novembro 27, 2015

O iconoclasta universo de Luis Buñuel. Por Sílvia Marques (OBVIOUS)

PICICA: "Depois de passar mais de dez anos estudando sobre este espanhol irreverente (me desculpem o pleonasmo) me sinto íntima de um artista que morreu aos 83 anos de idade quando eu tinha apenas cinco. Irônico, devastador cruel, doce e afetivo. Sim, Buñuel era um pouco de tudo. Homem ambíguo. Se dizia ateu graças a Deus. Era anticlerical, mas tinha um amigo padre. E a beleza da amizade de ambos consistia no fato de nenhum tentar mudar o outro.

Buñuel, por sua obra, mostrou que cada um tem que viver a sua vida com liberdade, como melhor lhe convém, sem desejar mudar ninguém. Criticava a burguesia embora tenha nascido numa família abastada. Em seu filme O anjo exterminador, de 1962, mostrou a ideia de que o amour-fou era impossível no meio burguês, abarrotado de máscaras sociais.

Por outro lado também não defendia os mendigos e desvalidos, retratando-os como selvagens no filme Viridiana, de 1960. Considerava inútil a caridade cristã, como bem mostrou em Viridiana e Nazarín (1958) Personagens bem intencionados, mas condenados ao fracasso e à ingratidão."

O iconoclasta universo de Luis Buñuel


Este artigo pretende jogar luz sobre um dos maiores artistas da História do Cinema.

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Catherine Deneuve em A bela da tarde

Depois de passar mais de dez anos estudando sobre este espanhol irreverente ( me desculpem o pleonasmo) me sinto íntima de um artista que morreu aos 83 anos de idade quando eu tinha apenas cinco. Irônico, devastador cruel, doce e afetivo. Sim, Buñuel era um pouco de tudo. Homem ambíguo. Se dizia ateu graças a Deus . Era anticlerical, mas tinha um amigo padre. E a beleza da amizade de ambos consistia no fato de nenhum tentar mudar o outro.

Buñuel, por sua obra, mostrou que cada um tem que viver a sua vida com liberdade, como melhor lhe convém, sem desejar mudar ninguém. Criticava a burguesia embora tenha nascido numa família abastada. Em seu filme O anjo exterminador, de 1962, mostrou a ideia de que o amour-fou era impossível no meio burguês, abarrotado de máscaras sociais.

Por outro lado também não defendia os mendigos e desvalidos, retratando-os como selvagens no filme Viridiana, de 1960. Considerava inútil a caridade cristã, como bem mostrou em Viridiana e Nazarín (1958) Personagens bem intencionados, mas condenados ao fracasso e à ingratidão.

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A bela atriz mexicana Silvia Pinal, em Viridiana, vive uma bem intencionada noviça que é manipulada por todos.

Buñuel destruiu qualquer ícone em seus filmes. Era contra as instituições, embora tenha sido casado a vida inteira com a mesma mulher. Era contra qualquer tipo de instituição e viveu exilado da Espanha, sua terra amada, quando o franquismo tomou o poder.
Buñuel ficou famoso por ser o mestre do surrealismo no cinema e produziu dois filmes tipicamente surreais com Salvador Dalí: Um cão andaluz e A idade do ouro. Seus dois primeiros filmes rodados respectivamente em 1928 e 1930. O primeiro fala principalmente sobre a incomunicabilidade entre homens e mulheres, tema que ele resgatará magistralmente em seu último filme : Esse obscuro objeto do desejo. O segundo fala dos empecilhos que a sociedade coloca para os casais que querem viver o amour-fou.

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Cena tragicômica de Esse obscuro objeto do desejo

Embora tenha usado técnicas surrealistas em toda a sua filmografia ( às vezes de forma mais direta e outras de maneira mais indireta) Buñuel foi muito mais do que um surrealista, um grande cineasta ou um grande esteta. Buñuel foi um grande e espetacular filósofo que formulou conceitos vitais na forma de imagens.

Seu estilo cinematográfico era sóbrio e elaboradíssimo. Era elaborado pela escassez de recursos técnicos e não pelo excesso. Ele limpava as imagens ao máximo afim de captar o mais essencial das suas ideias. Evitava a trilha sonora ao máximo pois queria evitar a todo custo a catarse. Raros filmes contam com música e quase sempre elas aparecem de forma incidental e bem trabalhada.

Para o cineasta espanhol Luis Buñuel não havia diferença entre sonhar e viver. Por tal razão, em seus filmes, não demarcava com técnicas cinematográficas, os sonhos e lembranças dos personagens. ( MARQUES, 2013, disponível em: http://revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/view/122)

Em Viridiana, por exemplo, ele abre o filme com Aleluia de Handel e o encerra com um rock in roll. A noviça que quer salvar o mundo começa a entender que a vida precisa ser vivida no dia a dia, sem grandes ideais e com pequenos prazeres.

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A desiludida noviça aceita "jogar cartas" com seu primo e a empregada da casa.
 
