março 28, 2016

A crise amadureceu. por Rodrigues Nunes (EL PAÍS BRASIL) / Notas sobre um conservantismo monstruoso, por Cleber Daniel Lambert da Silva

Notas sobre um conservantismo monstruoso
Entre a dicotomia formada pelas forças políticas antagonistas e majoritárias hoje em jogo, há uma terceira força que consiste em denunciar que o fascismo imputado à oposição ao governo também atravessa o próprio governismo. Muito já foi dito sobre o tratamento dispensado aos índios, aos manifestantes de junho de 2013, aos pobres nas favelas, etc. (para sua caracterização, bem como a maneira pela qual ela recusa a dicotomia do poder e acena para um horizonte constituinte, indico as seguintes reflexões, de grande importância para pensar a crise, de Rodrigo Nunes http://brasil.elpais.com/…/18/opinion/1458337238_631032.html, de Bruno Cava http://uninomade.net/tenda/o-deserto-e-a-esquerda/ e de Alexandre Mendes http://uninomade.net/tenda/vertigens-de-junho/). Desse modo, a própria dicotomia formaria um pólo de poder ao qual a "irrupção" dessa terceira força buscaria por sua vez se opor. Dediquei ao tema da dicotomia do poder e de sua subversão uma reflexão em 2012 (http://www.rau.ufscar.br/…/u…/2015/05/vol4no1_02.LAMBERT.pdf). Naquele momento, como agora, a problemática permanece insolúvel, embora tendências se precisem a cada novo evento. Uma resolução insurgente e criadora se torna cada vez mais premente. A terceira força pode contribuir para ela, desde que seja capaz de superar duas limitações.
1) É claro como o dia que a limitação dessa abordagem não é que ela faça tal crítica, mas que ela o faça em termos globalizantes e pare por aí, quando seria necessário levar em conta uma situação mais complexa. Com efeito, contentando-se em apontar em termos globalizantes o quão fascista é a dicotomia do poder, ela descola tal dicotomia da realidade social da qual ela se alimenta e da qual emerge. Essa situação material é muito mais complexa do que suas análises parecem considerar. Para dar um exemplo: se aqueles que se opõem ao golpe agem somente por "medo" ou por um "símbolo vazio", como sugere suas análises, o que explicaria a presença ali de um grande contingente de pobres, periféricxs, negrxs? Essas forças são massacradas todos os dias pelo racismo institucional. Mas então o que fariam com sua presença em atos contra o golpe ? É que não é somente o medo que move um grande contingente de pessoas a continuar a lutar contra um golpe cuja natureza, diferenças e semelhanças com outros na história brasileira precisam ser lavadas a sério (ver acerca disso o ótimo texto de Jessé Souza http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=2011 ). É que através dos governos Lula criou-se meios institucionais que, de alguma forma, ainda hoje, apesar dos des-caminhos do governo Dilma, contribuem para a criação de um espaço de intervenção para "atores privilegiados" que, até então, eram meros "espectadores sobrecarregados de inessencialidade" (Fanon). Da possibilidade de três refeições diárias ao consumo de bens e à formalização de direitos para o trabalho doméstico, das universidades ao protagonismo geopolítico do Brasil no eixo Sul-Sul, entre outras conquistas, criou-se um espaço democratizante que não somente foge da dicotomia que aprisiona o debate político nacional, mas que é um dos elementos incontornáveis para qualquer tentativa de fazer fugir o social e precipitar com ele essa própria dicotomia. É isso que a terceira força tende a não considerar suficientemente ao condenar à cegueira todos aqueles que se mobilizam não exatamente pela manutenção da polarização, mas pela conservação daquilo que foi conquistado, considerado como um dos meios, entre outros, existentes a se inventar, para o aprofundamento da destruição das estruturas colonialistas do poder, do saber e do ser (cf. pensadorxes do grupo Modernidade/Colonialidade).
