PICICA: "“No reino da Dinamarca”, a hermenêutica está na moda, assim como no
passado estava o historicismo. A hermenêutica, ou seja, como a define
Hans Georg Gadamer, a afirmativa de que “o ser que pode ser compreendido
é a linguagem” é aquele método histórico que busca a verdade que se
apóia nesse conceito. No historicismo a linguagem revela diretamente o
ser histórico e se dá por satisfeita, na hermenêutica filtra-se a
percepção do fato histórico por meio da linguagem e ocupa-se a mente com
o jogo dialético (no sentido platônico) de uma aproximação indefinida à
determinação concreta. Tanto em um caso como no outro, a conclusão é o
relativismo histórico e ético. Isto é, tanto no método dialético,
baseado em Hegel, como no platônico, da hermenêutica, o resultado é o
mesmo: o relativismo histórico, a definição da verdade que se submete à
“pseudoverdade” do fato, uma exaltação implícita do “status quo”, e
consequentemente, o cinismo ético."
A hermenêutica de novas classes em luta
Por Antonio Negri | Trad. Simonetta Persichetti—
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“No reino da Dinamarca”, a hermenêutica está na moda, assim como no passado estava o historicismo. A hermenêutica, ou seja, como a define Hans Georg Gadamer, a afirmativa de que “o ser que pode ser compreendido é a linguagem” é aquele método histórico que busca a verdade que se apóia nesse conceito. No historicismo a linguagem revela diretamente o ser histórico e se dá por satisfeita, na hermenêutica filtra-se a percepção do fato histórico por meio da linguagem e ocupa-se a mente com o jogo dialético (no sentido platônico) de uma aproximação indefinida à determinação concreta. Tanto em um caso como no outro, a conclusão é o relativismo histórico e ético. Isto é, tanto no método dialético, baseado em Hegel, como no platônico, da hermenêutica, o resultado é o mesmo: o relativismo histórico, a definição da verdade que se submete à “pseudoverdade” do fato, uma exaltação implícita do “status quo”, e consequentemente, o cinismo ético.
Por que a mente deve submeter-se a definições sempre relativas e não aceitar-se como determinação de eventos concretos? Por que o concreto deve ser sempre submetido aos processos de mediação que exprimem o significado e não se colocar como sendo o significado, o nome comum, de si por si, de imediato? Por que, por exemplo, sofrimento e exploração não podem ser tomados por aquilo que são, sofrimento concreto e exploração determinada, em vez de submeter o seu significado a um processo de mediação e sublimação. Não, “há algo de podre no reino da Dinamarca”.
Mas se a hermenêutica está na ordem do dia e se alguns a reconhecem como sendo “o cerne do pensamento moderno”, não basta que a crítica a jogue no velho historicismo burguês, nesta cínica retórica, e que lhe aplique as perversas consequências que aquela linha de pensamento produziu e produz.
Mas trata-se pura e simplesmente de falsificações de citações instrumentais. Pobre Wittgenstein -como pode alguém pretender “relativizar”, como faz a hermenêutica, aquela formidável e dura intuição do concreto que lhe é própria. (“A proposição é uma imagem da realidade” -“Tractatus”, 4.01)? Como pode se estabelecer algum tipo de aliança entre a sua revolução na área da linguística e a pretensão de ter um ser diluído pela comunicação? Pobre Heidegger -como podemos enfraquecer aquela feroz dispersão ontológica e domesticar tão violenta mensagem profética que seu êxodo do niilismo pretende? Habermas falou ironicamente sobre Gadamer, de “uma urbanização genérica da província heideggeriana”. Igualmente podemos aqui reconhecer uma “localização banal da exaltação linguística”, de Wittgenstein.
Permanecendo nas bases da hermenêutica, em vez de incomodar Heidegger e Wittgenstein, vale a pena lembrarmos dos grandes maestros da boa vida burguesa do começo do século, de Alain a Croce, e também dos católicos do Vaticano 2º. Então a hermenêutica, como historicismo, como relativismo epistemológico, idealismo e cinismo ético, é hoje pensamento fraco que quer tudo relativizar para tudo poder justificar. Vocês lembram dos salões burgueses descritos por Zola em “Germinal”, enquanto explode o movimento dos mineiros?
Mesmo assim, como a Aids, ou a síndrome da “vaca louca”, a hermenêutica invade o pensamento. Muitos cronistas insistem na sua força endêmica. Não somente nas mentes fracas protegidas pelos discípulos das idéias de Heidegger, mas também na desconstrução existe algo da hermenêutica, e nas problemáticas éticas e religiosas do pós-modernismo… Quem sabe como estará feliz Derrida em entender esse processo, justamente ele que procura definir o método e dar peso às denúncias do “próprio” e do “egocentrismo” que interferem na escrita. Quanto aos pós-modernos, éticos ou religiosos, problema deles…
Concluindo: entre os tantos desastres criados pelo fim da Guerra Fria e da derrubada do Muro (além é claro dos efeitos benéficos que tudo isso teve para a libertação do pensamento e para um novo imaginário) existe o fato de que ideologias instrumentais, construídas para brigar com o inimigo, hoje perduram -quando o inimigo desapareceu. A ideologia marxista era forte no seu teologismo: muito bem, era necessário combatê-la e os Croce, os Gadamer e os filósofos “novos” ou “fracos” funcionavam. Relativizavam a história introduzindo elementos de ceticismo, requalificando cinicamente o ato de agir. Graças a Deus estas urgências não existem mais -para que serve então a hermenêutica?
Agora, quando as sociedades se reabrem ao conflito e a luta de classes revive (não importa se vinda de cima ou de baixo), precisamos de uma outra hermenêutica, de uma hermenêutica das novas formas sociais, ou se quiser -de novas classes em luta.
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publicado originalmente na Folha de São Paulo, 9 jun. 1996
Fonte: UniNômade
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