PICICA: "Houve uma época em que li muito mais
filosofia, pois fazia parte da minha profissão, do meu aprendizado, e
não tinha muito tempo para ler romances. Mas a vida inteira, eu li grandes romances. Cada vez mais, aliás. Mas será que me é útil para a filosofia? Claro que sim. Por exemplo, a Fitzgerald, que é, por que não?, um romancista bastante filósofo, eu devo muito. O que eu devo a Faulkner
também é muito grande. Estou esquecendo muitos outros. Mas tudo isso se
explica em função do que já dissemos. Avançamos muito, como você já
percebeu. É aquela história: o conceito não existe sozinho. O conceito,
ao mesmo tempo que cumpre sua tarefa, ele faz ver coisas, está ligado
aos perceptos. E o percepto, a gente o encontra em um romance. Há uma
comunicação perpétua entre conceito e percepto. Há problemas de estilo
que são os mesmos em Filosofia, como em Literatura. É uma questão muito
simples: os grandes personagens da Literatura são grandes pensadores. Eu
acabo de reler vários livros de Melville. Está claro que o Capitão Ahab é um grande pensador, que Bartleby
é um pensador. É um outro tipo de pensador, mas, mesmo assim, é um
pensador. Eles nos fazem pensar. De maneira tal que uma obra literária
tanto traça conceitos, de forma implícita, quanto traça perceptos . Isso
é certo. Mas não cabe ao literato, pois ele não pode fazer tudo ao
mesmo tempo. Está tomado pela questão do percepto, em nos fazer ver e
perceber e em criar personagens! Imagine o que é criar
personagens! É uma coisa impressionante! O filósofo cria conceitos. Mas
acontece que estes transmitem muito, porque o conceito, sob alguns
aspectos, é um personagem. E o personagem tem a dimensão de um conceito.
Pelo menos, eu acho. O que há de comum entre as duas
atividades, a grande filosofia e a grande literatura, é que ambas
testemunham em favor da vida. É o que chamei de potência há pouco. É por
isso que os grandes autores não têm muito boa saúde. Existiram algumas exceções, como o caso de Victor Hugo.
Eu não devia dizer que não têm boa saúde, pois alguns tinham uma saúde
excelente. Mas por que existem literatos com saúde fraca? São os mesmos
pelos quais passa uma enxurrada de vida. É justamente por isso. Em
relação à saúde fraca de Spinoza ou à de Lawrence, o que os unia? Era
quase o que eu dizia sobre a queixa: eles viram alguma coisa grande demais para eles. Eram visionários. Viram algo grande demais e não foram capazes de suportá-lo. Deixou-os arrasados. Tchekov seria um deles. Por que Tchekov ficou tão arrasado? Ele viu alguma coisa. Filósofos e literatos estão no mesmo ponto. Há coisas que se consegue ver e das quais não se pode mais voltar.
Que coisas são estas? Varia muito de um autor a outro. Em geral, são
perceptos no limite do suportável ou conceitos no limite do pensável. É
isso. Entre a criação de um grande personagem e a criação de um conceito, eu vejo muitas ligações. É como se fosse a mesma empreitada."
CP: L de Literatura. Um filósofo cria conceitos e um
romancista cria personagens. Mas os grandes personagens de romance são
pensadores. Elementar, meu caro Watson! L de Literatura.
GD: Chegamos ao L.
CP: Já?
GD: Sim!
CP: A Literatura povoa seus livros de filosofia e a
sua vida. Você lê e relê muitos livros de literatura, do que chamam de
“Grande Literatura”. Sempre tratou os grandes escritores como
pensadores. Entre Kant e Nietzsche, você escreveu Proust e os signos,
que é um livro famoso. Lewis Caroll, Émile Zola, Masoch, Kafka, a
Literatura inglesa e americana… Parece que é mais através da Literatura
do que da história da filosofia que você inaugura um novo pensamento. Gostaria de saber se você sempre leu muito.
