PICICA: "Se existe um filme impossível de classificar, é o tríptico As mil e uma noites,
do português Miguel Gomes, com sua mistura desenvolta e descarada de
gêneros, assuntos e estilos. Se existe uma obra-prima produzida pelo
cinema no ano de 2015, é também As mil e uma noites, cuja
primeira parte, “O inquieto”, acaba de entrar em cartaz nas melhores
salas do ramo. As outras duas partes devem estrear na próxima semana."
Mundo fora dos eixos
POR José Geraldo Couto José Geraldo Couto: no cinema | 13.11.2015
Se existe um filme impossível de classificar, é o tríptico As mil e uma noites,
do português Miguel Gomes, com sua mistura desenvolta e descarada de
gêneros, assuntos e estilos. Se existe uma obra-prima produzida pelo
cinema no ano de 2015, é também As mil e uma noites, cuja
primeira parte, “O inquieto”, acaba de entrar em cartaz nas melhores
salas do ramo. As outras duas partes devem estrear na próxima semana.
A estrutura do clássico árabe que dá nome ao filme – Xerazade desfiando a cada noite relatos fascinantes para o sultão de modo a adiar sua execução – serve aqui de fio condutor para uma leitura muito pessoal da história recente do mundo, em especial de Portugal. É uma visão ao mesmo tempo contundente, lírica, trágica e cômica.
A liberdade narrativa de Miguel Gomes – já atestada em Aquele querido mês de agosto e Tabu – atinge aqui um grau radical e absoluto. O “primeiro volume” começa como um documentário urgente, militante, sobre a privatização de estaleiros portugueses e a consequente demissão em massa de trabalhadores. Estabelece-se assim o tema que será central ao tríptico todo: o estrangulamento da sociedade portuguesa pela política de austeridade ditada pelos chefões da União Europeia (na verdade, pelos tubarões do grande capital financeiro).
O documental e o insólito
Aos poucos, o insólito infiltra-se no registro documental com a introdução de um tema paralelo: o ataque de vespas agressivas contra as colmeias produtoras de mel, o que leva os apicultores à perplexidade e ao desespero. A natureza em desequilíbrio, o mundo fora dos eixos: para falar de uma realidade assim delirante, Miguel Gomes adotará uma linguagem igualmente delirante. Só que muito mais divertida.
Para uma reunião de emergência numa estalagem à beira-mar, chegam representantes do governo português, do FMI e da União Europeia, montados em camelos como califas e sultões. As discussões em torno da mesa são hilárias. O desbocado representante dos sindicatos solta frases como “Superávit primário é o c’ralho que vos foda”, no delicioso sotaque lusitano. As palavras das autoridades estrangeiras são traduzidas por um intérprete brasileiro com as gírias da atualidade; “Se o plano falhar, vai dar ruim pra galera toda”.
As subversões da cronologia e da geografia (no “volume três” Bagdá é um arquipélago, e não uma cidade encravada no deserto) criam um espaço único de fabulação e pensamento crítico, de poesia e invenção. A todo momento, quando a fantasia voa mais alto, a narrativa a traz de volta ao chão cotidiano, à miudeza da vida na província, às belezas quase anônimas de práticas culturais pré-capitalistas, ou que se desenvolvem à margem da voracidade capitalista.
No “primeiro volume”, por exemplo, há numa aldeia um galo madrugador que, segundo a lenda, fala palavras de gente. Cria-se todo um culto em torno do galo, que no entanto recusa-se a falar diante de autoridades, microfones e câmeras. Nas eleições locais, o galo tem mais votos que os candidatos humanos. No “terceiro volume”, há um concurso clandestino de cantos de tentilhões (pintassilgos), com explicações técnicas detalhadas sobre como capturá-los e treiná-los, trajetórias de vida de alguns criadores legendários, casos de pássaros que morreram de tanto cantar etc.
Essas histórias, segundo Miguel Gomes, são verdadeiras, e vividas no filme por seus próprios protagonistas na “vida real”. (Aqui também há um embaralhamento: Chico Chapas, veterano criador de tentilhões que aparece em seu próprio papel no “volume três”, encarna no “volume dois” o proscrito Simão Sem Tripas, outro personagem real de crônicas de província.)
Sobreposição de signos
Os câmbios de gênero e de ritmo induzem o próprio espectador a uma constante mudança de atitude, a uma qualidade diferente de atenção. Em determinadas passagens há uma sobreposição alucinante de signos aparentemente disparatados. Exemplo: no “terceiro volume”, Xerazade (Crista Alfaiate) sai do palácio para passear num dia de sol e se depara com um bando de salteadores acampados à beira-mar. Cabeludos, desregrados, eles bebem, fumam e fazem amor livremente. Introduzem-se então imagens em preto e branco dos Novos Baianos cantando “Samba da minha terra”, num clima esfuziante e dionisíaco de liberdade. O episódio se encerra de modo cômico e absurdo com um letreiro que diz algo como “Xerazade, o sultão e os salteadores só tinham uma coisa em comum: saudades da Bahia”. A música brasileira, aliás, perpassa as três partes do filme, de Villa-Lobos a Tim Maia e Secos e Molhados.
