PICICA: "O devir-criança seria, se precisássemos traçar uma ordem didática, o segundo devir, seguindo o devir-mulher.
Óbvio que esta ordem é apenas para fins explicativos porque o devir não
funciona por evolução, seu funcionamento é muito mais próximo de uma
involução criadora. Os devires se fazem por encontros afetivos em um
mapa de intensidades, disjunção inclusiva. Depois de se desfazer da norma, depois de deixar o peso do “tu deves” para trás, nasce a criança."
“É preciso que o filósofo dê uma chance à criança que há nele, que ‘ainda não entende’ todas essas coisas. Aquele que ‘ainda não entende’ pode, talvez, formular as questões certas” – Peter Sloterdijk – Crítica da Razão Cínica, p. 188
O devir-criança seria, se precisássemos traçar uma ordem didática, o segundo devir, seguindo o devir-mulher.
Óbvio que esta ordem é apenas para fins explicativos porque o devir não
funciona por evolução, seu funcionamento é muito mais próximo de uma
involução criadora. Os devires se fazem por encontros afetivos em um
mapa de intensidades, disjunção inclusiva. Depois de se desfazer da norma, depois de deixar o peso do “tu deves” para trás, nasce a criança. Zaratustra soube explicar bem:
Inocência é a criança, esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um primeiro movimento,um sagrado dizer-sim” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, “Das Três Metamorfoses“
Todo
devir é um portal que precisamos atravessar, um território que
construímos para depois de esgotada suas possibilidades abandonar. Não
queremos regredir para o estágio da criança, não estamos no campo da
psicanálise onde a libido volta para estágios anteriores. Não se trata
tampouco de imitar uma criança, devir não é imitação (não queremos nos
deitar no chão e ficar chupando o dedo), nem analogia: “ele interage com o mundo tal qual uma criança interage com sua mãe“.
Devir-criança é entrar em contado com
esta potência que faz caminhos, percorre trilhas, explora. Tudo para a
criança é novo, tudo é como se fosse pela primeira vez. Ela acorda todo o
dia e se espanta: como o mundo funciona? O que isso faz? Como já
dissemos, os devires são involuções criadoras, é a aliança que acontece
quando se entra em zonas de vizinhança e encontram potências escondidas.
Não queremos imitar a criança, mas estar na mesma zona, habitar este
espaço de potência criativa. Esta potência do devir-criança está em
criar cenários, espaços, singularidades, momentos. A criança é uma
mestra das novidades, das histórias, ela tira da cartola tudo que não
víamos há um segundo atrás.
A criança é inocente o bastante para não
entender o mundo das regras, normas e limites. Por ser mais baixa, ela
passa por baixo, por ser mais flexível, ela passa por entre, por ser
mais ativa, ela encontra as saídas, se aproximando cada vez mais de
devires imperceptíveis. Uma criança não entende, ou finge não entender
(o que dá no mesmo), é aí que está a potência de seu devir, isso lhe dá
espaço para encontrar seus próprios caminhos, fazer de conta,
improvisar.
Uma mestra dos agenciamentos: “Vamos brincar de cabaninha?“,
mas brincar de cabaninha é abrir os armários, procurar lençóis, buscar
cadeiras, papelão, abrir a caixas de ferramentas do pai, pegar as
panelas enquanto sua mãe cozinha, achar a fita crepe que estava
escondida em cima da estante. A criança está o tempo todo lutando contra
os estratos molares, mas ela faz isso ativamente, mesmo sendo
constantemente carregada de expectativas das quais desconhece o peso: “será um médico?“, “será um advogado?“.
Como escapar disso? Seus agenciamentos são linhas de fuga. Uma criança
sabe dançar? Sim, e elas dançam com mais desembaraço que qualquer
adulto, certamente. O corpo da criança é um espaço disputado pelo poder,
mas o devir-criança é esta força que resiste, e para resistir ela cria.
Aquele que em momentos difíceis coloca o
dedo na boa e chora não está devindo criança, está regredindo para um
estado infantil, fugindo de seus problemas. O devir-criança usa sua
inventividade para resolver problemas de maneira leve, sem se deixar
capturar pelas formas molares. Para além de todas as fórmulas prontas, o
devir-criança se move pelo mundo convivendo com as incertezas e
possibilidades. Neste ponto, elas se aproximam dos artistas. Encontrar o
ponto onde a vida encontra a criação, mesmo na dor, mesmo nas
dificuldades.
Para ser ele próprio a criança recém-nascida, o criador também deve querer ser a parturiente e a dor da parturiente” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, “Nas Ilhas Bem Aventuradas”
E preciso saber jogar, saber bem as
regras para poder se aproveitar delas, e saber o melhor momento de
quebrá-las. Qual o melhor lugar para saltar no rio? Qual a melhor árvore
para se subir? Qual o melhor lugar da sala para se sentar? Uma criança
sente prazer em aprender, desde que aquilo lhe pareça útil, o
aprendizado se faz junto com a aventura a experimentação. Temos que
dizer “devir” e “criança” porque parte-se da criança, mas não se sabe
onde vai chegar, este é o prazer que precisamos (re)aprender. Há sempre
uma trilha não explorada na floresta que a criança quer percorrer, e ela
própria é esta trilha desconhecida.
> texto da série: Ética dos Devires <
Escrito por Rafael Trindade
Artesão de mimFonte: RAZÃO INADEQUADA
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