GD: Sim. Houve uma época em que li muito mais
filosofia, pois fazia parte da minha profissão, do meu aprendizado, e
não tinha muito tempo para ler romances. Mas a vida inteira, eu li grandes romances. Cada vez mais, aliás. Mas será que me é útil para a filosofia? Claro que sim. Por exemplo, a Fitzgerald, que é, por que não?, um romancista bastante filósofo, eu devo muito. O que eu devo a Faulkner
também é muito grande. Estou esquecendo muitos outros. Mas tudo isso se
explica em função do que já dissemos. Avançamos muito, como você já
percebeu. É aquela história: o conceito não existe sozinho. O conceito,
ao mesmo tempo que cumpre sua tarefa, ele faz ver coisas, está ligado
aos perceptos. E o percepto, a gente o encontra em um romance. Há uma
comunicação perpétua entre conceito e percepto. Há problemas de estilo
que são os mesmos em Filosofia, como em Literatura. É uma questão muito
simples: os grandes personagens da Literatura são grandes pensadores. Eu
acabo de reler vários livros de Melville. Está claro que o Capitão Ahab é um grande pensador, que Bartleby
é um pensador. É um outro tipo de pensador, mas, mesmo assim, é um
pensador. Eles nos fazem pensar. De maneira tal que uma obra literária
tanto traça conceitos, de forma implícita, quanto traça perceptos . Isso
é certo. Mas não cabe ao literato, pois ele não pode fazer tudo ao
mesmo tempo. Está tomado pela questão do percepto, em nos fazer ver e
perceber e em criar personagens! Imagine o que é criar
personagens! É uma coisa impressionante! O filósofo cria conceitos. Mas
acontece que estes transmitem muito, porque o conceito, sob alguns
aspectos, é um personagem. E o personagem tem a dimensão de um conceito.
Pelo menos, eu acho. O que há de comum entre as duas
atividades, a grande filosofia e a grande literatura, é que ambas
testemunham em favor da vida. É o que chamei de potência há pouco. É por
isso que os grandes autores não têm muito boa saúde. Existiram algumas exceções, como o caso de Victor Hugo.
Eu não devia dizer que não têm boa saúde, pois alguns tinham uma saúde
excelente. Mas por que existem literatos com saúde fraca? São os mesmos
pelos quais passa uma enxurrada de vida. É justamente por isso. Em
relação à saúde fraca de Spinoza ou à de Lawrence, o que os unia? Era
quase o que eu dizia sobre a queixa: eles viram alguma coisa grande demais para eles. Eram visionários. Viram algo grande demais e não foram capazes de suportá-lo. Deixou-os arrasados. Tchekov seria um deles. Por que Tchekov ficou tão arrasado? Ele viu alguma coisa. Filósofos e literatos estão no mesmo ponto. Há coisas que se consegue ver e das quais não se pode mais voltar.
Que coisas são estas? Varia muito de um autor a outro. Em geral, são
perceptos no limite do suportável ou conceitos no limite do pensável. É
isso. Entre a criação de um grande personagem e a criação de um conceito, eu vejo muitas ligações. É como se fosse a mesma empreitada.
CP: Você se considera um escritor em Filosofia? Um escritor literariamente falando?
GD: Não sei se me considero um grande escritor em Filosofia, mas sei que todo grande filósofo é um grande escritor.
CP: Não há uma nostalgia da obra romanesca quando se é um grande filósofo?
GD: Não, porque é como se dissesse a um pintor: “Por
que não faz música?” Pode-se conceber um filósofo que também escreva
romances. Sartre tentou fazer isso. Não foi nenhum… Para mim, Sartre não
era um romancista, mas ele tentou. Será que houve outros grandes
filósofos que escreveram romances importantes? Nenhum que eu conheça.
Mas sei de filósofos que criaram personagens. Isso já aconteceu.
Platão criou personagens. Nietzsche criou personagens, como Zaratustra.
Aí estão os tais cruzamentos dos quais estamos sempre falando. A
criação de Zaratustra, tanto poética quanto literariamente, foi um
grande sucesso, assim como os personagens de Platão. São pontos em que
não se sabe mais o que é conceito e o que é personagem. Estes talvez
sejam os momentos mais bonitos. 02’15’58 – 2’17’32
CP: E seu amor por autores menores, como Villiers de I’Isle-Adam ou Restif de la Bretonne? Sempre cultivou este afecto?
GD: É muito estranho ouvir dizer que Villiers de
I’Isle-Adam é um autor menor. Vamos à pergunta. Respondendo a esta
pergunta… É uma coisa vergonhosa, uma vergonha mesmo. Quando era muito
jovem, eu tinha a seguinte atitude: gostava de ler a obra completa de um
autor. Assim, eu acabava me apegando, não por autores menores — mas
muitas vezes coincidia —, por autores que tinham escrito muito pouco.
