novembro 30, 2015

Capital da solidão. POR José Geraldo Couto (BLOG DO IMS)

PICICA: "Ausência, para dizer resumidamente, é um filme sobre momentos cruciais na formação afetiva, psicológica e moral de um adolescente paulistano de classe média baixa. É também uma pungente reflexão sobre a perda, a solidão, o desamor. O que o torna uma obra notável é o modo como seu diretor, Chico Teixeira (de Criaturas que nasciam em segredo e A casa de Alice), reveste esse drama pessoal com um lirismo urbano quase documental."


Capital da solidão

POR José Geraldo Couto José Geraldo Couto: no cinema | 27.11.2015


Ausência, para dizer resumidamente, é um filme sobre momentos cruciais na formação afetiva, psicológica e moral de um adolescente paulistano de classe média baixa. É também uma pungente reflexão sobre a perda, a solidão, o desamor. O que o torna uma obra notável é o modo como seu diretor, Chico Teixeira (de Criaturas que nasciam em segredo e A casa de Alice), reveste esse drama pessoal com um lirismo urbano quase documental.


Numa espécie de prólogo anterior aos créditos iniciais, vemos um homem chegar com uma caminhonete de fretes a uma casa deserta e retirar dali seus pertences. Está abandonando a mulher, a casa, a família. Esse homem não aparecerá mais – e sua ausência, espelhada em uma porção de outras, impregnará todo o restante do filme.

Relações truncadas

Na narrativa aparentemente episódica e distendida que se seguirá, acompanharemos Serginho (o excelente Matheus Fagundes, premiado no Festival do Rio) em uma série de relações truncadas, desviadas, incompletas: com a mãe depressiva e alcoólatra (Gilda Nomacce), com o amigo Mudinho (Thiago de Matos), com o tio que explora seu trabalho na feira livre, com a quase namorada Silvinha (Andreia Mayumi) etc.

O vínculo mais importante e complexo de todos talvez seja o do garoto com um professor solitário (Irandhir Santos) a quem ele leva regularmente produtos da feira. Estabelece-se entre eles algo entre a amizade, a relação paternal e um difuso erotismo. Manter o equilíbrio e a ambiguidade entre essas várias dimensões é algo que só se consegue graças à competência extrema dos atores e à delicadeza da direção.

Dito isso, não chegamos ainda àquela que é, a meu ver, a qualidade mais singular de Ausência, a saber: sua esquiva estrutura narrativa, que transmite uma aparência de naturalidade, de espontaneidade, de captação direta do real, quando na verdade é de uma construção rigorosa, em que cada cena e cada diálogo servem à expressão de seu motivo central: o desamparo.

A ideia (ou antes a sensação) de falta, de incompletude, está incorporada na própria forma lacunar do relato, em que cada cena parece já começar na metade, in media res, como se uma câmera escondida flagrasse uma ação em andamento. Em grande parte das tomadas, os personagens são ocasionalmente cobertos por pessoas e objetos, bem como suas vozes se entrecruzam com os sons ambientes.



Fundo e figura

O resultado disso é que a cidade respira e pulsa no filme, como um ser vivo, múltiplo e por vezes monstruoso. Se a São Paulo que costumamos ver no cinema é a das periferias miseráveis ou a dos jardins de classe média alta, aqui a ambientação é a dos bairros operários quase centrais, como a Mooca, com suas casas modestas, suas velhas ruas de paralelepípedos, suas vias expressas, seus terrenos baldios.

É por esse território heterogêneo que Serginho se desloca a pé, de bicicleta ou puxando um carrinho de verduras. Planos abertos mostram calçadas, pontes, passarelas e viadutos como ilhas cercadas de automóveis por todos os lados. O próprio espaço urbano, como os afetos que o habitam, aparece truncado, provisório, inconcluso. Fundo e figura se fundem de uma maneira rara em nosso cinema.

Uma tragédia se esboça, parece prestes a eclodir, mas não se cumpre. A ênfase melodramática não caberia nesse filme quase sem música, dramaticamente enxuto, em que a emoção brota justamente daquilo que não está, que não se encontra, que se perdeu.

O tempo e os fantasmas

Entre os vários filmes que estão entrando em cartaz merecem destaque também o japonês Para o outro lado, de Kiyoshi Kurosawa, e o relançamento em cópia restaurada de Morangos silvestres, de Ingmar Bergman.

O primeiro é uma insólita história de amor e fantasmas, na qual vivos e mortos interagem de forma mais ou menos natural, seguindo o que parece ser uma tradição da cultura japonesa, ou pelo menos de seu cinema, uma extrema leveza no trato da vida além-túmulo.


Essa faculdade do cinema de instaurar um espaço-tempo próprio, avesso às leis da física e à cronologia, impera também em Morangos silvestres (1957), jornada de um homem idoso (Victor Sjöström) pelos labirintos da própria memória. É uma das obras-primas de Bergman, o que vale dizer que é uma das grandes belezas que o cinema produziu. Aqui, como aperitivo, a sequência antológica do sonho do protagonista:




José Geraldo Couto

José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.

Fonte: Blog do IMS

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