PICICA: "A melancolia não está no texto, embora haja ali desejo e frustração,
desejo e luto, mas um luto que apenas precede o renascimento de mais
desejo e que serve para repor forças antes de retomar o mesmo desejo de
sempre. A melancolia da montagem de Rigola, ao contrário do luto em
Lorca, corresponde a um desencanto de época, a uma releitura do texto
por olhos não só contemporâneos mas sobretudo europeus. É uma leitura
marcada pela perplexidade diante do que já não se consegue compreender,
diante da complexidade de contradições e de paradoxos que assolam e
bombardeiam o pensamento e que terminam por paralisá-lo. A melancolia da
montagem corresponde a um pensamento exausto, que se recolhe e se
retrai diante do mundo e já não tem o que propor além de girar em
círculos sobre si mesmo, concluindo com a obviedade de que tudo o que se
lê num texto vem da cabeça do autor. Não é uma questão de inteligência
ou de burrice. O espetáculo é deslumbrante. Se só lhe resta essa
explicação tautológica, que já não desafia o público nem o leva a lugar
nenhum, é porque lhe faltam forças para explicar. E porque no fundo as
explicações já não explicam coisa nenhuma."
Melancolia da falta de respostas
POR Bernardo Carvalho Bernardo Carvalho | 25.11.2015
Federico García Lorca dizia que sua peça O Público
era irrepresentável. Nem por isso deixaram de contradizê-lo e de
representá-la. Para além do gosto do desafio, há a explicação do cânone.
Lorca é um dos maiores dramaturgos espanhóis do século vinte, um autor
incontornável, e O Público, um texto tão radical quanto
ambíguo, paradoxal e enigmático, a primeira peça na qual o poeta trata
abertamente da homossexualidade. “Minhas primeiras comédias são
irrepresentáveis. (...) E nessas comédias impossíveis, está o meu
verdadeiro propósito”, escreveu em 1936, lançando a provocação e o
desafio, poucos meses antes de ser assassinado por falangistas, aos 38
anos.
Assisti a O Público na semana passada, no Teatro de la Abadía, em Madri, em uma montagem assinada pelo catalão Àlex Rigola. Ouvi falar de encenações anteriores que, marcadas por um teatro mais militante ou mais próximo da performance, tentaram vencer a contradição (de um texto que, além de irrepresentável, investe contra a representação), implicando o próprio público na cena e com isso embaralhando os sentidos e as fronteiras entre teatro e vida. Rigola optou por uma via mais tradicional. O diretor não põe em dúvida as fronteiras do teatro, não questiona a representação. Cria uma espécie de cabaré, de caixa de ressonâncias, onde tudo o que está em cena é apresentado ao público como parte do inconsciente do autor.
É uma interpretação possível, embora tautológica, que poupa ao diretor o esforço de tentar explicar as contradições e os enigmas de um texto que quer escapar à razão sem ter de recorrer a fórmulas conhecidas como a da escrita automática, bem mais funcional no surrealismo francês do que no espanhol. O surrealismo de Lorca é resultado de uma experiência muito mais impura, sincrética e torturada do que a de um cartesianismo à procura de técnicas lúdicas para se libertar dos grilhões da razão.
Rigola não está interessado no desafio que o paradoxo de um texto contra a representação impõe ao ser representado. Simplesmente o ignora, focando tudo no autor. E se por um lado sua interpretação limita a complexidade, reduzindo a compreensão do texto a uma solução um tanto banal (o palco como representação do que se passa na cabeça do autor), por outro ela também lhe dá uma grande liberdade cênica, permitindo que crie sem nenhum pudor um espetáculo no sentido mais completo da palavra, derramando pelo palco uma sensualidade e uma beleza cujo objetivo final é fazer ouvir o texto como um poema, para além da razão, que é uma proposta essencialmente lorquiana: “O teatro que perdurou sempre foi o dos poetas. (...) Não pode haver teatro sem ambiente poético, sem invenção (...). O teatro é a poesia que se levanta do livro e se faz humana. (...) O teatro precisa que os personagens que apareçam em cena estejam vestidos de poesia e que ao mesmo tempo se vejam os ossos e o sangue”, Lorca escreveu em 1935.