2) Nessa altura é preciso introduzir a segunda limitação da terceira força, a qual permite apontar para uma força que, embora presente tanto do lado da dicotomia (entre governistas e oposicionistas) quanto do lado da terceira força, vai além, sendo propriamente paradoxal. F. Zourabichvili falava a propósito de Espinosa de um "conservantismo paradoxal" que consiste não em fazer conservar aquilo que é e sempre foi como é (como o faz os conservadorismos), mas em fazer conservar aquilo que vem à existência, aquilo que a duras penas passa a existir. De um lado, o governismo subestima sua monstruosa criação, aquilo que Hugo Albuquerque chamou, desde o início, com precisão, de "ascensão selvagem da classe sem nome" e do qual tirou, muito recentemente, instigantes perspectivas para compreender a crise atual ( http://www.ihu.unisinos.br/…/552712-a-violencia-do-nada-ent… ) . É que, nessa ascensão monstruosa, também se manifesta a capacidade de se conservar, mais exatamente sua autonomia em relação a um governismo que se concebe como a única força que a representa e segundo o modo que ele acredita ser o único defensável (leia-se, não-coxinha). Ele erra grosseiramente. Isso está igualmente claro como o dia - e essa é uma das dimensões da "potência disruptiva" de junho de 2013, escandalosamente não captada pela esquerda organizada em torno do governo. Por outro lado, a terceira força também erra ao não levar em conta a complexidade da "anomalia selvagem" e, sobretudo, ao se identificar com ela enquanto força política e por buscar, por assim dizer, representá-la. Queremos dizer que há uma dupla cegueira que não permite ao governismo ver o quanto o monstro vai para além dos limites que ele estabelece a uma certa ideia de esquerda e que não permite à terceira força ver o quanto o monstro vai além dos limites que ela traça a uma certa ideia de autonomia e ruptura. O monstro não está, propriamente falando, nos limites que qualquer uma das forças hoje delimitadas podem supor e traçar, mas se encontra num limiar a partir do qual essas forças divergem não entre si, mas delas mesmas e nelas mesmas.
Penso que uma resposta possível à questão dos antagonismos exige que consideremos o fato de que o monstro não está encarcerado entre os pólos da dicotomia do poder (governistas e oposicionistas), nem foge para a margem do social (como o faz a terceira força, perigando por vezes se tornar um cântico da simples abolição). Bem diferente disso, o monstro faz fugir o social, precipitando a própria dicotomia do poder. Contudo, nessa altura intervém uma distinção entre duas perspectivas: o que significa fazer fugir o social desde seu centro ou a partir de seu horizonte? Não temos aqui uma dicotomia pura e simples, mas um verdadeiro dualismo de tendências (J.-Ch. Goddard). É que o monstro, por sua própria natureza, desloca-se entre essas tendências enquanto faz fugir o social. Qualquer resolução para a crise passa, entre outras coisas, pela compreensão dessa dinâmica. As leituras governistas e da terceira força tendem a abordar a situação presente em termos de estados que fixariam o social, ao passo que seria preciso tomá-la em termos de movimento pelo qual o social foge seguindo duas tendências. É decisivo o quão aptos estamos a fazer o social precipitar desde seu limiar ao invés do centro.
