PICICA: "“Há situações nas quais a única saída para o homem é devir-revolucionário” – Deleuze, Abecedário, G de Gauche"
“Há situações nas quais a única saída para o homem é devir-revolucionário” – Deleuze, Abecedário, G de Gauche
Como fazer política sem cair nos velhos clichês? “Leia o livro tal“, “faça como o político X“, “Dez lições para um fazer político“?
Sim, já conhecemos bem a política da Globo, dos jornais, das
manifestações, do almoço dominical com a família. Queremos agora
encontrar a micro-política
que se faz na rua, na ocupação, nos becos, nos espaços que escapam do
poder constituído. Queremos encontrar uma política que não imite, nem
que seja análoga ao que vimos até hoje. O político é o pastor? E daí?
Nós não somos ovelhas! O político é como um pai? Pois fiquem sabendo:
nós nascemos órfãos e anarquistas!
Nossa política está contaminada de
ressentimento, vestimos máscaras, carregamos cartazes, andamos
desengonçados sem encontrar a leveza necessária. A dificuldade de
realizar encontros e ampliar os horizontes de um fazer político está
diretamente ligada a este engessamento. Nós tropeçamos em pegadas que
não são nossas e nos perdemos no ritmo de tambores que não conhecemos.
Devir-revolucionário é utilizar-se da figura do revolucionário para
entrar em devir, o que eu faço depois de sair de uma manifestação?
Depois de ver um filme, depois de ocupar uma escola? A força está em se
utilizar deste modelo para sair do jogo de identificações e entrar em
devir. Não se trata mais de nós contra eles, vândalos e policiais,
coxinhas e vermelhinhos.
A resistência consistiria em embarcar nos processos de diferenciação de todos esses modelos, pois com isso é o próprio falocratismo que estaríamos desinvestindo” – Félix Guattari e Suely Rolnik, Micropolítica – Cartografias do Desejo, p 81
Todo devir-revolucionário é uma máquina de guerra, ele se constitui juntamente com a criatividade do devir-criança, com a singularidade do devir-mulher,
com a multiplicidade do devir-animal. Sim, pertencemos à esquerda, mas a
esquerda se diz de várias formas. Não estamos preocupados com as
revoluções, todas elas fracassaram, todas sem exceção: Inglesa,
Americana, Francesa, Argelina, Russa, Cubana, Chinesa. Ainda assim,
mesmo com o fracasso das revoluções, isso nunca impediu que as pessoas
se tornassem revolucionárias.
Um devir-revolucionário permanece indiferente às questões de um futuro e de um passado da revolução; ele passa entre os dois. Todo devir é um bloco de coexistência” – D&G, Mil Platôs 4, 96
É um vírus que penetra em um sistema
aparentemente estável para mostrar suas várias falhas. Há uma
multiplicidade movimentando-se em todo devir-revolucionário, o agir
micropolítico gerando inovações que sobem pelo sistema, contaminando e
se disseminando. Encontrar, ou criar, territórios onde negros e
homossexuais criem alianças, mulheres e operários juntem forças,
estudantes e metroviários andem juntos. Um plano onde a diferença se
junta, sínteses disjuntivas se constituem, abram espaço pelo meio pobre, insosso das molaridades.
Isso está para além de todo movimento
social que cai em um redemoinho de ressentimento e direitos. Claro que
não estamos menosprezando as lutas por direitos, mas este território
ainda é contaminado pelo reconhecimento, e este reconhecimento está
sempre associado ao poder. O direito foi criado para legislar de cima
para baixo. Onde está a jurisprudência? Onde está o direito de criar
valores e a potência de afirmar-se? Precisamos realmente de juízes? O
singular é difícil de ser codificado pela ótica dominante, nascem
rupturas, desentendimentos.
Não podemos cair na armadilha dos
direitos, é preciso ir além, nos dão direitos e logo nos cobram deveres.
Não queremos jogar o jogo do poder, nós estamos distantes de sua
lógica. Tomar o poder? Mas o que queremos não é exatamente por fim a
qualquer forma de opressão? Todos os políticos e poderosos são tristes,
não queremos seus problemas, a potência funciona na superfície dos
encontros, coloque-a e uma pirâmide e observe tudo degringolar.
Por isso um devir-revolucionário não se
preocupa em como tomar o poder, não há uma estratégia de tomada do
poder. O devir entra em ressonância
com todos os revolucionários para pensar uma micro-política. Não há
mais uma linha que liga dois pontos, opressão -> revolução ->
utopia. A linha descola-se do ponto e trilha novos caminhos inesperados:
ocupar escolas, por exemplo. Ninguém pode prever o que uma linha que se
descola da história linear pode fazer. E é exatamente isso que um
devir-revolucionário quer, descolar linhas, operar desvios, encontrar
outros modos de viver que sejam revolucionários.
A micro-política não é pequena política,
ela pode ser maior que qualquer assinatura do presidente. Não é
inferior, ela pode influenciar mais que os decretos do governador. Uma
micro-política é uma política menor: se faz por movimentos minoritários,
se faz por linhas de fuga que desestabilizam o status quo.
Onde o Estado não penetra, lá estão micro-políticos, onde o capitalismo
não alcança seus tentáculos pegajosos, lá está um espaço potencial para
um devir-revolucionário.
Há uma confusão entre devir e história.
Toda vez que uma revolução toma forma, os historiadores se perguntam de
onde ela veio. Claro que podemos achar as causas, mas apenas a posteriori,
e com grande dificuldade. O devir-revolucionário rompe a malha da
história, é exatamente o a-histórico se afirmando, aquilo que escapa.
Todo revolucionário descola-se da história porque afirma a potência do
devir, do intempestivo. Todo ato de criação é trans-histórico, pega
atalhos, passa reto onde existiam curvas. O ato revolucionário é uma
linha de fuga que se solta, que se desprende, e que por isso mesmo cria
outras perspectivas e outros territórios. A rebeldia é espontânea, ela
não cabe em partidos e governos, não reconhece as grandes personalidades
como modelos. O devir-revolucionário é um devir que resiste, e resistir
é como povoar um deserto.
É necessário colocar-se para além do bem e
do mal, estar para além de seu pequeno eu. Quantas forças atravessam um
devir-revolucionário? Impossível contar, ele é o ponto de encontro de
inumeráveis devires. A minoria é todo mundo, porque o padrão é vazio,
ninguém se encaixa lá, ele é usado apenas como modelo de opressão e
condução das forças. O voto nulo é o único universal. A representação
está cada vez mais ultrapassada. O devir-revolucionário sabe disso
muito bem, ele é ninguém e todo mundo. Uma linha se solta, desvia do
ponto, viva o devir-revolucionário!
Toda problemática micropolítica consistiria, exatamente, em tentar agenciar os processos de singularidade no próprio nível de onde eles emergem. E isso para frustrar sua recuperação pela produção de subjetividade capitalística” – Félix Guattari e Suely Rolnik, Micropolítica – Cartografias do Desejo, p 130
> Texto da série: Ética dos Devires <
Fonte: RAZÃO INADEQUADA
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