PICICA: "Espinosa fez uma das grandes perguntas da
filosofia: o que pode o corpo? E não é à toa que hoje o holandês é
estudado no campo da Filosofia, Ciência, Política e Psicologia. Falamos
demais da alma, mas esquecemos de perguntar e entender o que é um corpo e
de que maneiras ele é capaz de ser, estar, agir.
Podemos dizer que poucos conceitos são
potentes como os afetos de Espinosa. Eles abrem um enorme campo de
análise para melhor nos relacionarmos com a vida. Não é apenas filosofia
de gabinete, Espinosa está nas ruas, no dia a dia, na política, nas
relações. Através do conhecimento – o mais potente dos afetos
– passamos a identificar com certa clareza quais são os afetos que
regem a nossa vida. Podemos entender melhor o funcionamento deste
circuito dos afetos, o modo pelo qual um sentimento, um corpo, uma
biologia, se torna inseparável da política."
Espinosa fez uma das grandes perguntas da
filosofia: o que pode o corpo? E não é à toa que hoje o holandês é
estudado no campo da Filosofia, Ciência, Política e Psicologia. Falamos
demais da alma, mas esquecemos de perguntar e entender o que é um corpo e
de que maneiras ele é capaz de ser, estar, agir.
Podemos dizer que poucos conceitos são
potentes como os afetos de Espinosa. Eles abrem um enorme campo de
análise para melhor nos relacionarmos com a vida. Não é apenas filosofia
de gabinete, Espinosa está nas ruas, no dia a dia, na política, nas
relações. Através do conhecimento – o mais potente dos afetos
– passamos a identificar com certa clareza quais são os afetos que
regem a nossa vida. Podemos entender melhor o funcionamento deste
circuito dos afetos, o modo pelo qual um sentimento, um corpo, uma
biologia, se torna inseparável da política.
O ódio é uma tristeza acompanhada da ideia de uma causa exterior” – Espinosa, Ética, parte III, definição dos afetos
Recentes fatos da política brasileira nos
remetem imediatamente ao ódio. Por todos os lados, estamos cercados de
bocas espumantes, veias saltadas e olhos fulminantes. As televisões não
desligam, as rádios tagarelam impropérios, está na boca do povo:
“Canalha, pulha, ladrão, vagabundo, corrupto, vigarista, cafajeste,
patife”. Quais são as consequências de ter no ódio o afeto (bio)político
fundamental?
A simplicidade de um afeto torna-se
complexa conforme vai se espalhando. Uma pessoa nos causa tristeza e
reagimos odiando aquela pessoa. Deixamos de lado todas as circunstâncias
daquela afecção e ligamos a tristeza causada àquela pessoa, objeto ou
fato. O ódio está ligado à tristeza, e quando ficamos tristes, a nossa
capacidade de pensar diminui.
Tristes, temos cada vez mais ideias inadequadas. Quanto
mais entristecidos nos tornamos, mais confusos se tornam os afetos. E
assim passamos a odiar a chuva por que ela alaga as nossas ruas
entupidas de cimento. Passamos a odiar nossos amigos quando estes não
dizem aquilo que queremos ouvir. Passamos a odiar, em suma, tudo aquilo
que não toma nosso partido. O ódio liga, faz a ponte entre o estado do
meu corpo e o corpo exterior que me afetou. Ele não fala da relação, ele
diz apenas do estado do meu corpo e procura uma causa.
Não há falta, o corpo sempre é preenchido
por afecções, seja de tristeza ou de alegria! O que pode o ódio? Do que
este afeto é capaz? Somos odiosos demais! Ligamos prontamente a
tristeza a uma causa. Tão ingênuos. Como saber as causas com tanta
frequência? Muito mais frequente é estarmos perdidos, cansados ou
distraídos. Tristes, só sabemos nos mover contra aquilo que odiamos.
Ignoramos os conselhos de Zaratustra sobre a honra de se ter um
inimigo. Abrimos a boca por pouca bobagem para cuspir mesmo que seja
contra o vento. Manifestamo-nos pelo nada, mas contra tudo! Elegemos
vilões sem heróis, pois não temos força para assumir a responsabilidade
por nossas dores. Dividimos, separamos, excluímos, recortamos a
realidade para o nosso mimo. Mia Couto escreveu sobre o mundo de quem
tem medo, um mundo pequeno, cercado, em que nada fuja ao controle. O
mundo de quem tem ódio é um mundo monocromático. Só há uma cor e oposto
dela. Preto e branco; ou vermelho e azul.
Como nos movemos por este campo de
afetos? “Quando a mente imagina aquelas coisas que diminuem ou refreiam a
potência de agir do corpo, ela se esforça, tanto quanto pode, por se
recordar de coisas que excluam a existência das primeiras” (Ética III,
prop 13). Tornamo-nos saudosistas ou utópicos! “Amanhã ele vai ver! Ele
me paga”, ou então “no meu tempo era diferente, antigamente não era
assim!”. Ou pior: “Quem imagina que aquilo que odeia é afetado de
tristeza, se alegrará; se, contrariamente, imagina que é afetado de
alegria, se entristecerá” (Ética III, prop 23), Espinosa nos ensina que
existem alegrias tristes, alegrar-se com a tristeza de alguém é um bom
exemplo disso! Esforçamo-nos para que a coisa que odiamos seja afetada
de tristeza e odiamos tudo aquilo que a afeta de alegria. Estas são
apenas umas das consequências deste afeto.
Ao contrário do medo, que como afeto (bio)político paralisa; o ódio movimenta, mas por vias tortas, não como a alegria,
que nos vincula com a vida. O ódio solta bestas ferozes e obedientes,
instruídas para morder: “Esforça-se por afastar e destruir a coisa que
odeia” (prop 13, corolário). Tristes, somos cada vez mais agressivos.
Nasce a desonestidade intelectual e o interesse pelo entendimento raso.
Difamamos, revidamos e fechamos os olhos para a pluralidade de
posições, para a complexidade dos fatos, “A culpa é de fulano!”.
Promovemos uma fé pelo unilateral e começamos a crer que tudo tem um
lado só; e o nomeados de verdade. Acreditamos piamente em quem carrega
nossa verdade sob os braços e a eles demonstramos nossa empatia, só a
eles. Empatia seletiva é um recurso de proteção do próprio ódio, que se
alia à mais profunda vontade de conservação. O ódio movimenta erupções:
grandes demonstrações destrutivas sem nenhuma perspectiva de construção;
a lava deixa o solo infértil.
Tristes, afirmamos cada vez menos.
Tomamos gosto pela negação, o ódio tem a mesma propriedade do açúcar
refinado: ele adoça e rouba o sabor. Nos afastamos da política de
Espinosa, a da afirmação, a da constituição comum, baseada na alegria,
na sinceridade e no amor; e vamos em direção a uma política de ódio, de
negação, aquela que investe no poder e esquece-se da potência. A
pergunta de Espinosa ainda é atual: o que pode um corpo? Para nós, cabe
perguntar, o que pode um corpo inundado de tanto ódio? Pouco…
pouquíssimo… ou quase nada.
Texto da série: Afetos (bio)Políticos
Fonte: Razão Inadequada
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