Ao se identificar com o próprio monstro e não ver na ação do outro senão o medo como causa, a terceira força busca fazer seu um protagonismo absoluto. Trata-se da expressão de uma equivocada compreensão do acontecimento. Muitos pensamentos da imanência perdem-se nessas veredas e reintroduzem a transcendência lá onde menos se esperava: uma transcendência horizontal, uma potência constituinte que jamais constitui nada e, pior, despreza o esforço para conservar o que foi constituído não vendo ai senão medo, ao invés da coragem que, a partir de uma pequena conquista, ambiciona estender a emancipação a todxs xs condenadxs da terra: é essa última tendência que explica nas manifestações contra o golpe a presença de movimentos anti-racistas, anti-homofóbicos, feministas, etc. A abordagem da terceira força tem uma verdadeira tara que consiste em ver em junho de 2013 uma aura de maio de 1968 e de sua novidade, desconsiderando os limites quase intransponíveis para se realizar essa identificação, sobretudo o maior deles, qual seja: maio de 68 foi uma irrupção da alteridade.
Norman Ajari, numa brilhante tese sobre F. Fanon, estabelece uma diferença entre "alteridade fraca", aquela que é reconhecível e que reforça os elementos de reconhecimento, e "alteridade forte", aquela que também poderia ser dita de ruptura pois é irreconhecível e emerge na medida mesmo em que faz tombar qualquer elemento de recognição pelo qual ela seria mediada e adequada ao dado, ao pré-formado, ao já partilhado: alteridade forte é desejo de não ser incluído por aquilo mesmo que exclui, é desejo de romper com aquilo que exclui e de construir novas formações sociais. Ela é portadora de novidade, de um elã de vida cuja urgência não é o reconhecimento, mas o fazer conservar aquilo que mal começou a existir e o fazer existir aquilo que deve se conservar. Junho de 2013, no Brasil, não deve ser ignorado nem erroneamente tomado globalmente como manifestação de coxinhas. Mas o apoio ao governo hoje também não pode ser demonizado como tendo como fonte o medo ou símbolos vazios. Nessa ignorância mútua, essas forças são portadoras de alteridade, mas fraca. Num caso, manifesta-se um entranhado equívoco da intelectualidade de esquerda brasileira: falar da potência dos pobres, representá-la, expressá-la melhor do que nenhum pobre e favelado poderia fazer, pois ele, o intelectual, como bem mostrou P. Bourdieu a propósito da "falsa contextualização", promove o monopólio do universal. É verdade que o intelectual faz apelo a que se reconheça o pobre como sujeito-político, mas é sua mediação precisamente que faz problema, pois desconsidera a capacidade e autonomia de universalização da própria força periférica (por exemplo, o Rap). Não é em Negri que encontramos os enunciados mais interessantes e precisos sobre a biopolítica e necropolítica hoje no Brasil, mas no Rap, especialmente num pensador da periferia como o é o rapper Eduardo ex-Facção Central (cf. análise que propus com Roger Lambert: https://independent.academia.edu/CleberLambert). Junho de 2013 tem sua relevância, mas ao reivindicar a excepcionalidade se faz cego à "insurgência popular" , ao "espírito de irmandade" e ao "iluminismo do cárcere" (Eduardo ex-F.C) que vem sendo longamente cultivados nas favelas, periferias e presídios pelo povo pobre, negro e despossuído e que pode ser expresso como trabalho de repossessão do sensível que lhes foi e é arrancado a cada dia pela profunda colonialidade da realidade brasileira, pelo estado de exceção cotidiano que lhes cerca bem antes que a terceira força pudesse descobrir Amarildo, pela necropolítica do "campo de extermínio" com os mais de 50 mil homicídios a cada ano. No outro caso, o também entranhado equívoco da esquerda que se tornou governo, sua atávica forma de pensar em termos de alteridade fraca, sua entranhada necessidade de dicotomizar, seu salvacionismo absoluto que, com isso, promove a mesma monopolização do universal, incapaz de se renovar, de compreender seu próprio monstro e de se (re)singularizar seguindo os novos vetores de transmutação e de transversalização daqueles e daquelas que passaram a desejar mais e outramente a partir do momento em que saciaram algumas de suas necessidades essenciais. De um lado e de outro a mesma cegueira, de modo que a coisa mais bem partilhada nesse país parece ser a "tolice da inteligência" (para retomar uma noção de Jessé Souza).
