dezembro 03, 2014

"Reflexão acerca das nossas lutas pelo feminismo" - Por Suellen

PICICA: "Questionar os rumos tomados pelos distintos feminismos é estritamente necessário. Assim como de qualquer outro movimento e lutas que se propõem à superação desse sistema e desse mundo, o valor que deve nortear as organizações é o da autocrítica permanente."

Reflexão acerca das nossas lutas pelo feminismo

2 de dezembro de 2014
Questionar os rumos tomados pelos distintos feminismos é estritamente necessário. Assim como de qualquer outro movimento e lutas que se propõem à superação desse sistema e desse mundo, o valor que deve nortear as organizações é o da autocrítica permanente. Por Suellen

Nas lutas contra o capitalismo, contra o machismo e o patriarcado é importante estar atento à totalidade que estamos combatendo e não apenas alguns dos seus aspectos particulares mais visíveis. “O Estado capitalista não é formado só por algumas das peças de jogo, mas, sobretudo pelas regras de jogo” [1]. Nesse sentido, uma parte da militância feminista que não atenta para a totalidade do sistema que combatem em algumas de suas especificidades acaba por se valer da prática do inimigo e, desta forma, reproduz internamente o sistema: não só se submete ao Estado capitalista e ao sistema enquanto um todo integrado, mas pior, se integra nele. A luta acaba, então, sendo assimilada, e passa a cumprir funções de legitimação do sistema causador das demandas que a luta inicialmente buscava ver atendidas.

O feminismo não é experiência nova, como se num ato, num evento ou data o assunto estivesse em pauta. Durante a segunda metade do século XIX e XX podemos encontrar mulheres que lutaram e contribuíram para a perspectiva feminista. Como exemplo, e seguramente não como marco inicial, em 1885 já apareciam reflexões como no periódico italiano La questione Sociale que abordavam temas como família, relações livres, exploração do trabalho fabril e diversas formas de violência conjugal.

Ananda-Cronos 

É de grande importância também apontar que não existe apenas um tipo de feminismo, mas muitos feminismos, dentro das correntes existentes algumas se reivindicam liberais, marxistas, libertárias, radicais, as feministas da igualdade, pós-feministas, multicuturalistas, antiessencialismos, enfim são muitas as correntes. Numa simples interpretação poderia-se resumi-las em feminismo classista ou não. Ao longo deste breve apontamento de ideias isso ficará mais claro.

Para a feminista brasileira Heleieth Saffioti, por mais progressista que tenha sido o movimento feminista pequeno-burguês, não se contentando com conquistas dos direitos formais, a mulher não chegou, contudo, a “encarar a questão da igualdade entre os sexos em função de um tipo estrutural negador desta igualdade” (2013: 190). Isto é, não relacionou a questão de gênero com a questão de classe que perfaz a totalidade da dinâmica social capitalista [2]

Tendo em vista a totalidade do sistema, a relação a ser contestada pelas mulheres organizadas não é apenas a de submissão ao sistema patriarcal, mas a simbiose de dominação-exploração.

Isso facilmente se verifica ao atentarmos para o fato de que as mulheres negras estão entre as parcelas de maior pobreza e privação do Brasil, e não é preciso uma análise empírica exaustiva para supor com realismo que a situação se repete noutros países. Possuem menor escolaridade, com taxa de analfabetismo três vezes maior que as mulheres brancas, além de menor expectativa de vida. Outros indicadores (IPEA, 2011) explicitam que no contexto da informalidade 21,4% das mulheres negras estão no trabalho doméstico e nas menores proporções de trabalho com carteira assinada (23,3%) ocupando, assim, como confirmam os dados de renda, a pior posição na escala social. A situação das mulheres negras explicita de modo gritante o caráter simbiótico da lógica capitalista de dominação e exploração, uma vez que neste sistema a dominação patriarcal atinge o ápice de hierarquização em detrimento das mulheres e, ao mesmo tempo, se aproveita e reproduz essa dominação tendo em vista melhores patamares de exploração da força de trabalho feminina e negra. Se o capital reproduz essa situação histórica e se aproveita da lógica da dominação para auferir maiores lucros, seria o caso das lutas feministas se organizarem tendo em vista o enfrentamento simultâneo de todas essas “demandas específicas”, sem repetir nas lutas a lógica da hierarquização, pelo simples fato de que, sem deixarem de ser demandas específicas com algum grau de “separação” entre si, na realidade concreta essas questões se fundem e originam de uma mesma base hierárquica de dominação e exploração dos trabalhadores e trabalhadoras pelo capital enquanto sistema totalitário que inunda todas as esferas de nosso cotidiano. O inimigo é um só, mas a luta insiste em se organizar aos fragmentos.

