março 09, 2016

Fausto e Mefistófeles: o estranho em pauta. Por Fernanda Zacharewicz (STYLETE)

PICICA: "Este trabalho é uma styletada na obra Fausto, de Goethe. Tratarei da relação de Fausto com Mefistófoles nas quatro primeiras cenas da obra.


Fausto e Mefistófeles: o estranho em pauta 

 

Fernanda Zacharewicz
fzacharewicz@yahoo.com


Este trabalho é uma styletada na obra Fausto, de Goethe. Tratarei da relação de Fausto com Mefistófoles nas quatro primeiras cenas da obra.

Logo na primeira cena, Fausto tenta o suicídio. A cena seguinte é derivada do fracasso de sua tentativa. Fausto saúda a primavera, expressando a renovação da vida. Porém, esse desabrochar não é ingênuo. Fausto percebe-se como sujeito dividido:

Vivem-me duas almas, ah! no seio,
Querem trilhar em tudo opostas sendas;
Uma se agarra, com sensual enleio
Órgãos de ferro, ao mundo e à matéria;
A outra, soltando à força o térreo freio,
De nobre manes busca a plaga eterna. [1]

Há melhor descrição do dualismo pulsional freudiano? Eis aí, transcrito nos versos acima, o seguinte trecho de Freud, em 1920:

É como se a vida do organismo se movimentasse em um ritmo vacilante. Certo grupo de instintos se precipita como que para atingir o objetivo final da vida tão rapidamente quanto possível, mas, quando determinada etapa foi alcançada, o outro grupo atira-se para trás até certo ponto, a fim de efetuar nova saída e prolongar assim a jornada. [2]

É justamente esse o movimento que se repetirá em toda a obra: a pulsão de morte que leva Fausto quase ao Nirvana e a pulsão de vida que, insatisfeita, o lança mais adiante em sua jornada. Essa evolução está evidente nas duas cenas acima descritas.

Se então já temos Fausto dividido entre as duas pulsões, qual o papel de Mefistófeles? Será ele o elemento externo que o tenta? De onde e como surge? Em que condições se dá o trato entre eles? Mefistófeles, na forma de um cão, segue Fausto e seu aprendiz, Wagner, ainda no final da cena cujo tema é a primavera:

FAUSTO
Vês o cão negro a errar pelo restolho e seara?
(...)
FAUSTO
Vês como em largas espirais nos roda
E nos galopa perto e mais perto ainda à vista?            
E, caso não me iluda, brilha-
-Lhe um borbulhão de fogo sobre a trilha. [3]

É Fausto quem nota no cão algo de diferente, o “borbulhão de fogo”. Se isso é algo do próprio sujeito, percebido e projetado no outro, o que o cão e o fogo sobre a trilha representam para Fausto?

Há que lembrar que Fausto era um doutor, pesquisava tanto assuntos físicos, químicos quanto outros estudos. Freud escreve especificamente sobre o trabalho intelectual:

Por fim, é inequívoco que a concentração da atenção numa tarefa intelectual, bem como o esforço intelectual em geral, têm por consequência produzir em muitas pessoas, tanto jovens quanto adultas, uma excitação sexual concomitante o que por certo constitui a única base justificável para a tão duvidosa prática de derivar as perturbações nervosas do “excesso de trabalho” intelectual. [4]

Em 1937, Freud cita Fausto duas vezes. A primeira, quando trata da repetição [5] e a outra quando compara Fausto a um pensador grego que, por outras vias, teria também chegado ao dualismo pulsional [6]. Para isso, Freud evoca a primeira fala de Fausto:

Ai de mim! da filosofia,
Medicina, jurisprudência,
E, mísero eu! Da teologia,
O estudo fiz, com máxima insistência.
Pobre simplório, aqui estou
E sábio como dantes sou! [7]

Será possível levantar a hipótese que Goethe, através do trabalho intelectual de Fausto, aponta o seu desejo de saber? Os versos acima refletem a busca pelo conhecimento, mas, simultaneamente, expõem a impossibilidade de tal feito. Preconiza-se que Fausto sustenta a busca pelo saber. Mas que saber é esse?

O estatuto do saber implica, como tal, que já há saber e, no Outro, que ele é para ser tomado (à prendre), que é por isso que ele é feito de aprender (apprendre). O sujeito resulta de que ele deva ser aprendido (appris), esse saber, e mesmo avaliado (mis à pris), ou seja, é seu custo que o avalia, não como valor de troca, mas de uso. [8]

Alguns versos adiante, no quarto de trabalho de Fausto, se dá a transformação do cão em Mefistófeles. Ele se apresenta como:

O Gênio que sempre nega! [9]

É justamente o saber que o impulsiona e assim Mefistófeles se nomeia: gênio. Nesse significante está a afirmação que ele sabe. O que ele sabe? Sabe sobre o gozo. Ele poderia ser considerado aqui o Outro? Porém, logo sem seguida, na fala de Mefistófeles, está a negação. Essa negação se refere à impossibilidade do saber total ou à negação de si mesmo como gênio? A hipótese levantada é que Mefistófeles nega, nesse verso, as duas coisas – a possibilidade do gozo pleno e a si mesmo como gênio, e isso fica explícito no decorrer do livro. Com Freud afirma-se que, através dessa negação, surge o inconsciente. Inconsciente de quem? De Mefistófeles ou de Fausto?
É Fausto que propõe o pacto à Mefistófeles. É ele que convoca esse Outro, detentor de saber:

