bandeiras para uma nova
configuração conforme a lógica do lucro, ou seja, esvaziando as
bandeiras de qualquer conteúdo radical contestatório do sistema como um
todo.
Mas tudo isso não vem ao caso para
certos feminismos excludentes, uma vez que se passa por cima das
contradições baseando-se na justificativa do quão brilhante e glamouroso
é para o avanço feminista (e para seus próprios cargos em secretarias,
etc.) ter “uma mulher dirigindo o pais”, ou seja, gerindo o capital por
meio da esfera estatal. Toda contradição se apaga de antemão quando
aparece esvaziado de conteúdo o discurso da igualdade de gênero, que
passa a compor o ideário das políticas públicas do governo da presidenta
Dilma. O apoio indiscriminado ao governo Dilma, por ser ela mulher, tal
como o apoio indiscriminado ao governo Obama, por ser ele negro, compõe
um dos indícios do quão assimiladas foram as bandeiras feminista e
negra, ou, o que dá na mesma, indica o quão competentes foram os
governos em sua prática de recuperação e assimilação de bandeiras
históricas da luta da classe trabalhadora contra a opressão, dominação e
exploração, seja em seus componentes de gênero, raça ou classe.
Até que todas sejamos livres?
Ainda atenta às bagagens históricas das
lutas feministas, não só Bakunin poderia ressurgir nas mobilizações de
rua, mas algumas feministas que desenvolveram importantes atividades
autônomas e que teriam muito a nos ensinar…desde modos de alfabetização,
cursos sobre as condições das mulheres que se prostituíam, até a
construção de um hospital maternal denominado Louise Michel (a
revolucionária francesa que participou da Comuna de Paris) realizando do
pré-natal à discussões sobre sexualidade. Estas foram experiências do
coletivo Mujeres Libres (à época da Guerra Civil espanhola).
Um outro exemplo histórico que muito tem
a nos dizer, embora dentro de seus limites, foi a Revolução Russa. O
desafio de pensar a organização da sociedade para além do núcleo
familiar, em uma perspectiva coletiva norteada pela atuação do Estado
enquanto “Ditadura do Proletariado”, foi certamente uma experiência que
merece um olhar atento, seja pelo positivo ou negativo. Recentemente
traduzido no Brasil, o livro “Mulher, Estado e Revolução” de Wendy
Goldman [6] traz uma aprofundada pesquisa sobre os
avanços e limites daquela experiência pós-capitalista. Compreendemos que
este processo se dá em meios temporais diferentes, mas abre veredas,
pequeninas janelas, para novas perspectivas que certamente podem, de
algum modo, lançar luz sobre nossa prática militante no contexto atual.
Temas de muita atualidade nas lutas feministas contemporâneas já foram
debatidos e tiveram tentativas de solução postas em prática há quase 100
anos na URSS. Se a persistência dos problemas ao longo de tantas
décadas às vezes desanima, não deixa de ser inspirador constatar os
avanços teóricos e os muitos ensinamentos que precisamos o quanto antes
aprender, para não repetirmos os mesmos erros.
A abolição da família, em vez do
conflito de gêneros dentro dela, era pensada como a chave da emancipação
das mulheres. A socialização do trabalho doméstico eliminaria a
dependência das mulheres para com os homens e promoveria uma nova
liberdade nas relações entre os sexos. (GOLDMAN, 2014, p. 24).
Para os sujeitos daquele tempo histórico
a necessidade era de criações de lavanderias públicas, alimentação em
restaurantes coletivos, assim como as crianças estariam sob a criação e
responsabilidade pública.
No contexto atual tudo isso pode até
parecer utopia, ainda assim pensar outras formas de organização da
família traz a lucidez do restrito campo de luta defensiva em que
estamos inseridos. Perceber onde estamos e para onde precisamos ir na
luta pela emancipação da mulher, bem como os distintos caminhos velhos e
novos dessa luta, é um começo essencial.
Notas
[1] BERNADO. João. A autogestão da sociedade prepara-se na autogestão das lutas. Publicado em Piá Piou!, Novembro de 2005, nº 3.
[2] SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Ed.Expressão Popular. São Paulo, 2013.
[3] Disponível aqui.
[4] MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução. Temas de Ciências Humanas n° 2. São Paulo, Grijalbo, 1977.
[5] Disponível aqui.
[6] GOLDMAN, Wendy. Mulher, Estado e Revolução. 1ed. São Paulo: Boitempo, 2014.
Fonte: PASSA PALAVRA
Nenhum comentário:
Postar um comentário