Para além de ressaltar que as relações sociais no capitalismo estão permeadas pela lógica patriarcal e que tais demandas são perseguidas de modo cindido, o que gostaria de colocar em discussão, neste momento, é o processo de recuperação ou assimilação do símbolo do feminismo pelo capitalismo. Especificamente, a cooptação de bandeiras e da radicalidade das lutas feministas aos setores governistas, progressistas e afins!

Dois exemplos, que não são fatos isolados, para ilustrar.

capa revista

Revistas empresariais que ditam comportamentos e modas para mulheres com capas “o novo feminismo”, sites comerciais que se propõem a discutir desde relações abertas a orgasmo feminino, tudo que num passado indicava um lado radical das propostas da esquerda hoje é facilmente editado por jornalistas da mídia de massas. Muitos veem esse processo como um avanço civilizatório resultante das lutas sociais feministas. Será? O próprio fato de que tais ideologias pretensamente progressistas vêm sempre acopladas a algum tipo de orientação mercadológica e consumista nos põe a pensar sobre o caráter de tal “radicalidade” de ideias e que tipo de emancipação feminina se está a fomentar nestes meios.

Não somente dentro desses veículos de comunicação conformes à lógica da mercadoria é que se mostram as contradições. Na própria esquerda podem-se constatar situações similares, igualmente criticáveis. Em fotos da Marcha das Vadias podemos encontrar cartazes como: mulheres machistas criam monstros estupradores. Para além da intenção, que talvez seja inocentemente boa, vale a reflexão: será o “lado biologizante” gritando mais uma vez que todas as pessoas do sexo masculino são potencialmente estupradores, ou também será a culpa da mulher = mãe?. Em todo caso, o próprio cartaz contém implícita uma cisão interna que não tem nada de inocente: aquela que o escreveu certamente não se considera uma “mulher machista” e sim uma mulher feminista, feminista de verdade, feminista revolucionária, ou coisa que o valha. Trata-se, portanto, de uma manifestação daquele “feminismo excludente” que tantos males causa à luta feminista (ver aqui). Além disso, de todas as possibilidades de denúncia ou grito de luta ou expressão de protesto etc. a pessoa que escreveu tal cartaz optou por culpabilizar algumas mulheres como “criadoras” dos monstros estupradores, o que por si só já bastaria para constatar o grau de confusão ideológica que está presente tanto na mídia burguesa quanto nas lutas da esquerda: num caso busca-se aumentar as vendas de certas mercadorias associadas à “nova mulher” etc., no outro busca-se uma diferenciação de cunho moral ou ético, interna à luta feminista, e tão ou mais prejudicial à luta pela emancipação da mulher.

Claro que não negamos o sentido político progressista destas marchas, pois não negamos o papel político dos movimentos feministas. O choque contra a moral religiosa numa sociedade tradicionalmente cristã; o questionamento do corpo da mulher como uma mercadoria a ser usada e consumida sem autorização; como também a luta pelo reconhecimento social do direito ao prazer, à escolha dx(s) parceirx(s) nos relacionamentos íntimos e a liberdade feminina como um todo, foram e são bandeiras necessárias.

Entretanto essa necessária resistência pode ser feita por outras vias. Imagino ser preciso superar o midiatismo, de uma sociedade de espetáculos, construindo assim o avanço na discussão, pois ainda estamos no campo da culpabilização do individuo, do caráter punitivista, e vale lembrar que os movimentos feministas a partir da década de 70 já incluíam em suas plataformas bandeiras de punições aos que cometeram atos de violência.

Obviamente não é um desejo a desresponsabilização dos assuntos relativos às mulheres. Não superamos o machismo sequer no âmbito interno às lutas e organizações que se propõem a instituição de um mundo sem machismo. Questionar os rumos tomados pelos distintos feminismos é estritamente necessário. Assim como de qualquer outro movimento e lutas que se propõem à superação desse sistema e desse mundo, o valor que deve nortear as organizações é o da autocrítica permanente.

Um olhar atento à bagagem histórica das lutas feministas pode muitas vezes indicar caminhos. Os movimentos que tentaram articular na luta a simbiose entre dominação e exploração, tais como os Panteras Negras, utilizariam as mesmas regras do jogo do Estado capitalista para a resolução dos conflitos, ou nos mesmos marcos colocados pelo sistema. Como procederiam quando houvesse violências contra as mulheres, ou homofobia, dentro da própria organização feminista? Como tratariam estas questões?

