PICICA: "Há cem anos não se fala em outra coisa.1
O falatório surpreenderia o próprio Freud. Se ele criou um espaço e uma
escuta para que a histérica pudesse fazer falar seu sexo, num tempo
cuja norma era o silêncio, o que restaria ainda por dizer ao
psicanalista, quando a sexualidade circula freneticamente em palavras e
imagens, como a mais universal das mercadorias?
Ainda assim,
parece que nada mudou muito. O escândalo e o enigma do sexo permanecem,
deslocados – já não se trata da interdição dos corpos e dos atos –
avisando que a psicanálise ainda não acabou de cumprir o seu papel.
Mulheres e homens vão aos consultórios dos analistas (e, como há cem
anos, mais mulheres do que homens), procurando, no mínimo, restabelecer
um lugar fora de cena para uma fala que, despojada de seu papel de lata
de lixo do inconsciente (no que reside justamente sua obscenidade), vem
sendo exposta à exaustão, ocupando lugar de destaque na cena social, até
a produção de uma aparência de total normalidade."
Maria Rita Kehl: A mínima diferença
Por Maria Rita Kehl.*
Há cem anos não se fala em outra coisa.1
O falatório surpreenderia o próprio Freud. Se ele criou um espaço e uma
escuta para que a histérica pudesse fazer falar seu sexo, num tempo
cuja norma era o silêncio, o que restaria ainda por dizer ao
psicanalista, quando a sexualidade circula freneticamente em palavras e
imagens, como a mais universal das mercadorias?
Ainda assim,
parece que nada mudou muito. O escândalo e o enigma do sexo permanecem,
deslocados – já não se trata da interdição dos corpos e dos atos –
avisando que a psicanálise ainda não acabou de cumprir o seu papel.
Mulheres e homens vão aos consultórios dos analistas (e, como há cem
anos, mais mulheres do que homens), procurando, no mínimo, restabelecer
um lugar fora de cena para uma fala que, despojada de seu papel de lata
de lixo do inconsciente (no que reside justamente sua obscenidade), vem
sendo exposta à exaustão, ocupando lugar de destaque na cena social, até
a produção de uma aparência de total normalidade.
Parece que
nada mudou muito: mulheres e homens continuam procurando a psicanálise
para falar da sexualidade e suas ressonâncias; mas o que se diz ali já
não é a mesma coisa. “O que devo fazer para ser amada e desejada?”,
perguntam as mulheres, com algum ressentimento: não era de se esperar
que o amor se tornasse tão difícil já nos primeiros degraus do paraíso
da emancipação sexual feminina. “O que faço para ser capaz de amar
aquela que afinal me revelou o seu desejo?”, perguntam os homens,
perplexos diante da inversão da antiga observação freudiana, segundo a
qual é próprio do feminino fazer-se amar e desejar o próprio do homem,
narciso ferido eternamente em busca de restauração, amar sem descanso
aquela que parece deter os segredos da sua cura. Mulheres que já não
sabem se fazer amar, homens que já não amam como antigamente. Como se
pedissem aos psicanalistas: “o que faço para (voltar a) ser mulher?”,
“como posso (voltar a) ser homem?” – questões que me remetem à
observação de Arnaldo Jabor em artigo de para a Folha de São Paulo,
sobre o choro (arrependido?) de algumas mulheres da cena política e da
mídia brasileiras: “O que é isso? A feminilidade como retorno?”.
Incapaz de
formular uma interpretação satisfatória para o que ouço no consultório e
na vida, dou voltas em torno desse mal-estar. Tento cercar com
perguntas aquilo para o que não encontro resposta. É possível que a
relação consciente/inconsciente se modifique à medida que mudam as
normas, os costumes, a superfície dos comportamentos, os discursos
dominantes? A questão remete, sim, à relação entre recalque e repressão.