Isso porque Victor Hugo me parecia grande demais, me parecia tão
inacessível que eu chegava ao ponto de dizer que Victor Hugo era ruim,
mas que Paul-Louis Courier era… Eu conhecia perfeitamente Paul-Louis
Courier. Ele tinha escrito muito pouco. Eu tinha esta preferência por
autores chamados “menores”. Villiers de I’Isle-Adam não era um autor
menor.
CP: Não, é um autor fabuloso, mas menor em relação aos grandes da época.
GD: Joubert! Eu conhecia a obra de Joubert
perfeitamente. Além do mais, o que era vergonhoso, me dava um certo
prestígio conhecer autores desconhecidos ou pouco conhecidos. Eram
manias… Levei muito tempo para aprender que Victor Hugo era grandioso e
que a imensidão da obra não era pejorativa. Meu amor por autores
menores… Mas é verdade que a Literatura russa não consiste apenas em Dostoiévski e Tolstoi. Quem ousa chamar Leskov
de autor menor? Há coisas muito impressionantes na obra de Leskov.
Autores como ele são geniais. Não tenho muita coisa a dizer sobre isso,
mas esta busca por autores menores já acabou. O que eu gosto muito é de
encontrar em um autor pouco conhecido alguma coisa que me parece um
conceito ou um personagem extraordinário. Isso sim! Mas não é uma busca
sistemática.
CP: Fora Proust, que é um grande
livro seu sobre um autor, a Literatura está tão presente na sua
filosofia que ela é uma referência. Mas você nunca dedicou um livro à
Literatura, um livro de pensamento sobre a Literatura.
GD: Não tive tempo, mas vou fazê-lo. Vou fazê-lo porque tenho vontade.
CP: De crítica?
GD: Sim, sim… Sobre o problema… Sobre o que significa
escrever na Literatura. Para mim. Com tudo o que tenho pela frente,
vamos ver se tenho tempo.
CP: Queria fazer uma última pergunta. Você lê e relê
os clássicos, mas parece que conhece pouco os autores contemporâneos ou
que não gosta de descobrir a Literatura contemporânea. Você prefere ler
ou reler um grande autor a ver o que está sendo lançado ou o que é
contemporâneo.
GD: Não é que não goste. Entendo o que quer dizer e
vou responder muito rápido. Não é que eu não goste. É por ser uma
atividade especial e muito difícil. Precisa ter uma formação. Em uma
produção contemporânea é muito difícil ter gosto. É exatamente como quem
conhece novos pintores. É algo que se aprende. Admiro muito as pessoas
que freqüentam galerias e dizem ou sentem que naquele trabalho existe de
fato um pintor. Eu não sou capaz disso. Preciso de tempo. Para você ter
uma idéia, eu precisei de cinco anos para entender a novidade de Robbe-Grillet. Beckett, eu vi logo!
Quando falavam de Robbe-Grillet, eu era tão burro quanto os mais burros
falando de Robbe-Grillet. Não entendia nada! Precisei de cinco anos. Não
sou um descobridor. Em filosofia, eu me sinto mais confiante, sou
sensível aos novos tons e também ao que é repetição de coisas já ditas
mil vezes! Nos romances, sou muito sensível e seguro o
suficiente para reconhecer o que já foi dito ou não tem interesse algum,
mas saber se é novo… Uma vez, eu senti isso. Foi com Farrachi. Descobri
do meu modo alguém que me pareceu ser um ótimo romancista jovem, que é
Armand Farrachi. Para esta pergunta que você me fez é totalmente
pertinente, mas eu lhe respondo dizendo que não se deve achar que se
possa sem experiência julgar o que se faz. Mas o que eu prefiro e
acontece com frequência — e muito me alegra — é quando o que eu faço
tem alguma repercussão no trabalho de um jovem escritor ou pintor. Não
quero dizer que, por isso, ele ou eu somos bons. Não é isso. Mas é assim
que tenho algum tipo de encontro com o que se faz atualmente. A
minha insuficiência radical relativa ao julgamento é compensada por
estes encontros com pessoas que fazem coisas que batem com o que eu faço
e vice-versa.
CP: Na pintura e no cinema, estes encontros são
favoráveis, pois você vai até lá. Mas não imagino você entrando numa
livraria à procura de livros lançados nos últimos meses.
GD: Sim, é verdade. Talvez esteja ligado ao fato de que a Literatura não anda bem hoje em dia. Não é uma ideia só minha, nem preconcebida. Está evidente para todos. É uma literatura tão corrompida pelo sistema de distribuição, prêmios, etc. que nem vale a pena.
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