PICICA: "Esta
é a introdução de um video do TEDGlobal com a ativista Pia Mancini, em
2014. Recomendo que vejam o vídeo, é muito interessante e é possível
traçar paralelos com o Podemos espanhol e outros movimentos que pregam
uma democracia mais participativa baseados na tese de que a sociedade
civil organizada teria o poder de mudar estruturas. Baseiam-se nas
teorias de Multidão, da nova esquerda, teorias que pregam ampla
participação popular. Mas esbarram em dois problemas: Acreditam que
necessariamente as pessoas tem interesse em participar da política e
mais, que tem capacidade para tanto."
Hackear a democracia: Da participação à (des)politização
“Pia Mancini e seus colegas querem atualizar a democracia na Argentina e além. Através de sua plataforma de celular, de código aberto, eles querem inserir os cidadãos no processo legislativo e lançar candidatos que vão ouvir o que eles dizem.”
Por Raphael Tsavkko Garcia
Esta
é a introdução de um video do TEDGlobal com a ativista Pia Mancini, em
2014. Recomendo que vejam o vídeo, é muito interessante e é possível
traçar paralelos com o Podemos espanhol e outros movimentos que pregam
uma democracia mais participativa baseados na tese de que a sociedade
civil organizada teria o poder de mudar estruturas. Baseiam-se nas
teorias de Multidão, da nova esquerda, teorias que pregam ampla
participação popular. Mas esbarram em dois problemas: Acreditam que
necessariamente as pessoas tem interesse em participar da política e
mais, que tem capacidade para tanto.
A
Apatia é parte do processo e podemos ver os limites de propostas
plebiscitárias e baseadas em “participação popular” ao analisar
brevemente a história do espanhol Podemos:
Os
“indignados” — como eram chamados os que se manifestavam no 15M e
após — nascem de uma profunda crise do sistema político espanhol, além
de uma crise de endividamento e de cortes maciços de direitos, com
diminuição da renda e desemprego em massa. Nasce de uma situação
aparentemente insustentável que legou a uma resposta radicalizada pela
via institucional para o problema (pode parecer contraditório o uso de
“radicalização” e “via institucional”, mas no fim acabou sendo a
realidade).
Em
seu primeiro ano de vida o Podemos conseguiu ultrapassar a marca dos
300 mil filiados (ou inscritos), todos com direito a participar dos
debates internos e a votar via internet nas políticas e candidatos aos
cargos internos do partido. Uma utopia digital se não fosse por um
pequeno problema, se o Podemos não fosse vítima do próprio mal que veio
combater: A apatia política.
Nas
primeiras eleições internas, pouco mais de 50% dos inscritos para votar
“compareceram” às urnas virtuais, em outubro de 2014. Apenas
42%votaram, em novembro de 2014 nas eleições que elegeram Pablo Iglesias
como Secretário Geral da formação e em dezembro do mesmo ano o número
caiu para 34% de votantes na eleição para dirigentes regionais. E é
preciso lembrar que o processo de votação se deu por internet, então a
proximidade com datas festivas e com uma época de viagens não se
justificaria de imediato.
O
número de filiados do partido tem crescido, mas a quantidade de
eleitores efetivos aparentemente não. Este é um grave problema para o
Podemos, pois no fim isto pode acabar se refletindo na votação para as
eleições espanholas, que devem acontecer até o fim de 2015. O partido
tem crescido nas pesquisas, chegando a ameaçar a hegemonia do PP — e em
algumas pesquisas mesmo o ultrapassando -, fazendo com que lideranças do
partido cogitem até uma ampla coalizão aos moldes alemães com o PSOE
que, apesar de negar, possivelmente comporia tal coalizão visando se
aproximar do poder e das benesses da posição. Sem dúvida o partido não
tem a intenção de alienar seus eleitores imediatamente e apostam pela
tática do estelionato eleitoral.
Um
anúncio anterior à eleição da mera possibilidade uma coalizão com o PP
poderia resultar numa debandada de eleitores para o Podemos.
