PICICA: "Entre as múltiplas ameaças de retrocesso
que surgem do Congresso Nacional hoje, uma das mais graves é a voltada à
educação. O espantalho da “doutrinação” dos alunos por professores
esquerdistas é um pretexto para a criminalização do pensamento crítico
em sala de aula, frustrando o objetivo pedagógico de produzir cidadãos e
cidadãs capazes de reflexão autônoma, respeitosos das diferenças,
acostumados ao debate e à dissensão, conscientes de seu papel,
individual e coletivo, na reprodução e na transformação do mundo social.
Em seu lugar, voltamos à ultrapassada compreensão de uma educação
limitada à transmissão de “conteúdos” factuais, dos quais o professor é
um mero repetidor e o aluno, receptáculo passivo. O slogan vazio da
“escola sem partido” busca passar a ideia de que o ensino acrítico é
“neutro”, quando, na verdade, ao naturalizar o mundo existente e inibir a
discussão sobre suas contradições internas, é um mecanismo poderoso de
reprodução do status quo."
A criminalização do pensamento crítico
Entre as múltiplas ameaças de retrocesso
que surgem do Congresso Nacional hoje, uma das mais graves é a voltada à
educação. O espantalho da “doutrinação” dos alunos por professores
esquerdistas é um pretexto para a criminalização do pensamento crítico
em sala de aula, frustrando o objetivo pedagógico de produzir cidadãos e
cidadãs capazes de reflexão autônoma, respeitosos das diferenças,
acostumados ao debate e à dissensão, conscientes de seu papel,
individual e coletivo, na reprodução e na transformação do mundo social.
Em seu lugar, voltamos à ultrapassada compreensão de uma educação
limitada à transmissão de “conteúdos” factuais, dos quais o professor é
um mero repetidor e o aluno, receptáculo passivo. O slogan vazio da
“escola sem partido” busca passar a ideia de que o ensino acrítico é
“neutro”, quando, na verdade, ao naturalizar o mundo existente e inibir a
discussão sobre suas contradições internas, é um mecanismo poderoso de
reprodução do status quo.
São diversos
projetos em tramitação no Congresso, que partem do veredito comum de
que haveria um esforço de doutrinamento em curso, seja pelo PT, seja
pela esquerda de modo geral, que faria com que as escolas tivessem se
tornado centros de difusão do socialismo e/ou do feminismo. É uma reação
ao arejamento – na verdade, ainda muito insuficiente – das práticas
pedagógicas; uma reação que não vem de hoje, mas que se intensificou com
a ofensiva diretista dos últimos anos. Alguns talvez se lembrem que,
nos anos finais da ditadura militar, pré-escolas alternativas eram
acusadas de adotar cartilhas marxistas. É o mesmo tipo de paranoia, mas
agora vendo o pretenso doutrinamento como política de Estado, que está
por trás das fantasias do movimento Escola Sem Partido, do repúdio a
Paulo Freire nas manifestações públicas da direita ou da reação
histérica à recente prova do ENEM.
Cada vez que
a escola se desloca, por pouco que seja, de seu papel tradicional de
aparelho ideológico reprodutor da ordem social, erguem-se as bandeiras
de “doutrinamento”. A manobra argumentativa é evidente. A reprodução
transita como “não ideológica” porque a ordem social vigente é
naturalizada. É como se ela não fosse o fruto de processos históricos,
de conflitos sociais com ganhadores e perdedores, mas um dado da
realidade que existe por si só. A “neutralidade” do discurso que não
questiona o porquê do mundo social ser como é, nem indica que essa
ordenação não é uma necessidade, é falsa: ele é um elemento ativo de
perpetuação, uma maneira de bloquear as potencialidades de mudança
presentes do mundo em que vivemos.
Na atual
ofensiva da direita brasileira, há dois alvos simultâneos. Permanece o
ódio ao marxismo e, de modo mais geral, a qualquer forma de
questionamento à desigualdade de classe. É sustentado por uma leitura
delirante da teoria de Gramsci, difundida pelo astrólogo Olavo de
Carvalho, em que a ideia de uma luta pela produção de sentido no mundo
social é transformada num plano diabólico de lavagem cerebral em massa.