Alguns dos atores de Rigola não estão vestidos de nada. Passam a peça inteira nus, entrando e saindo de cena, cobertos de azeite. São os “cavalos”, alegorias do desejo no texto original. O poeta escreveu O Público durante sua temporada em Nova York, em 1929, quando tentava se recuperar de uma desilusão amorosa. “Não estou aqui para entretê-los. (...) Na verdade, vim para lutar. Lutar corpo a corpo com uma massa tranquila. E me defender desse enorme dragão que tenho diante de mim, que pode me devorar com seus trezentos bocejos e suas trezentas cabeças decepcionadas. Essa é a luta, porque quero com veemência me comunicar com vocês, já que vim, já que estou aqui, já que saí por um instante de meu longo silêncio poético e não quero dar-lhes mel, porque só tenho areia”, Lorca disse ao público na célebre conferência que proferiu em Nova York.
O tema do desejo, como frustração e persistência, também atravessa os poemas de Poeta em Nova York, provavelmente o livro mais surpreendente do autor, escrito na mesma época. A insistência de Rigola nos corpos nus tem a ver com o desejo posto no centro da peça, mas acaba dando a entender que o que está representado ali é um único grande corpo, que abarca e sintetiza todos os outros, suas contradições e seus desejos, em uma única mente: o autor.
A consequência mais surpreendente dessa interpretação tautológica não é a conclusão óbvia de que tudo o que se vê em cena faz parte dos fantasmas e dos desejos do autor, que o palco é a representação alegórica de sua mente. A consequência mais surpreendente é a melancolia que contamina tudo o que em princípio não tinha nada de melancólico, a começar pelo desejo.
A melancolia não está no texto, embora haja ali desejo e frustração, desejo e luto, mas um luto que apenas precede o renascimento de mais desejo e que serve para repor forças antes de retomar o mesmo desejo de sempre. A melancolia da montagem de Rigola, ao contrário do luto em Lorca, corresponde a um desencanto de época, a uma releitura do texto por olhos não só contemporâneos mas sobretudo europeus. É uma leitura marcada pela perplexidade diante do que já não se consegue compreender, diante da complexidade de contradições e de paradoxos que assolam e bombardeiam o pensamento e que terminam por paralisá-lo. A melancolia da montagem corresponde a um pensamento exausto, que se recolhe e se retrai diante do mundo e já não tem o que propor além de girar em círculos sobre si mesmo, concluindo com a obviedade de que tudo o que se lê num texto vem da cabeça do autor. Não é uma questão de inteligência ou de burrice. O espetáculo é deslumbrante. Se só lhe resta essa explicação tautológica, que já não desafia o público nem o leva a lugar nenhum, é porque lhe faltam forças para explicar. E porque no fundo as explicações já não explicam coisa nenhuma.
Assisti a O Público na semana passada, no Teatro de la Abadía, em Madri, em uma montagem assinada pelo catalão Àlex Rigola. Ouvi falar de encenações anteriores que, marcadas por um teatro mais militante ou mais próximo da performance, tentaram vencer a contradição (de um texto que, além de irrepresentável, investe contra a representação), implicando o próprio público na cena e com isso embaralhando os sentidos e as fronteiras entre teatro e vida. Rigola optou por uma via mais tradicional. O diretor não põe em dúvida as fronteiras do teatro, não questiona a representação. Cria uma espécie de cabaré, de caixa de ressonâncias, onde tudo o que está em cena é apresentado ao público como parte do inconsciente do autor.
É uma interpretação possível, embora tautológica, que poupa ao diretor o esforço de tentar explicar as contradições e os enigmas de um texto que quer escapar à razão sem ter de recorrer a fórmulas conhecidas como a da escrita automática, bem mais funcional no surrealismo francês do que no espanhol. O surrealismo de Lorca é resultado de uma experiência muito mais impura, sincrética e torturada do que a de um cartesianismo à procura de técnicas lúdicas para se libertar dos grilhões da razão.
