PICICA: "Quase vinte anos depois de filmado, entra finalmente em cartaz Chatô, o rei do Brasil,
longa-metragem de estreia de Guilherme Fontes. Não cabe aqui falar
sobre os percalços e descaminhos da produção, mas apenas observar o
resultado, isto é, o filme que agora chega às telas, e cotejá-lo um
pouco com o cinema que se tem feito hoje no Brasil, sobretudo as
cinebiografias e produções de enfoque histórico."
Chatô, réu do Brasil
POR José Geraldo Couto José Geraldo Couto: no cinema | 20.11.2015
Quase vinte anos depois de filmado, entra finalmente em cartaz Chatô, o rei do Brasil,
longa-metragem de estreia de Guilherme Fontes. Não cabe aqui falar
sobre os percalços e descaminhos da produção, mas apenas observar o
resultado, isto é, o filme que agora chega às telas, e cotejá-lo um
pouco com o cinema que se tem feito hoje no Brasil, sobretudo as
cinebiografias e produções de enfoque histórico.
Desnecessário dizer que Francisco de Assis Chateaubriand (vivido no filme por Marco Ricca) foi o grande magnata da imprensa brasileira entre o final dos anos 1930 e início dos 60, a ponto de ser chamado, por uma analogia um tanto preguiçosa, de “cidadão Kane brasileiro”.
Documento e paródia
Do ponto de vista cinematográfico, o paralelo com Kane talvez seja interessante. A obra-prima de Orson Welles praticamente começa com um falso documentário sobre seu controvertido personagem. O filme de Guilherme Fontes começa com uma paródia de programa televisivo de auditório (o “julgamento público” de Chateaubriand), que serve como seu presente narrativo, com a trajetória do protagonista sendo mostrada fragmentariamente em retrospecto. Ou seja: Chatô, desde o início, coloca-se sob o signo satírico e debochado da chanchada.
Com essa opção, o diretor elude habilmente as armadilhas da reconstituição histórica, da “fidelidade biográfica”, da verossimilhança expositiva. É, desde logo, uma leitura pessoal, livre, jocosa e em grande medida arbitrária da vida do personagem, embora se baseie em fatos narrados no livro-reportagem de Fernando Morais. Trafega livremente entre gêneros: musical, comédia, drama de época, policial noir.
A embocadura adotada permite, por exemplo, que Getúlio Vargas – chefe político com quem Chatô teve uma relação próxima e conturbada – seja encarnado por Paulo Betti sem nenhuma preocupação mimética (ao contrário de Tony Ramos no longa Getúlio), a não ser pela adoção de um caricatural sotaque gaúcho.
Pois bem. O que resulta dessa sem-cerimônia toda? Uma narrativa divertida e vivaz, com cores fortes, caracterizações saborosas (a melhor delas de Andrea Beltrão como socialite e amante ao mesmo tempo de Getúlio e Chatô) e montagem vibrante. Apesar de alguma irregularidade, momentos frouxos e um bocado de dispersão, é diversão garantida.
Elo perdido do humor
Referi acima que se trata de uma chanchada, pelo espírito debochado com que encara os fatos, o país e a própria representação cinematográfica. Mas, sendo uma chanchada realizada literalmente em outro século, ela nos chega hoje com um sabor quase nostálgico, por ser anterior à contaminação do humor do nosso cinema pelo padrão televisivo global (o que chamamos, erroneamente, de “globochanchada”). É quase um elo perdido entre a chanchada propriamente dita e o que poderia ter sido uma comédia popular se o cinema brasileiro não tivesse se elitizado e encaretado tanto.
Chegamos à imagem de Assis Chateaubriand construída pelo filme. O Chatô vivido por Marco Ricca é um poço de contradições (arcaico e modernizador, provinciano e cosmopolita, brutal e sedutor, grosseirão e patrocinador da arte mais refinada). Mais que isso, ele concentra traços característicos de boa parte do nosso renitente patriarcado: é machista, ganancioso, autoritário, clientelista. Um exemplo acabado do “homem cordial”, na acepção dada à expressão por Sergio Buarque de Holanda: aquele que desconhece a força impessoal da lei e se move pela emoção, borrando as fronteiras entre o público e o privado.
Chatô não é Charles Foster Kane, mas é José Sarney, é Antonio Carlos Magalhães e é Roberto Marinho, sorridentes coronéis de terno bem cortado e longos abraços, donos de jornais e emissoras de rádio e TV. É, em última instância, o próprio Getúlio Vargas com sua tirania querençosa. De certo modo, é esse persistente tipo da fauna social brasileira, o macho oligarca, que está em julgamento em Chatô.