Mas há uma grande ênfase também na
denúncia contra qualquer tentativa de desnaturalizar os papéis
estereotipados atribuídos a mulheres e homens. É a “ideologia de
gênero”, termo que foi cunhado pelos setores conservadores da Igreja
Católica, mas adotado também por denominações protestantes, e colocada
em curso em vários países do mundo, entre eles o Brasil, como forma de
organizar a oposição aos avanços – mais lentos do que gostaríamos, mas
inquestionáveis – na direção de maior igualdade entre os sexos e maior
respeito a gays e lésbicas. Ao afirmar que “ideológica” é a
luta contra a discriminação de gênero, fica implícito que a desigualdade
e a intolerância seriam naturais.
O rótulo “ideologia de gênero” foi
rapidamente incorporado à linguagem destes grupos. Sintético, ele
permite que se descarte, sem discussão, tudo aquilo que já se sabe sobre
a produção social do feminino e do masculino. Quando militantes
conservadores reagem à frase de Simone de Beauvoir incluída na prova do
ENEM escrevendo coisas como “eu nasci mulher sim, nasci com vagina”,
como se viu nas redes sociais, revelam, mais do que apenas uma
ignorância brutal e constrangedora, uma impermeabilidade deliberada a
qualquer discussão sobre o tema.
Ao lado da ameaça que a emancipação feminina e a conquista dos direitos de gays
e lésbicas de fato representa aos privilégios de homens e de
heterossexuais, e ao lado também do fundamentalismo religioso de alguns,
há no destaque dado à “ideologia de gênero” uma demonstração de
oportunismo político. Como afirmei em outro lugar, hoje a homofobia é o ópio do povo.
Deslocando o eixo do conflito para as questões “morais” (que, na
verdade, são questões de direitos individuais), a direita se põe em
sintonia com uma parcela do eleitorado que, sobretudo a partir das
políticas compensatórias do governo Lula, se movimentava na direção de
seus adversários. Também por isso, para as forças da esquerda a luta
pela igualdade de gênero e contra a homofobia não pode ser considerada
uma pauta secundária.
Entre os
projetos em tramitação no Congresso, vários têm o fantasma da “ideologia
de gênero” como alvo. O PL 7180/2014 e o PL 7181/2014, ambos de autoria
de Erivelton Santana (PSC/BA), determinam a mesma coisa: que “os
valores de ordem familiar [têm] precedência sobre a educação escolar nos
aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa, vedada a
transversalidade ou técnicas subliminares no ensino desses temas”. O
primeiro projeto visa instituir esta regra na Lei de Diretrizes e Bases
da Educação e o outro, redundantemente, quer torná-la obrigatória nos
parâmetros curriculares (que já devem obedecer à LDBE).
A
intocabilidade da família, como sujeito coletivo com direitos próprios,
irredutíveis aos de seus integrantes, é o que fundamenta tal proposta.
Muitas vezes, mesmo os grupos mais progressistas têm receio de discutir o
status atribuído à unidade familiar, preferindo deslocar a
luta para a necessidade de pluralizar o entendimento do que é família.
Claro que que é importante dar a todos que o queiram a possibilidade de
buscar formar famílias, no formato que desejem, mas ainda precisamos
dessacralizar a “família”. A família é também um lugar de opressão e de
violência. A defesa de uma concepção plural de família não pode colocar
em segundo plano a ideia de que, em primeiro lugar, estão os direitos
individuais dos seus integrantes. E entre estes direitos está o de ter
acesso a uma pluralidade de visões de mundo, a fim de ampliar a
possibilidade de produção autônoma de suas próprias ideias.
As propostas
do deputado baiano impedem a educação sexual e o combate ao preconceito
e à intolerância nas escolas, sob o argumento de preservar a soberania
da família na formação “moral” dos mais novos. Com isso, retiram da
escola a possibilidade de contribuir para disseminar os valores de
igualdade e de respeito à diferença, que são cruciais para uma sociedade
democrática. E retiram dos jovens o direito de ter acesso a informações
que são necessárias para que eles possam refletir sobre sua própria
posição nesse mundo e avançar de maneira segura para a vida adulta.