Se mudam as normas, mudam os ideais e o campo das identificações – e,
com eles, uma parte das exigências do superego, uma parte das
representações submetidas pelo menos ao recalque secundário –, mudam
também as chamadas soluções de compromisso, os sintomas que tentam dar
conta simultaneamente da interdição e do desejo recalcado… Dito de outra
forma – os “novos tempos” nos trazem novos sujeitos? Novos homens e
mulheres colocam outras questões à observação psicanalítica? E aqui vai a
ressalva: não há nenhuma euforia, nenhum otimismo no emprego da palavra
“novo”. A própria psicanálise já nos ensinou que a cada barreira
removida, a cada véu levantado, deparamos não com um paraíso de
conflitos resolvidos e sim com um campo minado ainda desconhecido.
Avancemos
mais alguns passos nesse campo minado. O lugar reservado às mulheres na
cena social (e sexual) desde o surgimento da psicanálise foi sendo
alterado (por obra, entre outras coisas, das próprias contribuições
freudianas) e ampliado; as insígnias da feminilidade se modificaram, se
confundiram, as diferenças entre os sexos foram sendo borradas até o
ponto em que a revista Time americana publica em 1992, como
artigo de capa, a seguinte pesquisa: “Homens e Mulheres: Nascem
Diferentes?”. Na dinâmica de encontro e desencontro entre os sexos, a
intensa movimentação das tropas femininas nos últimos trinta anos parece
ter deslocado os significantes do masculino e do feminino a tal ponto
que vemos caber aos homens o papel de narcisos frígidos e às mulheres o
de desejantes sempre insatisfeitas. Não cabe hoje aos homens dizer:
“devagar com a louça!” – aterrados diante da audácia dessas que até uma
ou duas gerações atrás pareciam aceitar as investidas do desejo
masculino como homenagem à sua perfeição ou como o mal necessário da
vida conjugal?
Já sabemos
que o homem odeia o que o aterroriza. Se a verdade do sexo vazio da
mulher sempre tem que ser dissimulada com os engodos fálicos da beleza e
da indiferença, tal a angústia que é capaz de provocar em quem ainda
sente que tem “algo a perder”, essa angústia parece redobrar diante da
evidência de que esse sexo vazio também é faminto, voraz. “O que elas
querem de nós?”, indagam entre si os varões, tentando se assegurar de
que ainda é possível entrar e sair da relação com a mulher, sem deixar
por isso de ser homens – mas como, se a mulher que expõe seu desejo
sexual age “como um homem” e com isso os feminiza?
Os artistas da virada do século já previam a sorte dessas novas-ricas da conquista amorosa. Ana Karênina2
pagou por sua ousadia debaixo das rodas de um trem, como “a mais
desgraçada das mulheres”, enlouquecida ao descobrir que o. amor não é
meio de vida., o amor não garante nada – o casamento, sim. Emma Bovary3
queimou as entranhas com arsênico por não ter sido capaz de tomar a
aventura amorosa do mesmo modo que seu amante Rodolfo – apenas como uma
aventura. Na virada do século XX, já não havia Werther que destruísse
sua vida pela utopia do amor de uma mulher. O amor da mulher foi
deixando de ser utopia para se tornar fato corriqueiro: são as grandes
amorosas que se matam, então ao descobrir que seu dom mais precioso
perde parte do valor, justamente na medida em que é dado.
O destino da Nora, de Ibsen,4
nos parece mais promissor, porque a peça termina quando tudo ainda está
por começar. Ela abandona a “casa de bonecas” ao descobrir que sua
alienação (termo que Ibsen nunca usou) era condição de felicidade
conjugal. Depois de entender que no código do marido o amor mais
apaixonado só iria até onde fossem as conveniências, Nora recusa o
retorno à condição feminina-infantil de seu tempo e sai em busca de… mas
aqui cai o pano e agora, mais de um século depois, fazemos o balanço do
que ela encontrou. Independência econômica, algum poder, cultura e
possibilidades de sublimação impensáveis para a mulher restrita ao
espaço doméstico. Também a possibilidade da escolha sexual, e uma
segunda (e a terceira e a quarta…) chance de um casamento feliz. E a
possibilidade de conhecer vários homens, e compará-los. De ser parceira
do homem, reduzindo a distância entre os sexos até o limite da mínima
diferença. Mas teria Nora, melhor que as contemporâneas literárias,
conquistado alguma garantia de corresponder às paixões masculinas sem
“se desgraçar”?