Numa entrevista feita em 2004 Angela Davis problematizou:
“Punição, para ser breve, pode ser vista em conexão com a vigilância. Mas é frequentemente resultado de uma vigilância maior. Aquelas comunidades mais sujeitas à vigilância da polícia são muito mais propensas a produzir mais corpos direcionados à prisão. E, mais importante, a instituição da prisão, parece-me, tem evoluído ao longo dos séculos, mas especialmente nos últimos vinte anos, para uma solução punitiva a toda uma gama de problemas sociais que não estão sendo tratados pelas instituições e que poderiam fazer a vida das pessoas melhor. Ao invés de construir moradias, jogue os sem-teto na prisão! Em lugar de desenvolver o sistema educacional, atire os analfabetos na prisão, como também os que perderam empregos por conta da desindustrialização relacionada à globalização do capital e ao ajustamento estrutural. O senhor sabe, livre-se deles! Eles são considerados populações dispensáveis. Assim, a prisão torna-se um meio de desaparecer com as pessoas e com os problemas sociais associados a elas.” [3]
Lembremo-nos do seguinte caso de violência a uma mulher e a forma como coletivos de esquerda lidaram com a situação, nesse caso em específico o fato ocorreu na Rádio Várzea (esse comunicado pode ser visto na própria página de facebook da Rádio).
“…Na sexta-feira (03/10) quatro integrantes do coletivo Rádio Várzea Livre receberam uma denúncia de agressão à uma mulher por parte de um novo integrante do coletivo. A denúncia foi realizada pela própria vítima. A agressão foi anterior à participação do denunciado na Rádio Várzea Livre e até então era desconhecida por todxs – já que o caso estava sendo mantido em sigilo pela vítima. Ao tomarem conhecimento da agressão, os integrantes se colocaram ao lado vítima e se comprometeram (em nome do coletivo) a respeitar o encaminhamento proposto (isto é, pela vítima): expulsão do agressor do coletivo e de seus espaços; e manutenção do sigilo da denúncia e da vítima. Na segunda-feira, 06/10, foi solicitado ao agressor o seu afastamento do coletivo até que a denúncia se tornasse pública para os demais integrantes, o que ocorreu em reunião na quarta-feira, 08/10 (conforme acordado com a vítima e a partir da avaliação, feita em conjunto com a própria vítima, sobre a sua segurança)…”
A violência contra qualquer mulher não pode ser tolerada, mas é esse tipo de resolução de problemas que a esquerda adota? Atitude: Expulsão! Etiquetamento: Agressor Carlos Henrique Almeida!!

Se são os espaços autonomos-libertários que propõem outras formas de sociabilidade, como podem reproduzir o mesmo Estado Penal? Esta é a resposta aos papéis de gênero construídos historicamente… a patologização do agressor. Podem também justificar junto com Lombroso que existem estereotípicos.

Um senhor muito conhecido por nós dizia ainda em meados do século XIX que “a crítica não arranca flores imaginárias dos grilhões para que os homens [e as mulheres] suportem os grilhões sem fantasia e consolo, mas para que se livre deles e possam brotar as flores vivas”. [4]

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Detendo-se a discussão primeira, me parece óbvio questionar as pautas e a que se prestam tais movimentos feministas, como a nota em defesa da presidenta Dilma pela violência machista sofrida na abertura da Copa do Mundo, já comentada nesse site. Ou a utilização eleitoreira da legitimidade das lutas e bandeiras feministas

Em 26 de setembro de 2014 o site Viomundo publicou uma matéria graciosamente intitulada: Feministas apoiam Dilma: “Os avanços não podem parar” [5]. Ali foi defendida a ideia governista de que as lutas feministas teriam avançado muito durante e em comunhão com o atual governo. A nosso ver o que aquelas feministas apoiam é o desenvolvimento econômico capitalista, só que com uma pequena palavra somada: a inclusão social. Com tal apoio dado por feministas e órgãos de luta pautados pela bandeira feminista tem-se o fortalecimento de iniciativas e políticas públicas de institucionalização das bandeiras. Algo similar ocorre no âmbito da bandeira da Reforma agrária, quando lutadores e órgãos de luta pautados nessa bandeira defendem o governo alegando que o PT defende a agricultura familiar. Fecha-se os olhos para a decidida opção governista de privilegiamento do agronegócio em detrimento das lutas de base dos movimentos rurais por outro modelo de desenvolvimento econômico, político e social. Aliás, essa falta de olhar crítico sobre as mazelas e déficits do governo é uma marca registrada na quase generalidade dos discursos da ala governista. Cooptados e assimilados pelo governismo, alguns órgãos de luta colocam de bandeja, no colo do governo, o que foram demandas históricas expressas na prática das lutas, de diversos setores e movimentos sociais, organizações de bairros, reproduzindo a lógica de paternalismo/maternalismo estatal e governamental, e permitindo a reorientação e metamorfose dessas bandeiras para uma nova configuração conforme a lógica do lucro, ou seja, esvaziando as bandeiras de qualquer conteúdo radical contestatório do sistema como um todo.