Ainda mais
bisonho, o PL 1859/2015, de autoria de Izalci Lucas (PSDB/DF), Givaldo
Carimbão (PROS/AL) e outros, propõe que a LDBE inclua dispositivo que
proíba as escolas de apresentar conteúdo “que tendam a aplicar a
ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’”. A
política linguística destes deputados incorpora ao vocabulário
legislativo o termo “ideologia de gênero”, inventado recentemente pela
direita fundamentalista, e veta do vocabulário escolar os termos
“gênero” e “orientação sexual”, impedindo assim que vastos setores do
conhecimento produzido na sociologia e na psicologia cheguem ao ensino. O
objetivo é evitar qualquer questionamento da percepção naturalizada dos
papéis sexuais. É por isso que, quase 70 anos depois, Simone de
Beauvoir ainda causa arrepios.
Na mesma
linha, o PL 2731/2015, de Eros Biondini (PTB/MG), quer incluir, no Plano
Nacional de Educação, uma proibição à “utilização de qualquer tipo de
ideologia na educação nacional, em especial o uso da ideologia de
gênero, orientação sexual, identidade de gênero e seus derivados, sob
qualquer pretexto”. Para além do absurdo do texto (uma “ideologia” é
“utilizada” na “educação nacional”?), o PL é significativo pelas
punições previstas. O profissional de educação que descumprir a norma,
isto é, que tematizar a desigualdade de gênero ou a homofobia, ou mesmo
que apresente qualquer raciocínio crítico que seja rotulado como
“ideológico”, perderá o cargo e estará sujeito às punições previstas, no
Estatuto da Criança e do Adolescente, àqueles que submetem “criança ou
adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou
constrangimento ilegal”: seis meses a dois anos de prisão.
O projeto
mais ambicioso, porém, é o PL 867/2015, novamente de Izalci Lucas, que é
representante da ala do PSDB mais despreparada intelectualmente e
retrógrada politicamente. Seu objetivo é incluir, nas diretrizes e bases
da educação nacional, um programa intitulado “Escola sem Partido”. De
fato, o deputado simplesmente apõe seu nome à iniciativa do “movimento”
de mesmo nome. Assim, a educação deve ser baseada na “neutralidade
política” e a escola não pode desenvolver nenhuma atividade que possa
“estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou
responsáveis pelos estudantes”. Embora escolas confessionais privadas
possam exercer seu proselitismo, desde que contem com a anuência dos
pais. O artigo 5º prevê que serão afixados cartazes nas escolas para que
os estudantes saibam que podem denunciar seus professores. O programa
se aplica ao material didático e a todos os níveis de ensino, incluindo o
superior.
Os dois
pilares são, portanto, a soberania da família, que se sobrepõe ao
direito do estudante de obter elementos para produzir de forma autônoma
sua visão de mundo, e uma ideia de “neutralidade” que se baseia na
ficção de um conhecimento que não é situado socialmente. Um relato da
história do Brasil ou do mundo que se limite a nomes ou datas, como no
ensino do regime militar, pode parecer “neutro”, por não assumir
expressamente juízos de valor. Mas, ao negar ao aluno as condições de
situar os processos históricos e de compreender os interesses em
conflito, cumpre um inegável papel conservador.
Se a
“neutralidade” não existe, uma vez que toda produção de conhecimento
parte de um lugar social específico, qual é o contrário da doutrinação? É
o pensamento crítico, aquele que permite que os estudantes sejam não
objetos, mas sujeitos da aprendizagem, refletindo sobre os conteúdos e
construindo suas próprias percepções, no diálogo com professores e
colegas. É esse pensamento crítico que assusta os promotores da “Escola
sem Partido”. Seu discurso ensaiado não disfarça o fato de que são eles
que desejam uma escola doutrinária, que imponha aos estudantes um
pensamento fechado – o conformismo – e os impeça de pensar com as
próprias cabeças e, pensando, quem sabe inventar um mundo novo.
***
Luis Felipe Miguel é
professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília,
onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo
de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Ambos colaboram com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.