PICICA: "Ainda que o impeachment de Dilma seja vitorioso no Congresso, o atual
contexto não oferece uma opção de estabilidade, bem diferente do que
aconteceu com a pactuação nacional promovida pelo discreto Itamar Franco
em 1992, pós-impeachment do Collor."
Temer não é Itamar e Dilma não é Allende
Defendo uma concepção maximilista de democracia onde pluralismo, tolerância e direitos básicos/universais sejam garantidos como parte de um processo histórico de ampliação de conquistas civis, sociais e políticas.
O que eu chamo de democracia envolve um pacote básico universal de direitos onde todos os indivíduos devem ter assegurados seu acesso, corrigindo graves assimetrias e os infortúnios diante da “loteria da vida” (J. Rawls).
Democracia não é somente sancionar nomes ou demitir governos ofertados pelo cardápio do mercado político (1). Isso é também democracia, mas representa uma pequena faceta do processo que é, no meu entender, bem mais amplo .
Os desenhos institucionais que a democracia poderá assumir, de acordo com determinado contexto histórico-social-econômico, podem variar. Não há um modelo congelado e válido para todos os países, em todas as épocas. Claro que mudanças radicais geram instabilidade sistêmica. Ainda assim, não há razão para temermos uma emenda constitucional (PEC) que, respeitado o regimento do Congresso, possa ser aprovada e validada imediatamente. Não é a primeira vez na nossa história que tal se deu. Por que não fazê-lo se isso for melhor – "melhor" é quando reduz danos e instabilidades graves – para as instituições democráticas redesenhadas pela Constituição de 1988, onde nasceu a Nova República?
É por isso que considero a consulta popular (plebiscito, referendo, eleição direta, recall), em caso de grave crise de governabilidade (e identifico o governo petista nesta situação), a melhor saída para o impasse institucional que paralisa o próprio governo, o mercado e a sociedade. Os cidadãos podem devolver ao poder político a legitimidade que foi corroída com a crise.
A PEC do recall (que revoga o mandato do eleito e convoca novas eleições em 90 dias) é a saída que maximiza a legitimidade do atual sistema político onde Congresso e Poder Executivo estão sob gravíssima suspeita diante da maioria dos cidadãos-eleitores. Não se trata de "golpe", nem de "oportunismo", mas de garantir uma via democrática diante do impasse. É opção "por baixo" e não "pelo alto", como é comum na nossa história.
Ainda que o impeachment de Dilma seja vitorioso no Congresso, o atual contexto não oferece uma opção de estabilidade, bem diferente do que aconteceu com a pactuação nacional promovida pelo discreto Itamar Franco em 1992, pós-impeachment do Collor.
Michel Temer apresenta uma proposta de governo que interessa ao mercado e parte da nossa oligarquia política (PSDB-DEM), mas sua credibilidade/segurança é duvidosa e suas consequências sociais potencialmente desastrosas ou regressivas. A própria oposição, liderada até pouco tempo por Aécio Neves (PSDB) e Pauderney Avelino (DEM), desmoralizou-se com as últimas revelações da mesma Operação Lava Jato que desconstrói o capital ético acumulado pelo PT quando era oposição.
Michel Temer não resolve a crise porque (a) também está envolvido nos escândalos de corrupção, (b) não consegue consenso no seu próprio partido que é uma federação de caciques regionais, (c) governou com o PT por todos esses anos, o que torna pouco crível a tese de que o possível crime de responsabilidade de Dilma não tenha nenhuma participação de Temer/PMDB. Além disso, o atual presidente do PMDB (d) poderá ser cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) (3) em 2017 e (e) terá forte oposição em caso de impedimento de Dilma, a começar pelo próprio PT, CUT, MST, UNE, UBES, MTST que, mesmo combalidos e cooptados pelo governo, ainda tem um séquito considerável e “artilharia” política nada desprezível se somarmos a "nuvem" de blogueiros. Onde há segurança nesse possível governo sob ampla hegemonia do PMDB?
