novembro 23, 2015

A anacrônica atualidade de um clássico do underground universal.POR Contreraman (OBVIOUS)

PICICA: "O velho Lanca (Hotel Lancaster, do Mário Bortolotto) é importante para mim por vários motivos. Peça feita há mais de 14 anos, encenada sempre sob a batuta do sábio (não é ironia) Marcos Loureiro, o Louro, o velho Lanca chocou-me quando o vi."

A anacrônica atualidade de um clássico do underground universal


O velho Lanca (Hotel Lancaster, do Mário Bortolotto) é importante para mim por vários motivos. Peça feita há mais de 14 anos, encenada sempre sob a batuta do sábio (não é ironia) Marcos Loureiro, o Louro, o velho Lanca chocou-me quando o vi.

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História repleta de sketchs (rabiscos) de personagens inqualificáveis, o velho Lanca narra o cotidiano de um hotel que serve de morada para o tráfico e abusos indescritíveis ao redor de drogas de todos os tipos.

Há personagens retirados de pessoas reais (o drogado-baterista feito pelo Napão), caricaturais (o bichona Ricardo), estereotipados (a irmã do chapado que morre ao final, feita pela linda e amicíssima Débora Estter), dantescos (a dona da bagaça feita pela Thereza Piffer), e insubstituíveis (o dono do ponto, feito pelo Cerrutti). O Carca faz o chapado, apostando numa via menos sabichona, como o personagem em Killer Joe, e o protagonista em O Canal. Hoje, época do politicamente correto, em que quase todos parecem voltar-se a Deus, apostar em encenar o velho Lanca parece anacrônico e quase de mau-gosto. Mas eis que vejo pessoas morrendo de rir ao ver esses cartoons no palco. Pessoas comuns, quase caretas. Outras, claro, nem tanto.

Pessoas em busca de liberdade, ao que parece. Não citei até agora o Mastropasqua, o Sérgio, que faz o demônio no palco. Mas cito-o agora, tocando num detalhe que me fascina: o fato de os atores dos personagens mais estapafúrdios serem os mais tranquilos e suaves lá fora, ao nos cumprimentarem. É incrível isso. Mas é sintomático: os melhores são sempre os que mais reparam em vc. Como o Napão repara em mim, o bichona repara também, e o Sérgio parece quase desacreditar em me ver, logo ele que foi um dos primeiros a curtirem a página empresarial de meu grupo, aqui no face. Isso é acreditar. E eu sempre acreditei no Lanca, em sua equipe, direção e técnicos. Sempre. Já havia visto várias vezes a montagem em outros lugares, até no finado CIT-Ecum.

Ocorre que passaram-se vários anos desde que vi o Lanca pela primeira vez. E de lá para cá muito mudou, em mim, em minha percepção do teatro do Marião e do Louro, nas peças dos dois, inclusive naquelas que o próprio Marião escreveu nesse entretempo, nas pessoas, e na minha vivência com os atores do grupo, no próprio contexto histórico e nas apostas de todos os envolvidos no teatro em si e nas artes em geral. E por isso preciso comentar tudo novamente. Pois quando tudo muda, nossa percepção muda e com elas nossas apostas. Porque o tempo todo apostamos: na vida, na profissão, na família, nos amigos, na morte. Como dizia a própria Elis. Vivendo e aprendendo a jogar. Sei que é chato, mas faço os textos assim, aos poucos, aos borbotões, e por isso irei completar este aos poucos, até porque pretende ficar meio longo.

Bom, o teatro do Marião é realista. Suas principais influências, em termos de direção e criação, são, pelo que ele parece transparecer, são o diretor Fauzi Arap, recentemente (2013) falecido, e literatura conectada ao mundo dos quadrinhos, do jazz e muitas outras fontes. Seu teatro é de rigor, especialmente quanto a texto, e aparente despojamento, especialmente quanto à missão do teatro e ao seu lugar no seu (dele) universo – que ele considera fundamental para ele (Marião) ter se tornado o que é enquanto pessoa. 

Hotel Lancaster, nesse contexto, mostra sua abertura ao universo de seres com que ele conviveu e convive, e por dentro, e por outro lado uma extrema dedicação ao texto, à cena e às interpretações. Numa oficina de crítica que fiz recentemente, eu me convenci da profunda aversão desse tipo de teatro à inovação pela inovação, a não seguir regras de encenação que são tocadas pelos diretores diuturnamente desde as origens, algumas dessas regras de ordem teórica e outras de ordem prática, e à improvisação sem critério. 