Ora, o monstro em seu movimento faz fugir o social e ao mesmo tempo faz o pensamento pensar. Seu movimento evidencia um estranho bergsonismo político: enquanto ser de ação, o monstro pensa, enquanto ser de pensamento, o monstro age. Da perspectiva central à qual me referi, a alteridade é fraca e se apóia em elementos recognitivos e de mediação: o monstro é reterritorializado e o social precipitado em novas codificações. Da perspectiva periférica ou marginal, a alteridade é forte e propriamente irreconhecível: o monstro toma de assalto a cena em que as forças se embatem, faz com que elas divirjam de si mesmas e, ao mesmo tempo, faz com que elas se comuniquem no elemento da diferença, contrariando sua tendência natural que é de se solidificarem em torno de um centro e de uma boa identidade (restauração de uma ordem perdida ou por vir). Dessa maneira, elas se comungam por um limiar que as precipita e as altera, criando novidade. Há elementos de sobra apontando para a pregnância da perspectiva central: o protagonismo da PF e de juízes na cruzada contra a corrupção, a moralização no Congresso e Senado levada a cabo por facções cleptocráticas, mas também nossa incapacidade em assumir a perspectiva marginal que nos perpassa, bem como o modo pelo qual nos enredamos em nossos guetos e em sua suposta pureza, em nossa urgência em "enterrar" ou simplesmente ignorar tudo que não é "nós", o que vale, como afirmei, para os que lutam contra o golpe e os que se alinham com a terceira força.
É uma questão de percepção (a já gasta, mas aparentemente ainda não compreendida, lembrança de Deleuze, segundo a qual a esquerda é uma questão de percepção). Perceber é diferente de reconhecer. As forças disruptivas vêem seu potencial limitado pelo fato de apenas reconhecer o outro através de sua alteridade fraca. Por barrarem essa percepção, que exige uma tensão, um esforço imenso capaz de contraí-la ao máximo, essas forças são atropeladas pela perspectiva central que carrega o social e o precipita no sentido de uma nova codificação, ainda mais forte, o que não dispensa a retomada e a extensão com novos usos de velhos códigos. A resolução (no sentido simondoniano) da crise em que estamos mergulhados, ou seja, a criação, exige percepção, quer dizer, a paradoxal comunicação entre forças heterogêneas. Só esse paradoxal comum pode atualizar a alteridade forte capaz de precipitar o social na direção de uma "involução criadora" de novidade, carregando junto a dicotomia que, não mais fixada, se auto-abolirá pelo próprio movimento. Sua força está nas periferias brasileiras, nas florestas e sertões, mas também em toda uma nova cabeça pensante e um corpo questionador presente nas universidades, nas aldeias, nas ruas, nos terreiros, nas igrejas, nas bicicletas, nos mais diferentes movimentos sociais ... Cabe àqueles que lutam contra o golpe e aqueles que se apresentam como terceira força abandonarem suas mútuas excepcionalidades, suas cegueiras recíprocas e perceberem a alteridade forte como perspectiva a partir da qual caminhar juntos significa divergir de si, abrir-se à/ao semelhante a fim de formar um comum não homogêneo, nem somente heterogêneo, mas verdadeiramente "heterogeneizante" (G. Deleuze), "incomensurável" (J.-L. Nancy), excessivo, que trace alianças criadoras de uma nova imaginação política e institucional, uma nova "partilha do sensível" (J. Rancière), sem demonizações mútuas, sem a doença do ressentimento ou da procura de causa, sem um velho ou novo protagonismo que apenas interessa àqueles que estão satisfeitos com os lugares, as funções e os poderes que acumulam."