No Brasil,
onde historicamente todas as diferenças são menos acentuadas, a história
de amor mais marcante já neste século é a história de um engano. É por
engano que o jagunço Riobaldo5 se apaixona por seu
companheiro Diadorim, ou Maria Deodorina, que acaba perdendo a vida em
conseqüência de sua mascarada viril. É por engano – ou não é ? – que
Diadorim desperta a paixão de um homem, travestida de homem, por sua
feminilidade diabólica que se insinua e se inscreve justo onde deveriam
estar os traços mais fortes de sua masculinidade – a audácia, a coragem
física, o silêncio taciturno. Como se Guimarães Rosa tivesse dado a
entender, lacanianamente: se uma mulher quer ser homem, isso não faz a
menor diferença, desde que continue sendo uma mulher. Ou mais: se uma
mulher quer ser homem e se esconde nisso, daí sim é que ela é mesmo uma
mulher.
O fato é que
não se trata só de esconder ou disfarçar, como no caso de Diadorim. O
avanço das Noras do século XX sobre espaços tradicionalmente masculinos,
as novas identificações (mesmo que de traços secundários) feitas pelas
mulheres em relação a atributos que até então caracterizavam os homens,
não são meros disfarces: são aquisições que tornaram a(s) identidade (s)
feminina(s) mais rica(s) e mais complexa(s). O que teve, é claro, seu
preço em intolerância e desentendimento – de parte a parte. Aqui tomo
emprestado um conceito que Freud empregou no “Mal-Estar…”,6
sem ter se estendido mais sobre ele. Nesse texto Freud cunhou a
expressão “narcisismo das pequenas diferenças” tentando, explicar as
grandes intolerâncias étnicas, raciais e nacionais – sobretudo a que
pesava sobre os judeus na Europa. É quando a diferença é pequena, e não
quando é acentuada, que o outro se torna alvo de intolerância. É quando
territórios que deveriam estar bem apartados se tornam próximos demais,
quando as insígnias da diferença começam a desfocar, que a intolerância é
convocada a restabelecer uma discriminação, no duplo sentido da
palavra, sem a qual as identidades ficariam muito ameaçadas.
No caso das
pequenas diferenças entre homens e mulheres, parecem ser os homens os
mais afetados pela recente interpenetração de territórios – e não só
porque isso implica possíveis perdas de poder, como argumentaria um
feminismo mais belicoso, e sim porque coloca a própria identidade
masculina em questão. Sabemos que a mulher encara a conquista de
atributos “masculinos” como direito seu, reapropriação de algo que de
fato lhe pertence e há muito lhe foi tomado. Por outro lado, a uma
mulher é impossível se roubar a feminilidade: se a feminilidade é
máscara sobre um vazio, todo atributo fálico virá sempre incrementar
essa função. Já para o homem toda feminização é sentida como perda – ou
como antiga ameaça que afinal se cumpre. Ao homem, interessa manter a
mulher à distância, tentando garantir que este “a mais” inscrito em seu
corpo lhe confira de fato alguma imunidade.
A
aproximação entre as aparências, as ações, os atributos masculinos e
femininos são para o homem mais do que angustiantes. É de terror e de
fascínio que se trata, quando um homem se vê diante da pretensão
feminina de ser também homem, sem deixar de ser mulher. Bruxas,
feiticeiras, possuídas do demônio, assim se designavam na antiguidade
essas aberrações do mundo feminino que levavam a mascarada da sua
feminilidade até um limite intolerável. Só a morte, a fogueira ou a
guilhotina seriam capazes de põe fim à onipotência dessas que já
nasceram “sem nada a perder”.