Mas tudo isso não vem ao caso para certos feminismos excludentes, uma vez que se passa por cima das contradições baseando-se na justificativa do quão brilhante e glamouroso é para o avanço feminista (e para seus próprios cargos em secretarias, etc.) ter “uma mulher dirigindo o pais”, ou seja, gerindo o capital por meio da esfera estatal. Toda contradição se apaga de antemão quando aparece esvaziado de conteúdo o discurso da igualdade de gênero, que passa a compor o ideário das políticas públicas do governo da presidenta Dilma. O apoio indiscriminado ao governo Dilma, por ser ela mulher, tal como o apoio indiscriminado ao governo Obama, por ser ele negro, compõe um dos indícios do quão assimiladas foram as bandeiras feminista e negra, ou, o que dá na mesma, indica o quão competentes foram os governos em sua prática de recuperação e assimilação de bandeiras históricas da luta da classe trabalhadora contra a opressão, dominação e exploração, seja em seus componentes de gênero, raça ou classe.

Até que todas sejamos livres?

Ainda atenta às bagagens históricas das lutas feministas, não só Bakunin poderia ressurgir nas mobilizações de rua, mas algumas feministas que desenvolveram importantes atividades autônomas e que teriam muito a nos ensinar…desde modos de alfabetização, cursos sobre as condições das mulheres que se prostituíam, até a construção de um hospital maternal denominado Louise Michel (a revolucionária francesa que participou da Comuna de Paris) realizando do pré-natal à discussões sobre sexualidade. Estas foram experiências do coletivo Mujeres Libres (à época da Guerra Civil espanhola).

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Um outro exemplo histórico que muito tem a nos dizer, embora dentro de seus limites, foi a Revolução Russa. O desafio de pensar a organização da sociedade para além do núcleo familiar, em uma perspectiva coletiva norteada pela atuação do Estado enquanto “Ditadura do Proletariado”, foi certamente uma experiência que merece um olhar atento, seja pelo positivo ou negativo. Recentemente traduzido no Brasil, o livro “Mulher, Estado e Revolução” de Wendy Goldman [6] traz uma aprofundada pesquisa sobre os avanços e limites daquela experiência pós-capitalista. Compreendemos que este processo se dá em meios temporais diferentes, mas abre veredas, pequeninas janelas, para novas perspectivas que certamente podem, de algum modo, lançar luz sobre nossa prática militante no contexto atual. Temas de muita atualidade nas lutas feministas contemporâneas já foram debatidos e tiveram tentativas de solução postas em prática há quase 100 anos na URSS. Se a persistência dos problemas ao longo de tantas décadas às vezes desanima, não deixa de ser inspirador constatar os avanços teóricos e os muitos ensinamentos que precisamos o quanto antes aprender, para não repetirmos os mesmos erros.

A abolição da família, em vez do conflito de gêneros dentro dela, era pensada como a chave da emancipação das mulheres. A socialização do trabalho doméstico eliminaria a dependência das mulheres para com os homens e promoveria uma nova liberdade nas relações entre os sexos. (GOLDMAN, 2014, p. 24).

Para os sujeitos daquele tempo histórico a necessidade era de criações de lavanderias públicas, alimentação em restaurantes coletivos, assim como as crianças estariam sob a criação e responsabilidade pública.

No contexto atual tudo isso pode até parecer utopia, ainda assim pensar outras formas de organização da família traz a lucidez do restrito campo de luta defensiva em que estamos inseridos. Perceber onde estamos e para onde precisamos ir na luta pela emancipação da mulher, bem como os distintos caminhos velhos e novos dessa luta, é um começo essencial.

Notas

[1] BERNADO. João. A autogestão da sociedade prepara-se na autogestão das lutas. Publicado em Piá Piou!, Novembro de 2005, nº 3.

[2] SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Ed.Expressão Popular. São Paulo, 2013.

[3] Disponível aqui.

[4] MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução. Temas de Ciências Humanas n° 2. São Paulo, Grijalbo, 1977.

[5] Disponível aqui.

[6] GOLDMAN, Wendy. Mulher, Estado e Revolução. 1ed. São Paulo: Boitempo, 2014.

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