A crise amadureceu

Antes de uma luta pelo poder, Brasília assiste a uma luta pela sobrevivência de diferentes grupos políticos e diferentes facções dentro destes grupos








Cunha, que fez inusual sessão sexta na Câmara para acelerar impeachment. Getty Images




A dita crise política – entenda-se: crise interna à classe política – inicia-se com o triplo contexto de uma eleição altamente agressiva e desagregadora, um quadro econômico negativo e uma guinada brusca na sua condução, e a consequente queda de popularidade do Governo. A combinação dos três fatores resulta, para a chamada base aliada, num aumento do custo político de manter o apoio ao Governo; e portanto também, para o Governo, num aumento do custo de manter este apoio – de onde que, literalmente desde seu início, o Governo tenha agido para implementar uma agenda inteiramente diversa, e em muitos pontos contrária, àquela com que se elegeu. Resulta igualmente que o impeachment, desde um primeiro momento, passe a ser usado por todos, ora como ameaça, ora como chantagem.

Esta crise se caracteriza, primeiro, pela extrema fragmentação dos interesses em jogo, e portanto também dos atores. É isto que a torna duplamente intratável: porque dificulta enormemente a formulação, execução e interpretação de estratégias; e porque isto, por sua vez, dificulta enormemente a formação de blocos estáveis, quanto mais de um bloco capaz de se impor aos demais.
Esta fragmentação decorre em grande parte de uma segunda característica, que é o fato de que o risco de perder supera, nos cálculos de todos, as vantagens de ganhar. Ela é uma luta pela sobrevivência de diferentes grupos políticos e diferentes facções dentro destes grupos, cada qual com seus próprios embaraços com a corrupção, antes de ser uma luta pelo poder. Ou antes, ela é uma luta pelo poder apenas na medida em que deter o poder oferece maiores chances de sobrevivência. Ganhar o poder agora, no meio de uma crise institucional, com um legislativo em pânico e uma economia em frangalhos, na obrigação de negociar e executar um pacote de maldades que ninguém sabe quanto tempo levaria para fazer efeito, não é grande vantagem – embora muitos na oposição possam se atiçar com a ideia de aproveitar a situação para acelerar o processo de desmanche de qualquer legado positivo dos governos do PT e da própria Constituição de 88, processo que na prática já começou. Mas a vantagem real está em ter uma boa posição para tentar escapar ao vórtex da Lava Jato.

O jogo cuja leitura é mais difícil é justamente o mais determinante: a Lava Jato. É inegável que, ainda mais na última semana, ela tenha demonstrado um viés antipetista pronunciado, o que não necessária ou exclusivamente se explica por quaisquer vínculos partidários de seus principais agentes (basta pensar no perfil político médio do Judiciário nacional). Por outro lado, parece impossível reduzi-la a uma simples perseguição ao PT, pelo simples fato de que seria absurdamente custoso (e politicamente arriscado) envolver tanta gente graúda da política e da economia numa ação cujo objetivo fosse unicamente este. Além disso, não está claro até que ponto sua lógica se reduz à liderança do juiz Sérgio Moro. A questão toda aqui é se este viés séria predominantemente estratégico, ou ao menos parcialmente tático. “Saindo o PT, ainda vai sobrar para a gente?": esta é certamente a pergunta em muitas cabeças em Brasília. Com isso, a crise permaneceu durante muito tempo numa situação tarantinesca de mexican stand-off: todos armados e engatilhados apontando para todos, sem saber quem escolher como aliado, nem quem tinha bala na agulha.


A crise é uma luta pela sobrevivência de diferentes grupos políticos e diferentes facções dentro destes grupos, cada qual com seus próprios embaraços com a corrupção, antes de ser uma luta pelo poder

Aceleração no tempo

Mas existem aí dois fatores de aceleração do tempo. O primeiro é a própria Lava Jato, que compromete, cada vez mais, cada vez mais gente, aumentando para todos o imperativo de tentar controlar seus efeitos – coisa que o Governo não soube fazer, entre outras razões porque o custo de tentá-lo é mais alto para o PT que para os demais. A segunda é a própria ameaça de impeachment. Seja para ameaçar, seja para extorquir, não se paralisa um país por meses dizendo que é preciso derrubar governo caia sem que isto acaba se tornando verdade: a paralisia é real, o motivo da paralisia (o Governo) é real, e cria-se em todos a expectativa da resolução, dos empresários que a aguardam para investir até os mais pobres que, diante da depressão econômica, esperam Brasília voltar a trabalhar. Disso resulta que o custo de um processo traumático como um impeachment progressivamente tornou-se mais baixo que o de manter o Governo.