Buñuel acreditava no trabalho por prazer. Desprezava o nosso sistema de trabalho que escraviza milhares de pessoas em empregos desinteressantes. Tal ideia foi bem trabalhada no filme Tristana , de 1970. O personagem de Dom Lope , interpretado por Fernando Rey, afirma viver mal ( com pouco dinheiro) mas não trabalha. Ele defende o trabalho que dignifica o homem. O trabalho com sentido, com significado.

Em O fantasma da liberdade ( 1974) ele fez um filme mais abertamente surrealista onde coloca diversas convenções em xeque e mostra o ridículo da vida cotidiana. Filme que caminha na mesma direção é O discreto charme da burguesia, em que os amigos não conseguem se reunir para um jantar. Nesta obra, em uma das cenas, é mostrado um bispo que trabalha como jardineiro na casa de um família burguesa. Durante o franquismo na Espanha, o alto clero se uniu à ditadura. Nazarín já representava o padre descalço que ajudava a todos e apenas era maltratado. Nazarín representava o cristianismo verdadeiro para Buñuel.

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Inusitada cena de O fantasma da liberdade.

Em A bela da tarde, provavelmente o mais famoso filme de Buñuel, protagonizado pela bela e enigmática Catherine Deneuve, ele vai fundo na instituição matrimonial e no mundo dos desejos. Séverine dissocia amor espiritual do carnal. O filme pode ser visto como uma trama banal sobre uma mulher casada que passa as tardes em um bordel se prostituindo por prazer. Mas o filme vai muito além disso. Me arrisco a dizer algo perigoso. Me arrisco a dizer que este é o mais complexo filme do cineasta pois ele pode ser lido de três formas diferentes:

1. Uma dona de casa que se prostitui ( leitura mais óbvia)

2. Uma dona de casa que se imagina como prostituta ( leitura interessante)

3. Uma prostituta que se imagina como dona de casa ( leitura instigante, mas pouco provável, se analisarmos a obra do cineasta em conjunto)

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Séverine com seu marido em uma das fantasias da protagonista.

Buñuel falava sobre o irracional, o incompreensível, o inexplicável de uma forma racional. 

Compreender Buñuel é entrar num mundo onírico, onde nem tudo pode ser explicado ou entendido racionalmente. É o mundo das pulsões , dos desejos submersos , do irracional e ilógico. È o mundo das contestações também, da feroz crítica às instituições , ao automatismo promovido pelas mesmas que retira a espontaneidade da vida e das relações humanas. Buñuel defendia o trabalho por prazer , o prazer de um modo geral, a e a aceitação das pessoas como elas são. Defendia principalmente os gestos espontâneos oriundos da vida onírica. ( MARQUES, 2013, disponível em: http://revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/view/122) 

O filme de Buñuel que me fez decidir analisá-lo no mestrado foi Esse obscuro objeto do desejo. O filme foi baseado num romance francês intitulado A mulher e o fantoche. O cineasta escalou duas lindas atrizes ( a espanhola Angela Molina e a francesa Carole Bouquet) para viver Conchita, uma mulher intrigante que transformará a vida de um burguês de meia idade num verdadeiro inferno açucarado. Conchita me parece a representação da própria Espanha casta e libertina, onde crucifixos e vibradores convivem pacificamente.

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Angela Molina, o lado mais "quente" de Conchita.

Infelizmente, cineastas como Buñuel são pouco conhecidos do grande público. Nossas escolas deveriam oferecer educação cinematográfica como ensinam Literatura. Nossas professoras de Literatura nos indicam Machados de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, entre outras preciosidades. Mas quem indica bons filmes? Quem nos ensina a ver bons filmes?

De vez em quando um corajoso professor de História, Literatura ou Filosofia se arrisca a exibir um filme como A onda ou Sociedade dos poetas mortos. Mas tais iniciativas são esporádicas. Deveríamos aprender a gostar de filmes capazes de transformar nossos pensamentos. Nada contra cinema entretenimento. Às vezes é gostoso se sentar diante da TV com um grande pacote de pipoca sem pensar em nada importante. Porém, o cinema vai muito além da diversão. A pena é que poucos sabem disso e muitos desejam que a maioria continue sem saber. 

Para quem pensa que todo filme inteligente é chato, pode ter uma surpresa. Para quem deseja mergulhar no universo de Buñuel, eu indico que comece com Esse obscuro objeto do desejo. Inteligência e humor dosados na medida certa.




Sílvia Marques

Paulistana, escritora, idealista, bacharel em Cinema, cinéfila, professora universitária com alma de aluna, doutora em Comunicação e Semiótica, autodidata na vida, filósofa de botequim, amante das artes , da boa mesa, dos vinhos, de papos loucos e ideias inusitadas. Serei uma atleta no dia em que levantamento de xícara de café se tornar modalidade esportiva. Sim, eu acredito realmente que um filme possa mudar a sua vida! Autora do blog Garota desbocada..

Fonte: OBVIOUS

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