O Marião faz um teatro “quadradinho”, sim, então, mas no sentido de seguir as lições dos mestres e dos mestres dos mestres, para quem toda essa aparente inovação que surge da performance e da busca da liberdade pessoal fora da cena é simplesmente preguiça ou falta de ensaio ou mesmo de técnica. Sendo dirigido por ele, eu aprendo muito, e sempre, seja pela simplicidade dos seus comandos, pela empatia que ele tem com seus atores e atrizes, pelo rigor com o texto e com a encenação, e pelo extremo respeito àquilo que foi combinado desde o começo. Já se tornaram célebres, em minha mitologia pessoal, os momentos em que ele tirou um ator porque ele simplesmente passou a andar em cena em marcação não combinada, sem sua anuência ou autorização, e a ríspida elegância com a qual ele convence o técnico de que a luz não é bem aquela, que o lugar do ator não é exatamente esse, que o corte na trilha não é bem ali, que o ator não fala desse jeito mas desse outro, levemente (e sempre noto que não é tão levemente) diferente. Pois uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. Eu, de caso nada pensado, não comecei com teatro realista, mas com seu desrespeito, que foi o teatro de um Gerald Thomas após seu auge, tendo convivido (bastante pouco) com teatros de ordem regionalista (Redimunho) e alternativo (Núcleo Bartolomeu e Roberto Alvim, grande parceiro do Marião). 

Ocorre que com o Marião foi que eu aparentemente entendi as bases do que seria um teatro marginal com profundo respeito às lições dos mestres mais inquestionáveis. Por outro lado, o Marião, não sei se de caso pensado, não SEGUE ninguém. Ele faz o teatro de que ele gosta, fala do que gosta, com as músicas de que gosta, com a luz que lhe agrada, e tá nem aí para o resto. Bem do jeito que me agrada: não necessariamente seguir idiossincrasias pessoais, mas não as abandonando, fazer algo profissional de respeito.

Hotel Lancaster, nesse sentido, é também bastante quadradinho. O respeito à encenação realista é fundamental (estão lá todos os apetrechos que a gente poderia considerar indispensáveis à reprodução de um ambiente daqueles; os personagens mostram verossimilhança mesmo que pareçam de outro mundo; a luz reproduz ambientes, assim como o som se apresenta de forma como na realidade, como música ambiental, tiro e tudo o mais, etc.); os atores interpretam os personagens, de preferência, sempre da mesma forma, essa que foi combinada, aprimorando aqui e acolá alguma coisa, alguma fala, ou alguma acepção, mas jamais fugindo com a desculpa da improvisação pura e simples; as luzes e os sons, assim como as trilhas, cumprem sua função tradicional, jamais redundando em invencionice pela invencionice; a ideia é sempre contar uma história. 

Por outro lado, é claro que a história não é muito simpática para grande parcela da população, mas é, da forma como é contada, que essa história consegue retratar um universo que é o que o Marião toma como relevante para sua vida e que para muitas pessoas é, sim, uma grande ou importante referência. Por outro lado, não é porque é quadradinho que o teatro do Marião é comportado; não, nada disso. Lá vemos abusos sexuais, lá vemos tiros e morte, lá vemos personagens à beira da loucura, lá vemos excessos e burrice; lá não vemos o retrato de um ser humano comum e corrente (como se diz em espanhol), um pai de família aparentemente cônscio de sua imagem e de seus deveres, uma filha respeitosa, uma mãe submissa ou adequada à realidade de uma sociedade aparentemente normalizada; lá vemos as exceções, os seres desgarrados, os tendentes ao excesso, ao pânico, ao desespero ou mesmo à morte gratuita.

Ocorre que, tendo visto encenações da mesma peça há alguns anos, noto, apesar da temática para alguns ou muito exagerada ou aparentemente anacrônica, ou mesmo inadequada – como se alguma temática pudesse ser, hoje, adequada (ressalvando a posição da lei a respeito) –, existe algo, a meu ver, incômodo (por deslocado nos costumes ou no tempo) em determinadas personagens, determinadas falas, determinadas expressões corporais ou mesmo determinadas situações em relação à REALIDADE do tempo presente (atendo-me ao caráter realista da encenação). Pois, sem querer revelar muito da peça mas acabando por revelar algo, ou talvez aspectos importantes dela, o que há de aparentemente marginal em descrever, HOJE, um pico de cocaína, se achamos farto material a respeito num youtube da vida? Ou uma morte por overdose, se o mesmo acontece? Ou um sexo oral forçado, se material sobre isso não falta em nenhum lugar? Ou uma morte por tiro num drogado descontrolado? Claro, não é porque é teatro realista que o teatro desse tipo se propõe necessariamente REPRODUZIR a realidade, apenas, mas, indo além dela, revelar algo subjacente – ou seja, um conteúdo que não valeria a pena ou não poderia simplesmente ser passado no texto. Ou seja, é a encenação que se propõe atribuir um valor diferenciado ao teatro, sempre. Pois, se podemos ter acesso a um determinado conteúdo simplesmente lendo um livro, por que encená-lo? Ou por que ver um filme? 