Talvez houvesse uma solução, aceitável para a maioria dos principais atores, pela qual a presidenta, assumindo ainda mais a agenda oposicionista e todos os ônus do período de turbulência, poderia chegar a concluir seu mandato. O grande trauma da oposição é o mensalão, quando optou-se por “sangrar” Lula e ele voltou mais forte; é Lula o medo que a mantém acordada, e é ele, portanto, o rei neste xadrez. A solução então seria que Lula saísse de cena, seja preso ou se comprometendo a não se lançar candidato em 2018. Mas ela sofre de um problema grave, que é o de ser impossível. Aceitá-la implicaria, ao PT, resignar-se à morte certa nas próximas eleições. Entre a morte certa e a incerta, o PT obviamente prefere a segunda.

Daí que o fator que precipitou todos os movimentos seguintes tenha sido a ação para atalhar o desenrolar da Lava Jato e chegar diretamente a Lula. Juridicamente débil, a condução coercitiva foi o fato político forte que explica os dois movimentos mais importantes da semana passada. Primeiro, a sinalização da oposição de que prefere o impeachment (ou seja, Temer) à cassação da chapa no TSE (isto é, eleições) – opção que minimiza a competição imediata e, portanto, os riscos de luta fratricida. Segundo, a convenção do PMDB. Dar-se o prazo de um mês para deliberar sobre a saída do Governo, agora encurtado, significava ganhar tempo para formar um bloco consensual em torno de um plano pós-Dilma, ou um acordo ainda mais draconiano com o Governo. Mas como a aceleração do tempo aumenta os custos de aliar-se ao Governo e portanto diminui a capacidade deste de cumprir qualquer acordo, as condições mantendo-se as mesmas, tudo caminharia para o impeachment.


Parece impossível reduzir a Lava Jato a uma simples perseguição ao PT, pelo simples fato de que seria absurdamente custoso (e politicamente arriscado) 

Sejamos claros: o impeachment a esta altura não é uma questão legal, de evidências materiais, “armas fumegantes” ou domínio do fato. É questão de resolver uma crise intratável, artificialmente criada, para o que importa apenas uma coisa: os votos do PMDB no Congresso. Sérgio Moro poderia vir a público atestar a inocência de Dilma agora que, sem estes votos, o Governo cairia igual. De onde vem a tripla necessidade de levar Lula para dentro do Governo. Porque fora do Governo, Lula estaria exposto a um xeque-mate; mas também porque o prazo de um mês está correndo, e a esta altura ele é o único no PT que talvez ainda possa segurar o PMDB (Sublinhe-se o “talvez”, porque é possível que já não haja mais com o que, ou quem, negociar). Por outro lado, por mais danificado que estejam sua popularidade e peso simbólico, sua presença aumenta o ônus de forçar um processo de impeachment. Prender Lula e derrubar Dilma era menos custoso que derrubar Lula e Dilma.

Há duas táticas, que pelo menos inicialmente não se excluiriam, com que Lula poderia jogar para desempenhar a função para que foi chamado, que é assegurar os votos do PMDB. A primeira seria negociar à moda tradicional de Brasília (cargos, emendas, projetos de lei…), com o custo adicional de precisar oferecer garantias de proteção contra a Lava Jato. O problema é que não está claro o que ele teria mais a oferecer que um eventual Governo de sucessão, sem falar que os riscos de tentar controlar os impactos das investigações são altíssimos (gravações de conversas, pedidos de prisão etc.). A segunda seria jogar com a pressão vinda de fora do sistema político — ironicamente, justo aquela que o PT, desde a Carta aos Brasileiros, se comprometeu a não usar. Usando sua ainda apreciável popularidade e algumas medidas de impacto imediato, além da minguante mas organizada base social do partido, ele poderia aumentar novamente o custo do impeachment, de modo a trazer a situação de volta ao mexican standoff anterior — que obviamente não é um equilíbrio estável, apenas um impasse. Mas esta opção envolve dois riscos: que ela não renda efeitos suficientemente rápidos; que ela dispare uma radicalização simétrica do outro lado. Radicalização, aliás, que a mera nomeação de Lula já parece ter disparado.