O
Podemos terá de lidar à medida que se aproximam as eleições, com a
apatia interna e com a apatia geral na Espanha, cuja eleição anterior ao
parlamento espanhol apresentou uma abstenção de quase 30%.¹
É
um erro pensar que apenas por ter a oportunidade/possibilidade de
participar as pessoas necessariamente vão fazê-lo. Há uma infinidade de
forças atuando para afastar as pessoas do debate político e a mais
forte, penso, é a despolitização — que por sua vez se torna um problema
real quando deixa a apatia e se envolve em debates políticos sem ter a
capacidade ou a bagagem para tal. Por bagagem não falo em título
universitário, mas interesse real, compromisso, capacidade de enxergar,
analisar e tirar conclusões da realidade para além da criação de
espantalhos.
A
despolitização se apresenta de várias formas, e em sua pior versão
desemboca num fascismo torpe que gera apoio, por exemplo, a seres
irracionais como Bolsonaros e Felicianos (este, no entanto, ainda tem a
seu favor, por assim dizer, o fanatismo religioso, outro traço
preocupante) — o que não quer dizer que todo despolitizado acabe votando
em Bolsonaro ou que todo eleitor do Bolsonaro seja despolitizado, é
importante deixar claro. É a incapacidade de compreender o funcionamento
da própria democracia, e dessa forma partir para discursos simples e
simplistas, muitas vezes carregados de ódio contra tudo e todos, muito
aos moldes do que é a religião (ou do que era, por exemplo, o
catolicismo na idade média). O medo — de perder posses, status, de
perder “direitos” — cria reações em geral irrefletidas e doentias e o
despolitizado em geral é movido por medo, por ignorância.
Quando
digo que alguns não tem a capacidade de participar da política não me
refiro a alguma característica inata, biológica, e sim a um conjunto de
elementos, que vão do desinteresse, passando pela falta de vontade de ir
além do óbvio, chegando mesmo ao fanatismo (religioso, ideológico) que
impede que se enxergue adiante e a negação do exercício do diálogo e da
alteridade.
Despolitização
pressupõe ignorância (no sentido de se ignorar o que está além, mas não
apenas), logo funciona como uma esponja para discursos fáceis, e nada
mais fácil do que o discurso de ódio da direita contra tudo e todos em
que sempre há um inimigo fantasioso a se combater: “os comunistas estão
chegando” e coisas do tipo. À esquerda — que por muito tempo exigia
alguma politização, leitura de certos livros e mínima base teórica ou ao
menos uma experiência real, por exemplo, em luta sindical, estudantil,
etc — a despolitização se manifesta em militâncias e militantes fanatizados incapazes de pensar para além das cartilhas de seus partidos e movimentos e em “ativistas” conhecidos como Social Justice Warriors
(guerreiros da justiça social), hordas defensoras de pautas de minorias
sem capacidade para tal, apenas baseando-se em uma suposta “vivência” e
soltando frases feitas e termos vazios, chegando ao ponto de negar o
pensamento científico e a própria realidade, destilando ódio no achismo
de que assim combaterão o ódio do outro lado.
Apenas
facilitar uma participação irrefletida de despolitizados nas decisões
políticas me parece algo que merece mais debate. É uma situação difícil
de resolver e, penso, impossível através apenas do hackeamento da
democracia ou de suas ferramentas, como propõe Pia Mancini e seu grupo
no vídeo que abre a postagem. É preciso ir além e alterar completamente o
modelo de democracia vigente em que grassa a despolitização e a
incapacidade de refletir sobre política. No Brasil, um país que odeia
mesmo a academia e acadêmicos, em que “estudar” é sinônimo de ser vagabundo e em que professores em greve são espancados pela polícia,
se limitar a promover de forma irrefletida a participação dos
despolitizados nos processos decisórios me parece ser o mesmo que abrir
as portas para uma tomada fascista. Não se trata, que fique claro, de
propor barreiras para a participação política, o que seria, também,
fascismo, mas sim buscar formas de politizar a multidão.
A
aproximação da massa, da “multidão” à política é necessária, mas deve
ser mais do que só isso, deve ser um processo profundo de transformação
social. Não basta criticar o sistema político, é preciso encontrar
formas de transformar a sociedade. E, quando falamos em “multidão” temos
de falar também de processos de organização social, de formação de
coletivos amplos (não falo aqui de movimentos identitários pós-modernos
excludentes) que promovam participação política e, acima de tudo,
politização. Coletivos amplos por um lado, mas também um processo de
formação de micro-movimentos, de movimentos locais, de aproximação ao
local ao próximo, de soluções locais e de discussões sobre problemáticas
locais.