A esses momentos de saturação, em que o jogo entre imagem, texto e som multiplica as camadas de significação, alternam-se as passagens de atenção contemplativa, de observação de modos de estar no mundo ameaçados pela engrenagem devoradora do mercado. Ao nos causar espanto, riso e revolta com sua visão caleidoscópica da Europa contemporânea (ou ao menos de sua parte mais pobre), Miguel Gomes parece ao mesmo tempo nos dizer que toda a riqueza do mundo não vale o canto de um tentilhão.
É preciso ver as três partes de As mil e uma noites – e torcer para que venham outras. E não se preocupe com a “barreira da língua”: tem legendas.
A estrutura do clássico árabe que dá nome ao filme – Xerazade desfiando a cada noite relatos fascinantes para o sultão de modo a adiar sua execução – serve aqui de fio condutor para uma leitura muito pessoal da história recente do mundo, em especial de Portugal. É uma visão ao mesmo tempo contundente, lírica, trágica e cômica.
A liberdade narrativa de Miguel Gomes – já atestada em Aquele querido mês de agosto e Tabu – atinge aqui um grau radical e absoluto. O “primeiro volume” começa como um documentário urgente, militante, sobre a privatização de estaleiros portugueses e a consequente demissão em massa de trabalhadores. Estabelece-se assim o tema que será central ao tríptico todo: o estrangulamento da sociedade portuguesa pela política de austeridade ditada pelos chefões da União Europeia (na verdade, pelos tubarões do grande capital financeiro).
O documental e o insólito
Aos poucos, o insólito infiltra-se no registro documental com a introdução de um tema paralelo: o ataque de vespas agressivas contra as colmeias produtoras de mel, o que leva os apicultores à perplexidade e ao desespero. A natureza em desequilíbrio, o mundo fora dos eixos: para falar de uma realidade assim delirante, Miguel Gomes adotará uma linguagem igualmente delirante. Só que muito mais divertida.
Para uma reunião de emergência numa estalagem à beira-mar, chegam representantes do governo português, do FMI e da União Europeia, montados em camelos como califas e sultões. As discussões em torno da mesa são hilárias. O desbocado representante dos sindicatos solta frases como “Superávit primário é o c’ralho que vos foda”, no delicioso sotaque lusitano. As palavras das autoridades estrangeiras são traduzidas por um intérprete brasileiro com as gírias da atualidade; “Se o plano falhar, vai dar ruim pra galera toda”.
As subversões da cronologia e da geografia (no “volume três” Bagdá é um arquipélago, e não uma cidade encravada no deserto) criam um espaço único de fabulação e pensamento crítico, de poesia e invenção. A todo momento, quando a fantasia voa mais alto, a narrativa a traz de volta ao chão cotidiano, à miudeza da vida na província, às belezas quase anônimas de práticas culturais pré-capitalistas, ou que se desenvolvem à margem da voracidade capitalista.
No “primeiro volume”, por exemplo, há numa aldeia um galo madrugador que, segundo a lenda, fala palavras de gente. Cria-se todo um culto em torno do galo, que no entanto recusa-se a falar diante de autoridades, microfones e câmeras. Nas eleições locais, o galo tem mais votos que os candidatos humanos. No “terceiro volume”, há um concurso clandestino de cantos de tentilhões (pintassilgos), com explicações técnicas detalhadas sobre como capturá-los e treiná-los, trajetórias de vida de alguns criadores legendários, casos de pássaros que morreram de tanto cantar etc.
Essas histórias, segundo Miguel Gomes, são verdadeiras, e vividas no filme por seus próprios protagonistas na “vida real”. (Aqui também há um embaralhamento: Chico Chapas, veterano criador de tentilhões que aparece em seu próprio papel no “volume três”, encarna no “volume dois” o proscrito Simão Sem Tripas, outro personagem real de crônicas de província.)
Sobreposição de signos
Os câmbios de gênero e de ritmo induzem o próprio espectador a uma constante mudança de atitude, a uma qualidade diferente de atenção. Em determinadas passagens há uma sobreposição alucinante de signos aparentemente disparatados. Exemplo: no “terceiro volume”, Xerazade (Crista Alfaiate) sai do palácio para passear num dia de sol e se depara com um bando de salteadores acampados à beira-mar. Cabeludos, desregrados, eles bebem, fumam e fazem amor livremente. Introduzem-se então imagens em preto e branco dos Novos Baianos cantando “Samba da minha terra”, num clima esfuziante e dionisíaco de liberdade. O episódio se encerra de modo cômico e absurdo com um letreiro que diz algo como “Xerazade, o sultão e os salteadores só tinham uma coisa em comum: saudades da Bahia”. A música brasileira, aliás, perpassa as três partes do filme, de Villa-Lobos a Tim Maia e Secos e Molhados.
A esses momentos de saturação, em que o jogo entre imagem, texto e som multiplica as camadas de significação, alternam-se as passagens de atenção contemplativa, de observação de modos de estar no mundo ameaçados pela engrenagem devoradora do mercado. Ao nos causar espanto, riso e revolta com sua visão caleidoscópica da Europa contemporânea (ou ao menos de sua parte mais pobre), Miguel Gomes parece ao mesmo tempo nos dizer que toda a riqueza do mundo não vale o canto de um tentilhão.
É preciso ver as três partes de As mil e uma noites – e torcer para que venham outras. E não se preocupe com a “barreira da língua”: tem legendas.
José Geraldo Couto
José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.
Fonte: Blog do IMS
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