E quem
duvida de que Ana Karênina, Emma Bovary, Nora, Deodorina tenham se
tornado aquilo que se costuma chamar de “mulheres de verdade” a partir
do momento em que abandonaram seus postos na conquista deste a mais que,
tão logo conquistado, parece lhes cair como uma luva? Mas quem duvida
também de que o preço dessas conquistas continue sendo altíssimo? Quando
não a morte do corpo (pois não é no corpo que se situa o tal a mais da
mulher!), a morte de um reconhecimento por parte do outro, na falta do
que a mulher cai num vazio intolerável. Pois se a mulher se faz também
homem, é ainda por amor que ela o faz – para ser ainda mais digna do
amor.
Quando o
amor e o desejo da mulher se libertam de seu aprisionamento narcísico e
repressivo para corresponder aos do homem, parece que alguma coisa se
esvazia no próprio ser da mulher. Os suicídios de Ana e Emma são nesse
caso, exemplares. Teriam suas vidas perdido o sentido depois que elas se
entregaram sem restrições ao conde Vronsky, ou a Rodolphe Boulanger?
Não; diria que a perda de sentido se dá nelas próprias. Ao desejarem e
amarem tanto quanto foram amadas e desejadas, elas deixaram de fazer
sentido como mulheres – primeiro para os amantes, depois para si mesmas.
Na defesa do
narcisismo das pequenas diferenças, é do reconhecimento amoroso que o
homem ainda pode privar a mulher, esta que parece não se privar de mais
nada, não se deter mais no gozo de suas recentes conquistas. Mas não se
imagine que o homem o faz (apenas) por cálculo vingativo. É que ele já
não consegue reconhecer esta mulher tão parecida consigo mesmo, na qual
também odiaria ter que se reconhecer.
Vale ainda
dizer que não é só da falta de reconhecimento masculino que tratam o
abandono e a solidão da mulher. Já nos primórdios dessa movimentação
toda, Melanie Klein e Joan Rivière escreviam que, muito mais do que a
vingança masculina, o que uma mulher teme em represália por suas
conquistas é o ódio de outra mulher, aquela a quem se tentou suplantar,
etc., etc. Ódio que frequentemente se confirma “no real”, para além das
fantasias persecutórias.
E aqui
abandono o campo minado das “novas sexualidades” sem nada além de
hipóteses e questões a respeito do nosso mal-estar, antes que esse texto
se torne paranóico; mas como não ser paranóico um texto escrito por
mulher, sobre a ambiguidade, os impasses e as pretensões da sexualidade
feminina?
* Texto escrito originalmente em 1992, e recuperado pela autora especialmente para o especial “Dia da mulher, dia da luta feminista“, no Blog da Boitempo.
***
NOTAS
1 Publicado em Daniela Roppa, org., Anuário de Psicanálise 1992/93. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.
2 Leon Tolstoi, Ana Karênina (1873-77). São Paulo: Ed. Abril, 1979. Tradução de João Gaspar Simões.
3 Gustave Flaubert, Madame Bovary (1853-56). Paris: Garnier Flammarion, 1966.
4 Henrik Ibsen, Casa de Bonecas (1879). Mairiporã (SP): Veredas, 1990.
5 João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas (1956). Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
6 Sigmund Freud, “El Malestar em la Cultura”, in: Obras Completas. Madri: Biblioteca Nueva, 1976.
***
Maria Rita Kehl é
psicanalista, doutora em psicanálise pela PUC de São Paulo, poeta e
ensaísta. É autora de vários livros, entre os quais se destacam O tempo e o cão: a atualidade das depressões (Boitempo, 2009), ganhador do Prêmio Jabuti de Melhor Livro de Não-Ficção 2010, e 18 crônicas e mais algumas (Boitempo, 2011). Colabora esporadicamente para o Blog da Boitempo esporadicamente.
Fonte: Blog da Boitempo
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