É
preciso ter em mente, também, que o processo coletivo de tomada de
decisões ou mesmo a formação de coletivos não pressupõe o fim da
individualidade ou da tomada individual de decisões — um problema comum
em certos campos da esquerda que costuma buscar diminuir ou mesmo
neutralizar indivíduos em prol de um coletivo amorfo. É uma dicotomia
deveras complicada de lidar. Movimentos tendem a amalgamar indivíduos ao
ponto de anular sua individualidade, suas diferenças, ao passo que o
indivíduo tende a desprezar soluções coletivas e busca de consenso. À
direita o efeito é o da individualidade passar por cima do coletivo ao
ponto de negá-lo, promovendo o egoísmo e a competição desenfreada e, na
política, isso se reflete numa bancada política de achacadores
interessados unicamente em ganhos pessoais.
É
uma situação complicada em que a democracia — felizmente — pressupõe a
participação de todos (e no Brasil inclusive por força de lei através do
voto obrigatório, mas esta é outra discussão), mas onde uma grande
parte desse todo não tem o menor interesse em efetivamente entender como
funciona o processo ou mesmo participar ativamente. E não me refiro
apenas ao que grita “fora Foro de São Paulo” achando que há uma
conspiração mundial, ou ao Stalinista que continua defendendo “paredão”
para os inimigos, muito menos ao governista que acredita que o golpe virá da “direita” e não do próprio governo estelionatário eleitoral,
mas do que acredita piamente em hoax de Whatsapp ou do Facebook e se
coloca como cidadão de bem se (des)informando pelo Jornal Nacional ou
Veja por um lado, e pelo Brasil 247 (carinhosamente chamado de Brasil 171) ou pelos diversos blogs da rede governista BlogProg.
Pensar
exige compromisso, fazer política exige o pensar. Não preciso nem
comentar os efeitos da (momentânea) saída da apatia de setores
despolitizados que resolvem, por exemplo, protestar ou tentar fazer
textão no Facebook. São milhares tomando as ruas com bandeiras do Brasil
sem saber efetivamente contra o que ou contra quem protestam (contra
tudo que está aí, mas ao lado do Cunha, Bolsonaro, militares, etc),
acreditando se tratar de uma festa, com discursos que beiram ou mesmo
ultrapassam o ridículo. Protestos em que de um lado rola uma balada com
fortões e “gostosas” na avenida lotada e do outro viúvas da Ditadura
disputam espaço com gente que grita contra PT os chamando de
“comunistas” — fazendo coro, ainda que por razões diferentes, com certos
fanáticos do lado petista que pensam que o partido também é ou nos
levará ao comunismo ou algo semelhante.
Em
resumo, se por um lado a ideia de aproximar o eleitor, o cidadão da
política institucional é muito boa e necessária (a democracia ampla é
sempre um objetivo a ser alcançado), por outro esbarra numa possível
falta de interesse e, pior, esbarra no próprio sucesso do modelo quando
traz o despolitizado para participar sem qualquer tipo de processo de
politização. A imagem de que o coletivo, a multidão, seria
necessariamente progressista é irreal. A ideia de que ela seria
necessariamente politizada ou ao menos QUER ser politizada é igualmente
irreal. A multidão, ou a massa, não é e em muitos casos não quer se
politizar ou pensar. É mais simples gritar que “bandido bom é bandido
morto” do que raciocinar mais além. Isso não quer dizer, porém, que
precisamos formar conselhos de iluminados para contrabalancear a
“multidão” ou mesmo desistir da ampla democracia por um modelo de
supostos experts.
É
preciso reinventar a política, ir além dos mecanismos de participação.
Buscar ativamente trabalhar em processos de politização das massas, da
multidão, oferecendo alternativas à mesmice cotidiana e apresentando as
possibilidades do futuro através do engajamento. É necessário, enfim,
buscar ferramentas para a inclusão de todos nos processos decisórios
mostrando que política não é apenas apertar um botão e escolher um
candidato, mas é parte da vida, é um processo de (re)construção e
(re)configuração diária que nao apenas pode como influi diretamente nas
vidas de todos e nas relações entre todos.
E
um adendo, a (des)politização não tem relação alguma com classe, cor,
status social, diploma ou renda, é algo que transcende e ultrapassa
estes elementos e características, é sempre bom deixar claro.
Texto
por Raphael Tsavkko Garcia, jornalista, ativista e doutorando em
direitos humanos (Universidad de Deusto) e autor do Global Voices Online
Fonte: MEDIUM
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