Podemos, pois, firmar convosco algum contrato,
Sem medo de anular-se o pacto? [10]

Fausto pede a Mefistófeles o prazer supremo, o gozo sem limites e, se o atingir, se compromete com o próprio fim:

E sem dó nem mora!
Se vier um dia em que ao momento
Disser: Oh, para! És tão formoso!
Então algema-me a contento,
Então pereço venturoso!
Repique o sino derradeiro,
A teu serviço ponhas fim,
Para a hora então, caia o ponteiro,
Que o tempo acabe para mim! [11]

Como escreve Lacan, Fausto compromete assim a própria vida em troca do saber de gozo.

O saber vale exatamente na medida em que ele custa beaucoup (muito) – escrevam beau-coût (belo custo) – porque se tem de deixar aí a própria pele, pois é difícil. Difícil de quê? Pois bem, menos de adquiri-lo do que de gozar dele. [12]

Quem é esse que tem acesso ao gozo pleno, que conhece Fausto a fundo, que é capaz de incendiar a trilha do desejo e que, embora livre da aparência de cão, permanece com uma pata, mancando, marcado pela insígnia da falta?

O fato de que existe uma atividade dessa natureza, que pode tratar o ego como objeto – isto é, o fato de que o homem é capaz de auto-observação – torna possível investir a velha ideia de ‘duplo’ de um novo significado e atribuir-lhe uma série de coisas – sobretudo aquelas coisas que, para a autocrítica, parecem pertencer ao antigo narcisismo superado dos primeiros anos. [13] 

Freud refere-se diretamente à Mefistófeles:

Também podemos falar de uma pessoa viva como estranha, e o fazemos quando lhe atribuímos intenções maldosas. Mas não é tudo; além disso, devemos sentir que suas intenções de nos prejudicar serão levadas a cabo com o auxílio de poderes especiais. (...) A piedosa Grethen tinha a intuição de que Mefistófeles possuía poderes secretos dessa natureza que o tornaram tão estranho para ela. [14]

Advoga-se que Mefistófeles é o estranho de Fausto, o que tem acesso ao gozo.  Aquele que pode realizar os desejos, que tem os meios e, para isso, ultrapassa qualquer princípio. É “o elemento infantil, (...), um aspecto estreitamente ligado à onipotência dos pensamentos” [15].

Lacan corroboraria com essa hipótese já na cena do surgimento do cão:

O que quero acentuar hoje é apenas que o horrível, o suspeito, o inquietante, tudo aquilo pelo qual traduzimos para o francês, tal como nos é possível, o magistral unheimlich do alemão, apresenta-se através de claraboias. É enquadrado que se situa no campo da angústia. Assim vocês reencontram aquilo por meio do qual introduzi a discussão, ou seja, a relação da cena com o mundo. (...) “Súbito”, “de repente” (...) permite que surja aquilo que, no mundo, não pode ser dito. [16]

Porém, o encontro do sujeito com o Estranho é impossível, ao sujeito é barrado o gozo pleno. Será que se entendermos a negação de Mefistófeles ao se apresentar, assim como a pata que o faz mancar, como a barra do Outro, podemos compreender porque, em toda a tragédia goethiana, Fausto não atinge o gozo pleno?
Interrompe-se aqui esse ensaio, não sem antes apontar que há, à luz da Psicanálise, outros cortes possíveis a fazer nessa obra.

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[1] GOETHE, J. W. Fausto: uma tragédia: primeira parte. São Paulo: Ed.34, 2011. 416 p., v. 1112 a 1117.
[2] FREUD, S. (1920) Além do princípio do prazer. In: FREUD, S. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, Vol. XVIII, p.51.
Aconselho o leitor a considerar o termo pulsão, no lugar da palavra instinto. Embora não utilizada pelos tradutores dessa obra, o termo pulsão expressa mais adequadamente a teoria pulsional freudiana.
[3] GOETHE, J.W. Op. Cit. v.1147 a 1155.
[4] FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre sexualidade. In: FREUD, S. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, Vol. VII, p.193.
[5] FREUD, S. (1937) Análise Terminável e Interminável. In: FREUD, S. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, Vol. XXIII, p.253.
[6] FREUD, S. Op. Cit., p.260-261.
[7] GOETHE, J.W. Op. Cit. v. 354 a 359.
[8] LACAN, J. (1972-1973) Encore. Rio de Janeiro: Escola da Letra Freudiana, 2010. p.192.
[10] GOETHE, J.W. Op. Cit. v. 1413 a 1415.
[11] GOETHE, J.W. Op. Cit. v. 1698 – 1706.
[12] LACAN, J. (1972-1973) Op. Cit. p.192.
[13] FREUD, S. (1919) O estranho. In: FREUD, S. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, Vol. XVII, p.253.
[14] FREUD, S. Op. Cit., p.260.
[15] FREUD, S. Op. Cit., p.261.
[16] LACAN, J. (1962-1963). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 86, aula de 19/12/1962.

Fonte: STYLETE

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