março 11, 2016

Como nascem as bruxas. POR José Geraldo Couto (BLOG DO IMS)

PICICA: "A substância da bruxa, bem como do demônio e do pecado em geral, sempre foi uma só: o sexo, no que este tem de desconhecido, incontrolável, ameaçador. Em especial o sexo da mulher, visto desde Eva como fator de instabilidade, quando não de danação e queda, pelo pensamento judaico-cristão.

Pois bem. A bruxa, de Robert Eggers, dá a ver claramente essa conexão ao condensar cinematograficamente uma profusão de crenças e fantasias sobre bruxaria arraigadas no imaginário popular. Não à toa Eggers (originalmente diretor de arte) foi buscar para seu longa de estreia narrativas orais perpetuadas no folclore da Nova Inglaterra." 


Como nascem as bruxas

POR José Geraldo Couto  

José Geraldo Couto: no cinema | 11.03.2016


A substância da bruxa, bem como do demônio e do pecado em geral, sempre foi uma só: o sexo, no que este tem de desconhecido, incontrolável, ameaçador. Em especial o sexo da mulher, visto desde Eva como fator de instabilidade, quando não de danação e queda, pelo pensamento judaico-cristão.

Pois bem. A bruxa, de Robert Eggers, dá a ver claramente essa conexão ao condensar cinematograficamente uma profusão de crenças e fantasias sobre bruxaria arraigadas no imaginário popular. Não à toa Eggers (originalmente diretor de arte) foi buscar para seu longa de estreia narrativas orais perpetuadas no folclore da Nova Inglaterra.


Palavra e corpo

Tudo se concentra aqui em poucos personagens e num território circunscrito. Trata-se de uma família – homem, mulher e cinco filhos – expulsa de um vilarejo de colonos britânicos na região que viria a ser o nordeste dos Estados Unidos, em 1630. A expulsão, deduzimos pelo diálogo inicial, deu-se pelo fanatismo religioso do chefe da família, William (Ralph Ineson), que colidia com regras e práticas da própria igreja instituída.

Antes de ver o rosto de William, ouvimos sua voz trovejante, de ressonâncias bíblicas. É quase uma voz abstrata, vinda do alto, das esferas da pura fé. Ao longo de todo o filme, o que se verá serão as inúmeras formas de embate entre a Palavra (assim mesmo, em maiúscula) e o corpo, com suas impurezas e ameaças.

Esse conflito acaba por se dar no interior de cada indivíduo, a começar pela filha mais velha, Thomasin (Anya Taylor-Joy), em pleno desabrochar da sexualidade adolescente – que o cineasta insinua de modo sutil e contido. A primeira coisa que ouvimos dela é uma oração em que pede perdão a Deus por seus pecados em pensamento. O descompasso entre a consciência e o desejo, entre o espírito e a carne, moverá todo o filme.

Desastres sucessivos abatem-se sobre a família: o filho caçula, ainda bebê, é roubado (por um lobo? por uma bruxa?), a colheita é arruinada, vêm à tona segredos e conflitos entre os irmãos e entre os pais. Tudo é interpretado como sinal, castigo ou vaticínio.

Adesão ao folclore

A organização do espaço é precisa. Há a casa, o barracão dos animais, a lavoura e, ao fundo, a floresta – misteriosa, impenetrável, interdita. É lá que se escondem todos os pesadelos.

Ao longo do relato, enquanto cresce a tensão entre os personagens, proliferam os signos carregados de sentido erótico-religioso: a maçã, o bode e, claro, a bruxa. O filme não adota um distanciamento crítico, por assim dizer “materialista”, diante do folclore e dos mitos. Ao contrário: adere a eles, penetra fundo, como que para revelar suas entranhas.

Impressiona a segurança narrativa de Eggers, seu domínio do ritmo e da composição. A fotografia é notável sobretudo nas cenas internas noturnas, com seu magnífico claro-escuro de pintura barroca, que deixa sempre boa parte do quadro num negro profundo, os objetos e seres cambiando sob a luz bruxuleante das velas. Tudo acentua a atmosfera ameaçadora e imprevisível.