Nessa comédia descabelada e antropofágica, o que há de mais absurdo, de mais inverossímil, é justamente o que aconteceu de fato, é a “realidade”, como o decreto baixado por Getúlio Vargas para que Chatô tivesse o direito ao “pátrio poder” sobre a filha e a tirasse de sua segunda mulher (Leandra Leal no filme). No Brasil, o surrealismo tomou o poder faz tempo.
Desnecessário dizer que Francisco de Assis Chateaubriand (vivido no filme por Marco Ricca) foi o grande magnata da imprensa brasileira entre o final dos anos 1930 e início dos 60, a ponto de ser chamado, por uma analogia um tanto preguiçosa, de “cidadão Kane brasileiro”.
Documento e paródia
Do ponto de vista cinematográfico, o paralelo com Kane talvez seja interessante. A obra-prima de Orson Welles praticamente começa com um falso documentário sobre seu controvertido personagem. O filme de Guilherme Fontes começa com uma paródia de programa televisivo de auditório (o “julgamento público” de Chateaubriand), que serve como seu presente narrativo, com a trajetória do protagonista sendo mostrada fragmentariamente em retrospecto. Ou seja: Chatô, desde o início, coloca-se sob o signo satírico e debochado da chanchada.
Com essa opção, o diretor elude habilmente as armadilhas da reconstituição histórica, da “fidelidade biográfica”, da verossimilhança expositiva. É, desde logo, uma leitura pessoal, livre, jocosa e em grande medida arbitrária da vida do personagem, embora se baseie em fatos narrados no livro-reportagem de Fernando Morais. Trafega livremente entre gêneros: musical, comédia, drama de época, policial noir.
A embocadura adotada permite, por exemplo, que Getúlio Vargas – chefe político com quem Chatô teve uma relação próxima e conturbada – seja encarnado por Paulo Betti sem nenhuma preocupação mimética (ao contrário de Tony Ramos no longa Getúlio), a não ser pela adoção de um caricatural sotaque gaúcho.
Pois bem. O que resulta dessa sem-cerimônia toda? Uma narrativa divertida e vivaz, com cores fortes, caracterizações saborosas (a melhor delas de Andrea Beltrão como socialite e amante ao mesmo tempo de Getúlio e Chatô) e montagem vibrante. Apesar de alguma irregularidade, momentos frouxos e um bocado de dispersão, é diversão garantida.
Elo perdido do humor
Referi acima que se trata de uma chanchada, pelo espírito debochado com que encara os fatos, o país e a própria representação cinematográfica. Mas, sendo uma chanchada realizada literalmente em outro século, ela nos chega hoje com um sabor quase nostálgico, por ser anterior à contaminação do humor do nosso cinema pelo padrão televisivo global (o que chamamos, erroneamente, de “globochanchada”). É quase um elo perdido entre a chanchada propriamente dita e o que poderia ter sido uma comédia popular se o cinema brasileiro não tivesse se elitizado e encaretado tanto.
Chegamos à imagem de Assis Chateaubriand construída pelo filme. O Chatô vivido por Marco Ricca é um poço de contradições (arcaico e modernizador, provinciano e cosmopolita, brutal e sedutor, grosseirão e patrocinador da arte mais refinada). Mais que isso, ele concentra traços característicos de boa parte do nosso renitente patriarcado: é machista, ganancioso, autoritário, clientelista. Um exemplo acabado do “homem cordial”, na acepção dada à expressão por Sergio Buarque de Holanda: aquele que desconhece a força impessoal da lei e se move pela emoção, borrando as fronteiras entre o público e o privado.
Chatô não é Charles Foster Kane, mas é José Sarney, é Antonio Carlos Magalhães e é Roberto Marinho, sorridentes coronéis de terno bem cortado e longos abraços, donos de jornais e emissoras de rádio e TV. É, em última instância, o próprio Getúlio Vargas com sua tirania querençosa. De certo modo, é esse persistente tipo da fauna social brasileira, o macho oligarca, que está em julgamento em Chatô.
Nessa comédia descabelada e antropofágica, o que há de mais absurdo, de mais inverossímil, é justamente o que aconteceu de fato, é a “realidade”, como o decreto baixado por Getúlio Vargas para que Chatô tivesse o direito ao “pátrio poder” sobre a filha e a tirasse de sua segunda mulher (Leandra Leal no filme). No Brasil, o surrealismo tomou o poder faz tempo.
José Geraldo Couto
José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.
Fonte: BLOG DO IMS
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