novembro 22, 2015

Eles, eu, nós: sobre novembro em Paris. Por Judith Revel (UNINÔMADE)

PICICA: "(...) estamos bem, um pouco arrasados pelo que acontece e pelo modo como as pessoas reagem — um misto de crescente reivindicação nacionalista (a bandeira, a identidade, a raiva e o orgulho…), absoluta cegueira sobre as causas internas e externas que produziram uma geração de garotos assassinos, e tremendo narcisismo pseudo-empático."

Eles, eu, nós: sobre novembro em Paris

Por Judith Revel, na EuroNômade, 19/11/2015 | Trad. UniNômade



Judith Revel

Cara I.,

estamos bem, um pouco arrasados pelo que acontece e pelo modo como as pessoas reagem — um misto de crescente reivindicação nacionalista (a bandeira, a identidade, a raiva e o orgulho…), absoluta cegueira sobre as causas internas e externas que produziram uma geração de garotos assassinos, e tremendo narcisismo pseudo-empático.

A coisa que talvez mais me atingiu, em particular nas redes sociais, que vale também em relação ao que ocorreu depois dos atentados do Charlie Hebdo, em janeiro deste ano, foi a seguinte: passado o primeiro choque, não se trata mais de compreender, mas de “sentir”, antes, de “sentir-se”, sentir-se como uma das vítimas, projetar-se no coração do horror e expressar suas marcas e dores — com tantas variações de apropriação (bastante obscena, eu creio) dos lutos, medos, dores e traumas alheios.

Estou cercada de gente (inclusive amigos, colegas, em suma, pessoas que deveriam por profissão reagir de outra maneira) que, em vez de estarem duramente em choque mas animados do desejo de compreender, enchem o próprio facebook de “abraços coletivos”, relatos de insônia, fotos de vítimas jovens chamadas pelo nome como se fossem parentes, análises detalhadas das várias ansiedades experimentadas, mensagens do tipo: “vocês são nossos vizinhos, e nós superaremos”, “conseguiremos sobreviver”, “estamos muito abatidos mas apenas feridos”, e toda uma variação de narrativas sobre o seu próprio estado psicológico, a sua intimidade, — tudo isso me deixa incomodada.

Gente que não dorme, gente que chora, gente que vomita, gente que te diz “mas poderia ser eu” ou “conheço alguém que conhece alguém que encontrou alguém que morreu”. E que não o faz em nome de uma humanidade comum de que se sentiria participante. Mas o faz como apropriação privada, egoica. Claro que qualquer um de nós poderia ser um deles. Mas isso não aconteceu, exatamente. A nós, justamente por isso, cabe a responsabilidade de compreender, de fazer de maneira que outras matanças do gênero não possam mais acontecer.

Contudo, contrariamente, o que fazemos? Uma explosão de narcisismo que toma o massacre como ocasião de viver um evento “histórico” por meio da pessoa interposta e assim tornar-se finalmente herói da própria vida, sentir-se paradoxalmente qualquer um. É um violentíssimo recuo ao individual, ao ego, ao si mesmo. Uma vez se dizia: “o privado é político”; mas hoje, essa individualização narcisista é a morte da política: qualquer um vive num permanente reality show social — ator de si próprio e da cena atroz de que pretende ser o principal protagonista. Daí, creio, uma semana depois dos atentados,  a dificuldade de escapar do registro afetivo e individual — e mesmo de formas já constituídas e imediatamente disponíveis: a nação precisamente, ou a bandeira, ou a Marselhesa, ou o french way of life etc.

Ontem, assisti com T. a um filme belíssimo (de dois anos atrás, creio: havia sido apresentado em Cannes), sobre garotas das favelas, sobre a energia delas, mas também sobre o seu desespero. Bande de filles, de Céline Sciamma (França, 2014), por acaso você lhe assistiu? Do contrário, procure na internet e veja. No filme, os discursos sobre a resistência à barbárie através da reafirmação do prazer de viver (penso nos apelos de estar na varanda, beber, comer, fazer amor, divertir-se, a ser feliz e lépido, que se multiplicam nestes dias) parecem incrivelmente falsos e também um pouco repulsivos. Claro que resistir à barbárie pode significar isso para nós, parisienses “de dentro”, isto é, de uma cidade em que o preço por metro quadrado varia ao redor de 10 mil euros, e onde temos a possibilidade de experimentar esse prazer de viver de que os coquetéis nas varandas e concertos de rock se tornaram o símbolo. Mas o quanto dele pode ser experimentado por populações inteiras cujo horizonte parece bloqueado? É isto que o filme narra — o filme mais desesperadamente feminista (alegre, energético, divertido, porém desesperado) que eu jamais vi.

A minha busca obviamente não é por “desculpas”, ou atenuantes para os assassinos, que como tal permanecem, e como tal devem ser combatidos. É somente um modo de dizer que pretender cuidar do mal com cataplasmas é ridículo (admito todavia que os cataplasmas não inquinam diretamente a própria democracia, e que são legítimos). É preciso ir às raízes do mal, e uma dessas raízes está, aliás, no grau de sofrimento que alcança milhões de pessoas sem nenhum horizonte, sem possibilidade sequer de sentirem-se vivas. Nós a criamos, essa situação, e já faz muitos anos: certos (poucos) garotos, em vez de quebrarem as máquinas como há dez anos, agora escolhem adotar outro caminho: causar o maior mal possível aos “outros”, e autodestruir-se no processo. Quando leio textos que nos apresentam o habitual ramerrão sobre o suicídio da inteira sociedade capitalista, que já teria chegado ao ponto de morte, em suma, sobre a necropolítica, eu os considero obscenos. São obscenos porque a caotização da favela, a sua progressiva devastação, me parece impossível de integrar no interior de um delírio estético-niilista que faz do suicídio uma condição comum. Coisa pra vender em museus contemporâneos e nada mais.

Agora é preciso, ao contrário, reconhecer que a laceração social produz (começa a produzir) isso que vimos, e sofremos, na sexta-feira passada. E se trata sim de um problema de classe — entendo que esse termo possa valer ainda aqui: um problema criado pela compressão social extrema, pela maceração duríssima que representou a segmentos inteiros — disso que outrora era força trabalho não qualificada, do tipo fordista, na sua maior parte de origem imigrante, — a passagem ao capitalismo cognitivo. Dir-se-á: mas por que também eles não souberam mudar de direção quando podiam? Por que não se adaptaram à evolução interna do mercado de trabalho? Não souberam fazê-lo porque impedimos-lhos. Voluntariamente, conscientemente, vetamos essa possibilidade, fizemos com que a escola e a formação em alguns “territórios da República” não fossem outra coisa senão espaços de contenção social. Hoje, a contenção explodiu. Explode de modo extremo ainda apenas nas margens — mas será que por quanto tempo?

Desculpe o desabafo, é difícil pensar em voz alta em meio a toda essa gente que fala apenas de si.

Te abraço forte.

J.



Judith Revel é professora da universidade de Paris Ouest Nanterre La Défense.

Fonte: UniNômade

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