O saldo dos protestos do último domingo é ambíguo. Por um lado, eles sinalizaram que há bastante apoio público à ideia de impeachment. Por outro, indicaram aos principais atores da oposição que seus ganhos imediatos não são garantidos. Há muito que já se alerta sobre isso: que embora o antipetismo seja forte, há um sentimento crescente de descrédito institucional e crise de representação generalizados, reforçados pela percepção da artificialidade de uma crise cujo objeto fundamentalmente não é o país. Esta tendência, por si só, não é nem boa nem má, ou antes, é ambos. Fruto ao mesmo tempo de anos de propaganda antipolítica, cujo alvo era o Governo, e do evidente descolamento entre a classe política e o restante do país, seu salutar ceticismo e anseio por mudanças profundas é facilmente transmutável na crença em soluções mágicas. Em todo caso, o que esta ambiguidade faz é reforçar a opção Temer: um Governo de transição até que as coisas (leia-se Lava Jato, guerras intestinas, crise econômica e volatilidade da opinião pública) se acalmem.

Somente uma pessoa saiu inequivocamente vitoriosa do último domingo: Sérgio Moro. E é isso que explica o gesto extremo de anteontem, em que arriscou a carreira e a própria Lava Jato ao abrir o sigilo de uma gravação que não poderia sequer ser usada como prova legal, visto ter ocorrido fora do prazo judicialmente autorizado para o grampo, agindo inteiramente ao arrepio da lei. Seu cálculo parece ser que, como sua popularidade é tão alta e a da classe política, PT à frente, tão baixa, o custo de aplicar a lei contra ele tornou-se alto demais. Qualquer punição agora seria certamente apresentada como ingerência e perseguição contra um indivíduo que ousou enfrentar o Governo, com os desdobramentos imagináveis. Com isto, Moro efetivamente troca de posição com Lula: seria ele, agora, a ocupar o lugar de mártir em potencial. Ou é punido, e sai como herói; ou segue no jogo, mas este já não tem outra regra clara que não a da força. Aceito um precedente tão grave, ninguém sabe dizer o que segue.

Em todo caso, a manobra se apoia no fato de que o tempo joga naturalmente contra o Governo, e pode ser que baste a confusão temporária que ela cria para neutralizar os ganhos deste com a chegada de Lula (alvo de uma batalha judicial).

Há uma última força que não apareceu neste mapa, porque no momento ela propriamente falando não existe. É a daquelas pessoas que não apoiam o Governo, mas tampouco apoiam um impeachment forçado; aquelas que, com razão, desconfiam profundamente do sistema político, e por isso também de “soluções” que manteriam tudo como está; que percebem que a crise política é um jogo de elites políticas e pouco tem a ver com a resolução dos problemas que as afetam ou seus anseios; que veem a bipolarização crescente com “a sensação de que estamos andando para trás", pois faz a discussão girar em torno de problemas falsos ao invés de problemas reais; que, “se fosse[m] a uma manifestação, seria por melhor transporte e saúde pública”.

Basta fazer as contas: entre o total que se declara descontente com o governo e aqueles que têm participado dos protestos, esta é hoje a maioria silenciosa no país. Se houve algo politicamente próximo deles nos últimos anos, foi aquele aspecto de junho de 2013 que não se confunde em nada com os protestos atuais – claramente visível no início, depois violentamente denegado pelo governismo. Ironia da história: a irrupção desta força talvez seja, a esta altura, o único fato novo que poderia trazer um equilíbrio diferente ao jogo da crise.


Rodrigo Nunes é professor de filosofia moderna e contemporânea na PUC-Rio, autor de Organisation of the Organisationless: Collective Action After Networks (Mute/PML Books, 2014).

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