Um admirável longa-metragem de estreia, em suma. Duas últimas observações: A bruxa ganhou o prêmio de direção no festival Sundance; um de seus produtores é o brasileiro Rodrigo Teixeira, que, coproduziu, entre outros filmes significativos, o brasileiro Quando eu era vivo, de Marco Dutra, e o francês Love, de Gaspar Noé.

Dois filmes franceses

Estão entrando em cartaz duas produções francesas que merecem ser vistas por motivos diversos: Astrágalo, de Brigitte Sy, e É o amor, de Paul Vecchiali. Uma das poucas coisas que têm em comum é que são, cada um à sua maneira, histórias de amor. Além disso, também de maneiras diferentes, ambos dialogam com o que poderíamos chamar de “herança da Nouvelle Vague”, no sentido de se beneficiarem do influxo libertário do movimento francês dos anos 1950 e 60 em relação à narrativa convencional.

Astrágalo, baseado no livro autobiográfico homônimo de Albertine Sarrazin, conta a história de uma jovem delinquente (Leila Bekhti) que, no final da década de 1950, foge da prisão e se torna amante de um pequeno criminoso (Reda Kateb), com quem mantém uma relação complexa e intermitente, enquanto se prostitui e escreve memórias e poemas. (Quando publicou seu livro, entre uma e outra detenção, Albertine foi saudada como uma espécie de Jean Genet de saias.)


A mesma história já tinha sido filmada em 1968 por Guy Casaril. Na versão de Brigitte Sy (também atriz, mãe dos atores Esther Garrel e Jean Garrel, ambos no elenco de Astrágalo), o que chama a atenção é o modo enxuto e elegante com que ela conta essa história de “vida louca”, à margem da lei e das convenções.

Num preto e branco de relativamente baixo contraste, que explora todas as nuances do cinza, sua narrativa se constrói de elipses precisas e planos límpidos, fragmentados, quase bressonianos, solicitando a participação do espectador para a construção do espaço e do sentido das cenas. Tão raros são os enquadramentos abertos que, quando ocorrem, são de uma força poética arrebatadora.

Em tempo: astrágalo, hoje mais chamado de tálus, é um osso do pé em forma de cubo, que a protagonista fratura logo no início do filme, ao fugir da prisão. Espero que a estranha proparoxítona não afugente o público.

Todas as formas de amor

Em contraste com a limpidez quase ascética de Astrágalo, o filme do veterano Vecchiali é heterogêneo, misturando gêneros e humores em seu andamento trôpego, com sequências à primeira vista desconexas do ponto de vista estético. Um modo irônico, meio distanciado, de falar das formas diversas do amor: conjugal, homoerótico, filial, platônico, narcísico.

Já nos primeiros quinze minutos há de tudo: ator falando diretamente para a câmera, entrevista televisiva, filme dentro do filme, discussão de casal filmada primeiro do ponto de vista dele, depois do dela etc. Este último procedimento – reapresentar a mesma cena, o mesmo diálogo, de outro ponto de vista – se repete em outro momento do filme, ficando a meio caminho entre o instrumento de revelação e o mero cacoete. É como um campo/contracampo distendido no tempo e, com isso, desconstruído em seu mecanismo.

É um pouco como se Vecchiali, que começou a fazer cinema na época da Nouvelle Vague, meio à margem do movimento, quisesse compendiar aqui práticas antinaturalistas e emancipatórias conquistadas naquela época e esquecidas nos últimos tempos. Talvez soe como algo requentado, mas não deixa de ter seu encanto e sua graça. O próprio Vecchiali, corso de nascimento, atua como o velho pai de um dos protagonistas, o contador de origem corsa Jean Raffali (Julien Lucq).



José Geraldo Couto

José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.

Fonte: BLOG DO IMS

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