Claro, existe o aspecto prazeroso da atividade, ou mesmo lúdico. Mas quero aqui ressaltar que hoje a realidade parece, em grandes linhas, ter ultrapassado, em muito ou pouco, mas em algum grau, a realidade em que o Marião se baseou para escrever sua peça, lá nos idos dos 90. Isso não quer dizer que a peça esteja ultrapassada, por outro lado; lembro-me bem do desconforto que foi assistir diversas peças dele desse tipo, no final dos 90 e nos anos 2000, sem saber se conseguia ou se deveria engolir esse pessimismo marcante ou mesmo descrença acachapante que me invadiram após ver mortes, suicídios ou desconfortos que me faziam apenas acrescentar camadas e camadas de dor àquela que eu sentia naquela época por fatores essencialmente meus. Ainda me incomoda, de alguma forma, o nu da Débora pouco antes de tentar ser abusada pelo personagem do Cerrutti; assim como me incomoda, embora anime também, o desempenho absurdamente engraçado do Napão ao fazer o drogado-baterista-maluco; muito no que aparece me anima, por um lado, e também por outro me incomoda. E esses personagens retratados, como é claro, ainda são marginais, e são, salvo engano, mal aceitos por quase qualquer membro da sociedade dita normal – no máximo sendo aturados ou tolerados em sua mera existência maltrapilha. Até hoje, em determinados contextos, parece a vários de meus amigos e amigas quase chocante que eu consiga, com o meu perfil, vivenciar a norte em teatros como o do Cemitério, que não têm hora para fechar, em que só entram, a partir de determinado momento da noite, os amigos ou gente que esteja disposta a tentar entender a vida naquele momento do abaixar as cortinas, etc. Não que eu seja um eremita; mas alguns não entendem ou mesmo não conseguem imaginar.

O anacronismo aparente desse tipo de personagem retratado em Hotel Lancaster parece por outro lado aflorar, porém e também, no contexto histórico atual, em que os indivíduos, assoberbados por informação advindas de todos os lados, e sabendo de tudo o que acontece em qualquer lugar do Sistema Solar, parecem preferir seguir normas ditadas por fontes externas (religiões, leis, grupos, classes sociais, etc.) a simplesmente assumirem que são, como era o intuito do Iluminismo fazer o ser humano acreditar, seres pensantes, livres pensadores, independentes, donos de seus passos e de suas condutas, ditadores de suas próprias normas (para si), e relativamente felizes nesse destino de seres possuidores das próprias liberdades e responsabilidades. 

Pois hoje, salvo engano, parece ter virado quase um pecado assumir-se como livre pelas próprias escolhas e argumentações em que elas podem ou devem basear-se; hoje é mais cômodo, aparentemente, esconder-se por detrás de um grupo ou instituição, seja ela qual for, para defender crença ou código de normas qualquer, e para, independente da convicção própria a respeito, somar-se um rebanho qualquer para defender uma bandeira desta ou daquela cor. 

Hoje, assumir um comportamento como o dos personagens de Hotel Lancaster é, nesse sentido, anacrônico também por ninguém mais parecer ter coragem de assumir seu próprio destino, seja com base na satisfação pura e simples, ou com base em código pessoal, e com ele as consequências inelutáveis de sofrimento e prazer ou mesmo de derrota. Hoje, assumir-se também como derrotado virou quase um ato de suprema inadequação a uma sociedade que só visa, aparentemente, uma felicidade totalmente questionável. Daí que hoje ter opinião, qualquer que ela seja, parece ser quase revolucionário. E segui-la, então, um ato de quase rebeldia, a ser punida inclusive com a morte física ou social.

Por outro lado, num sentido no qual pretendo aprender ainda bastante coisa, porque realmente é meu ponto fraco, no SENTIDO das movimentações dos atores, em alguns gestos e coloridos a frases ou acepções físicas, também senti certo cansaço nesta encenação de Hotel Lancaster. Esse negócio de colorir com um espocar dos dedos da mão direita (acho que direita) uma conquista – no caso, a vinda da “irmã” do Carca, no caso, a Débora – me parece tão velho que nem me causa mais qualquer comoção. Ao contrário, por exemplo, de muitas das marcações fechadas do Napão, que a qualquer momento parece surpreender o espectador com sua insistência em encher o saco, somada à sua quase ingenuidade e sua expressiva falta de noção. Parece-me um sujeito que pega o ônibus Campo Limpo – de nome Felipe – que parece algo tão estrambótico para qualquer um que vezes seguidas é expulso dos ônibus que pega, só porque insiste em declamar seu amor ao rock n’roll. Não sei se foi porque eu já havia assistido à peça várias vezes – mas algo do gestual pareceu-me datado e meio sem graça – opinião que não devem ter vários dos espectadores, que pareciam vibrar realmente com aquilo que viam à sua frente.

Tendo a dizer com tudo isto então o seguinte: 1) o realismo parece haver mudado de amplitude ou mesmo de caráter desde que a peça foi criada até hoje; 2) os personagens da peça, assim como seus recursos, parecem meio datados e até anacrônicos, mas fato é que, no atual momento politicamente correto, podem ser até mais necessários dos que nunca; 3) a simples defesa de uma posição desse tipo, hoje, em que praticamente ninguém sustenta opinião alguma distinta dos seus amigos ou amizades de facebook, parece algo quase revolucionário; 4) algo do gestual e dos apetrechos utilizados na peça parecem-me meio datados. Isso significa que não gostei da peça? Qual nada, adorei. Como devo continuar adorando. Um clássico.



Contreraman

E as coisas que continuam já se foram. E as que se foram continuam para nunca terminarem. Até um fim que nunca vem..

Fonte: OBVIOUS

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