Michel Temer não é Itamar Franco e não temos o mesmo ambiente de unidade cívica pós-impeachment do Collor (2), mas pelo contrário, a polarização radicaliza-se a cada dia. Ainda que a incerteza dos resultados finais numa democracia seja um incremento para a participação política - e o avesso disso seria a apatia dos que racionalmente poupariam custos de escolha/participação e pegariam carona - ela se torna deficitária quando se transforma em instabilidade geral.
Para concluir, se Dilma conseguir evitar o impeachment, a possibilidade de ingovernabilidade se amplia. A tendência de um boicote de setores do mercado, de ampla parcela da mídia e da maioria do Congresso é alta e poderá transformar o governo petista numa entidade morta e sem efetividade, sitiado no Palácio Alvorada e sem condições de aprovar nada no Congresso Nacional. Podemos viver assim até 2018?
Cabe lembrar que foi o PT que aceitou o risco de uma aliança pragmática com o PMDB, incluindo amplos setores da direita brasileira, agora colhe os frutos indesejáveis desse processo de "presidencialismo de cooptação". E não adianta agora gritar “golpe” e usar camisa com imagem de guerrilheira da década de 70, pois Dilma não é Salvador Allende (Chile). Nem de longe tentou um amplo programa de reformas estruturais que privilegiasse os interesses do mundo do trabalho sobre os interesses do mercado.
Se Dilma for impedida – e esta tendência parece mais razoável no atual quadro – Michel Temer, seu vice-presidente, não é a saída mais segura e tem credibilidade/legitimidade questionável. Este é o ponto central da angústia que vivemos. Até o momento, Temer não aparenta reunir as condições para realizar uma "concertação", uma urgente pactuação nacional com objetivo de fazer um governo de transição que conduza o país até as eleições presidenciais de 2018.
Novas eleições, nesse cenário, ainda me parece a melhor saída e a mais coerente com uma visão ampliada de democracia onde os cidadãos são chamados à sua responsabilidade pública de corrigir ou reafirmar o que fizeram em 2014 sob condições outras e com isso escolher seu futuro, aquilo que consideram a melhor saída para a crise. Não vejo nessa ideia-proposta nenhum “golpismo”, com todo o respeito por aquelas e aquelas que pensam sobre outro ângulo.
O verdadeiro “golpe” não é o impeachment sob hegemonia conservadora - Eduardo Cunha é apenas um ícone desse processo desmoralizado. O "golpe" mesmo foi dado pelo campo majoritário que dirige o próprio PT (4). Depois das primeiras eleições, ainda com Lula, deslocou-se para o centro, aprofundou alianças nada republicanas e abandonou seu programa reformista de centro-esquerda. Porque foi com esse programa reformista com forte apelo ético que o partido havia antes conquistado a classe média e setores organizados do proletariado brasileiro que hoje, majoritariamente – de acordo com as pesquisas de opinião – detestam o partido e seus líderes. Impressiona-me perceber que a classe média que hoje repudia o PT - e no limite, flerta com a extrema-direita - foi um dia berço do crescimento petista nas décadas de 80-90. Tudo se deslocou, tudo mudou. Nós também podemos mudar e para melhor, mas não em três minutos.
(1) O conceito de poliarquia de Dahl não será debatido aqui, mas estou dialogando com suas questões.
(2) Naquela época, o PT não aceitou apoiar a coalizão nacional proposta por Itamar Franco e um conjunto de partidos. Luiza Erundina aceitou integrar o Governo Itamar e foi expulsa do partido.
(3) O que nos levaria a uma eleição indireta, feita por este Congresso de baixa credibilidade, ainda que eleito e constitucional.
(4) Ou sua direção majoritária que, no passado, era conhecida como "Articulação". Além dela, o campo majoritário do PT contou com apoio de diversas outras correntes do partido que entraram para a máquina estatal.
Marcio Sales Saraiva
... e começou a buscar sentido numa sociedade que perde seus velhos laços sociais para viver o espetáculo do consumo e da neurose narcisista. Sou apenas uma narrativa no caos, um recorte ou uma janela. Se for prazeroso para você, fique aqui e tome um café comigo..Fonte: OBVIOUS
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