Rigola não está interessado no desafio que o paradoxo de um texto contra a representação impõe ao ser representado. Simplesmente o ignora, focando tudo no autor. E se por um lado sua interpretação limita a complexidade, reduzindo a compreensão do texto a uma solução um tanto banal (o palco como representação do que se passa na cabeça do autor), por outro ela também lhe dá uma grande liberdade cênica, permitindo que crie sem nenhum pudor um espetáculo no sentido mais completo da palavra, derramando pelo palco uma sensualidade e uma beleza cujo objetivo final é fazer ouvir o texto como um poema, para além da razão, que é uma proposta essencialmente lorquiana: “O teatro que perdurou sempre foi o dos poetas. (...) Não pode haver teatro sem ambiente poético, sem invenção (...). O teatro é a poesia que se levanta do livro e se faz humana. (...) O teatro precisa que os personagens que apareçam em cena estejam vestidos de poesia e que ao mesmo tempo se vejam os ossos e o sangue”, Lorca escreveu em 1935.
Alguns dos atores de Rigola não estão vestidos de nada. Passam a peça inteira nus, entrando e saindo de cena, cobertos de azeite. São os “cavalos”, alegorias do desejo no texto original. O poeta escreveu O Público durante sua temporada em Nova York, em 1929, quando tentava se recuperar de uma desilusão amorosa. “Não estou aqui para entretê-los. (...) Na verdade, vim para lutar. Lutar corpo a corpo com uma massa tranquila. E me defender desse enorme dragão que tenho diante de mim, que pode me devorar com seus trezentos bocejos e suas trezentas cabeças decepcionadas. Essa é a luta, porque quero com veemência me comunicar com vocês, já que vim, já que estou aqui, já que saí por um instante de meu longo silêncio poético e não quero dar-lhes mel, porque só tenho areia”, Lorca disse ao público na célebre conferência que proferiu em Nova York.
O tema do desejo, como frustração e persistência, também atravessa os poemas de Poeta em Nova York, provavelmente o livro mais surpreendente do autor, escrito na mesma época. A insistência de Rigola nos corpos nus tem a ver com o desejo posto no centro da peça, mas acaba dando a entender que o que está representado ali é um único grande corpo, que abarca e sintetiza todos os outros, suas contradições e seus desejos, em uma única mente: o autor.
A consequência mais surpreendente dessa interpretação tautológica não é a conclusão óbvia de que tudo o que se vê em cena faz parte dos fantasmas e dos desejos do autor, que o palco é a representação alegórica de sua mente. A consequência mais surpreendente é a melancolia que contamina tudo o que em princípio não tinha nada de melancólico, a começar pelo desejo.
A melancolia não está no texto, embora haja ali desejo e frustração, desejo e luto, mas um luto que apenas precede o renascimento de mais desejo e que serve para repor forças antes de retomar o mesmo desejo de sempre. A melancolia da montagem de Rigola, ao contrário do luto em Lorca, corresponde a um desencanto de época, a uma releitura do texto por olhos não só contemporâneos mas sobretudo europeus. É uma leitura marcada pela perplexidade diante do que já não se consegue compreender, diante da complexidade de contradições e de paradoxos que assolam e bombardeiam o pensamento e que terminam por paralisá-lo. A melancolia da montagem corresponde a um pensamento exausto, que se recolhe e se retrai diante do mundo e já não tem o que propor além de girar em círculos sobre si mesmo, concluindo com a obviedade de que tudo o que se lê num texto vem da cabeça do autor. Não é uma questão de inteligência ou de burrice. O espetáculo é deslumbrante. Se só lhe resta essa explicação tautológica, que já não desafia o público nem o leva a lugar nenhum, é porque lhe faltam forças para explicar. E porque no fundo as explicações já não explicam coisa nenhuma.
Bernardo Carvalho
Bernardo Carvalho é escritor e jornalista, autor dos livros Nove noites, O filho da mãe e Reprodução, entre out
Fonte: BLOG DO IMS
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