PICICA: "''É uma pena, mas a posição da "vivência" é pequeno burguesa sim.
Por que? Simplesmente porque é uma posição individualista. Em qualquer
situação, basta apelar pra sua "vivência", pra percepções privadas, e
você já garante o crédito da voz, sem ter que passar por elaboração
nenhuma. Fim de jogo. A "vivência" é um termo de sabotagem da elaboração
de uma percepção coletiva: como é que eu poderia tornar uma elaboração
comum, ou compartilhada, uma percepção e uma sensação que é, no fim de
tudo, privada e incompartilhável? Com ela, só resta que quem está em
volta fique quieto e bata palmas - "sua majestade, a vivência" -, e de
repente qualquer questão passa a ser cortina de fumaça pra esconder
posições individuais, personalistas ou burocráticas."
EM TEMPO: A dica do texto é de Ricardo Pitta.
''SUA MAJESTADE, A VIVÊNCIA''''É uma pena, mas a posição da "vivência" é pequeno burguesa sim.
Por que? Simplesmente porque é uma posição individualista. Em qualquer situação, basta apelar pra sua "vivência", pra percepções privadas, e você já garante o crédito da voz, sem ter que passar por elaboração nenhuma. Fim de jogo. A "vivência" é um termo de sabotagem da elaboração de uma percepção coletiva: como é que eu poderia tornar uma elaboração comum, ou compartilhada, uma percepção e uma sensação que é, no fim de tudo, privada e incompartilhável? Com ela, só resta que quem está em volta fique quieto e bata palmas - "sua majestade, a vivência" -, e de repente qualquer questão passa a ser cortina de fumaça pra esconder posições individuais, personalistas ou burocráticas.
Bem entendido, não é o caso, de jeito nenhum, de recusar a
especificidade de certas posições, a autonomia organizativa em qualquer
espaço, ou mesmo de ignorar a necessidade da garantia e da prioridade de
escuta e foco de um discurso em espaços coletivos. E, em todo caso, é
sempre de uma experiência singular que se deve partir, não tem outro
jeito. Não é nem o caso de não fazer com que essas experiências
singulares possam constituir o elemento "protagonista" de determinada
luta. Não é disso que se trata. Uma "vivência" não é uma experiência.
Uma "vivência", um vivido, é uma pequena propriedade privada,
indiscutível, incapaz de ser elaborada coletivamente - por muitas vezes,
mesmo entre quem supostamente tem uma "vivência" parecida - e que se
impõe só pela força de ter sido... "vivenciada". Eu adorava a época em
que todas essas pautas eram posicionadas por um coletivo x ou y,
sinceramente. Mas de repente, os coletivos foram pro espaço, e agora o
que tem que se ver são é agrupamentos de indivíduos. Quando, por
exemplo, um sujeito qualquer vem me dizer que não precisa estudar por
que tem a sua "vivência", o sujeito me exprime o seguinte: "não me
interessa que exista divisão social do trabalho manual e do intelectual,
não me interessa que seja preciso elaborar coletivamente uma
experiência e fazer dela um sujeito político, o que me interessa é que
'eu' seja ouvido e consiga ter uma influência tal na definição das
linhas de ação", etc. Viva a incapacidade de gestão das lutas.
Daqui, do lado da linha em que as pessoas dizem que são materialistas, ou revolucionárias, ou simplesmente comunas - esse lado da linha que parece ter perdido - nós temos o costume de tentar entender as coisas sempre com um olho nas suas condições de reprodução material e social. E, francamente, desse lado da linha, essa filosofia da consciência de banca de jornal só pode aparecer como expressão no discurso de uma experiência social individualizante, hedonista, que atribui quase tudo à "personalidade" e quase nada ao grupo: mentalidade de self made man, a.k.a. ideologia pequeno burguesa, muito comum não só na pequena burguesia de fato, mas também nos estratos superiores - pela renda - da classe trabalhadora. E é aqui que a coisa fica feia:
Se regredimos pra essa política pré-materialista, pra esse império da consciência e da representação, é a "vivência", a consciência privada que determina toda e qualquer posição política. Por exemplo: se eu me sinto, "me vivencio" como um militante revolucionário, só posso ser um, ainda que minhas práticas sociais sejam outras, como, por exemplo, ser base de sustentação de um partido reformista, rebaixado e recuado. E a minha "consciência" vale mais do que qualquer coisa - e, de novo, mais do que qualquer elaboração coletiva - para definir o que é ou não feito. Entenda quem puder como é que isso pode passar por coletivismo. É no mesmo movimento que todo ato de crítica é silenciado: já que toda a "vivência" é de alguém por definição, "minha" ou "sua", toda crítica vai necessariamente ser entendida como uma crítica pessoal, um ataque direto. E ainda que grande parte delas tome esse sentido, no limite é a própria autocrítica que fica inviável: se o parâmetro da minha prática social é, antes de tudo, minha percepção de mim mesmo e só, obviamente minha prática sempre vai ser a melhor, e qualquer tentativa de rever isso seria ir contra "eu mesmo". No máximo uma revisãozinha privada, mas autocrítica pública, nem pensar.''
(Paulo Henrique Z. Flores)
Fonte: UNIVERSIDADE INDÍGENA ALDEIA MARACANÃ
Daqui, do lado da linha em que as pessoas dizem que são materialistas, ou revolucionárias, ou simplesmente comunas - esse lado da linha que parece ter perdido - nós temos o costume de tentar entender as coisas sempre com um olho nas suas condições de reprodução material e social. E, francamente, desse lado da linha, essa filosofia da consciência de banca de jornal só pode aparecer como expressão no discurso de uma experiência social individualizante, hedonista, que atribui quase tudo à "personalidade" e quase nada ao grupo: mentalidade de self made man, a.k.a. ideologia pequeno burguesa, muito comum não só na pequena burguesia de fato, mas também nos estratos superiores - pela renda - da classe trabalhadora. E é aqui que a coisa fica feia:
Se regredimos pra essa política pré-materialista, pra esse império da consciência e da representação, é a "vivência", a consciência privada que determina toda e qualquer posição política. Por exemplo: se eu me sinto, "me vivencio" como um militante revolucionário, só posso ser um, ainda que minhas práticas sociais sejam outras, como, por exemplo, ser base de sustentação de um partido reformista, rebaixado e recuado. E a minha "consciência" vale mais do que qualquer coisa - e, de novo, mais do que qualquer elaboração coletiva - para definir o que é ou não feito. Entenda quem puder como é que isso pode passar por coletivismo. É no mesmo movimento que todo ato de crítica é silenciado: já que toda a "vivência" é de alguém por definição, "minha" ou "sua", toda crítica vai necessariamente ser entendida como uma crítica pessoal, um ataque direto. E ainda que grande parte delas tome esse sentido, no limite é a própria autocrítica que fica inviável: se o parâmetro da minha prática social é, antes de tudo, minha percepção de mim mesmo e só, obviamente minha prática sempre vai ser a melhor, e qualquer tentativa de rever isso seria ir contra "eu mesmo". No máximo uma revisãozinha privada, mas autocrítica pública, nem pensar.''
(Paulo Henrique Z. Flores)
Fonte: UNIVERSIDADE INDÍGENA ALDEIA MARACANÃ
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