PICICA: "As lentes de GRACIELA ITURBIDE
mostram um México sem lugares-comuns, no compasso lento da cultura
indígena, das paisagens desoladas e de um surrealismo muito próprio."
Pássaro solitário
:Publicado em: 08 de março de 2016
A grande dama da fotografia mexicana não tem pressa. Aos 73 anos, Graciela Iturbide continua a caminhar pela vida sem afoiteza. Gosta de tomar emprestada uma frase de Pablo Picasso para definir o seu processo de criação: “Eu não procuro, eu encontro”. Costuma só erguer a câmera se cruzar com algo que mereça ser retratado sob outro prisma. Algo que desperte nela o desejo de transformar a realidade numa visão mais autoral.
Isso exige da artista abrir mão da pressa. E explica por que alguns de seus ensaios levam cinco ou até dez anos para serem concluídos. Como observou Marta Gili, diretora do museu parisiense Jeu de Paume e autora do livro Graciela Iturbide (Phaidon, 2010), se algo extravasa nas imagens de Iturbide, é o tempo.
Sua iniciação no métier foi tardia. Estava casada havia oito anos com o arquiteto Manuel Rocha Díaz e tinha três filhos quando decidiu estudar cinema na Unam, a Universidad Nacional Autónoma de México. Mudou de rota ao conhecer o professor que se escondia por trás do monumento nacional chamado Manuel Álvarez Bravo, figura máxima da fotografia mexicana do século 20.
Com Álvarez Bravo, Iturbide aprendeu a se expressar através de uma câmera. Durante o ano e meio em que cursou suas aulas, foi sua achichincle, a aprendiz que não sai da órbita do mestre. Nos fins de semana, eles faziam explorações fotográficas pelas franjas da Cidade do México. Nessas ocasiões, ela observava don Manuel: sempre que se interessava por alguma paisagem, ele parava o automóvel, montava a câmera no tripé e aguardava. Esperava que algo acontecesse. Só que esse algo era indefinido. Podia acontecer ou não. Podia demorar minutos ou horas. Uma mulher podia entrar no quadro, uma sombra podia se formar no solo. Álvarez Bravo não tinha pressa.
Não por acaso, o mestre mantinha um lembrete afixado no laboratório de sua casa de Coyoacán: “há tempo, há tempo”. Para que as coisas dessem certo, era preciso fazê-las com calma. Dele, Iturbide herdou essa “poética da paciência” e a incorporou para mirar no sublime.
Após sorver o máximo do conhecimento e experiência de Álvarez Bravo, a discípula aprendeu a ver e retratar o mundo com olhar próprio. Por intuição e talento, Iturbide jamais tentou imitar o consagrado estilo de don Manuel. Nem sequer tripé ela usa. Conseguiu cortar o cordão umbilical e alçar voo solo sem trincar a funda amizade que os uniu até o fim.
Quando don Manuel morreu, em 2002, aos cem anos, a fotografia de Iturbide já engalanava grandes acervos – entre eles, o do MoMA (Nova York), do Centro Georges Pompidou (Paris), do sfmoma (São Francisco), do Museu J. Paul Getty (Los Angeles) e do Museu Victoria & Albert (Londres). Dos prêmios que ainda lhe faltavam, Iturbide recebeu, em abril de 2015, pelo conjunto da obra, o prestigioso Cornell Capa, do Centro Internacional de Fotografia (ICP, na sigla em inglês), de Nova York.
Desde a sua estreia, com dois ensaios de fôlego, foi saudada como um talento raro. Hoje, quatro décadas depois, é uma das mais importantes e influentes fotógrafas latino-americanas.
Sempre que o nome Graciela Iturbide é pronunciado, a imagem que primeiro salta à mente é a de um misterioso vulto visto de costas que se alça sobre o deserto de Sonora: Mulher anjo, de 1979.
A foto faz parte do primeiro ensaio relevante da artista, contratada pelo departamento etnográfico do Instituto Nacional Indigenista mexicano para fazer o mapeamento visual de um povo ex-nômade do norte do país. Acompanhada do antropólogo Luis Barjau, Iturbide conviveu durante um mês e meio com os Seris, na região desértica de Punta Chueca, não longe do estado americano do Arizona, e registrou a seu modo as adaptações da tradicional cultura indígena à infiltração consumista que cruzava a fronteira.
O ensaio, que recebeu o título de Os que vivem na areia, revelou um forte estilo autoral e desnorteou quem esperava um estudo etnográfico clássico. A imagem da Mulher anjo ofuscava por completo a proposta original do projeto e catapultou a artista para a fama. Enquanto os amantes de fotografia festejavam o ímpeto desbravador da novata Iturbide, antropólogos lamentavam a imprecisão documental das legendas, a abordagem emocional das imagens, o desinteresse da artista por questões científicas.
Ainda hoje, vez por outra, Mulher anjo suscita questionamentos quanto à veracidade e ao realismo da cena retratada. A cena teria ocorrido durante uma incursão de Iturbide e Barjau às profundezas do deserto, em busca de pinturas rupestres numa caverna. A figura algo fantasmagórica da foto era uma Seri que lhes serviu de guia; o rádio em sua mão provavelmente fora recebido de algum redneck do Arizona em troca de artigos de artesanato.
Iturbide diz ter revelado o filme e olhado as folhas de contato sem notar a imagem que se tornaria célebre. A partir daí, sua narrativa se embaralha. A fotógrafa ora não lembra como nem quando acionou o disparador, ora duvida ter sido a autora do clique. “Acho que foi um presente que o deserto me deu”, diz, em resumo. “Eu a batizei de Mulher anjo por dar a impressão de poder sair voando pelo deserto.”
A tentativa de aplicar critérios de fotojornalismo a uma das raríssimas imagens em movimento da artista acaba sendo de pouca serventia. O valor da imagem é outro. Assim como são outros os parâmetros que regem a obra completa da artista que Óscar Colorado Nates, professor na Universidad Panamericana, da Cidade do México, define como “señora de los símbolos”.
Tampouco importa se as seis iguanas vivas na cabeça de uma mulher de Juchitán – talvez a segunda obra mais conhecida da artista – foram ou não arranjadas à mão para que a fotógrafa pudesse imortalizar a cena. “Não sou antropóloga nem socióloga. Tiro fotos pelo gosto de fazê-las, nunca fotografo nada apenas para documentar”, repete Iturbide à exaustão.
Por trás do famoso retrato, que recebeu o título de Nossa Senhora das Iguanas (1979), havia uma mulher de muitas carnes e grandes ossos, como a maioria de sua etnia. Chamava-se Zobeida e estava a caminho da feira para vender a mercadoria que carregava na cabeça quando foi interceptada pela câmera de Iturbide.
Zobeida e as mulheres do povo Zapoteca tiveram impacto relevante na vida e obra da fotógrafa. Recém-retornada do seu batismo indigenista em meio aos Seris, no deserto, ela recebeu um convite tentador de Francisco Toledo, o mais celebrado pintor e artista plástico mexicano da atualidade. Militante por vocação e humanista de formação, Toledo queria dar visibilidade nacional ao que ainda restava do indomável povo Zapoteca, do extremo sul do país. Sendo ele mesmo um nativo da região, alarmava-o não existir um registro visual à altura daquele patrimônio humano.
E foi assim que a fotógrafa, até então enraizada na elite urbana da capital, desembarcou em Juchitán, no remoto istmo de Tehuantepec, e encontrou a vibrante sociedade matriarcal que a arrebatou.
Ela mesmo descreveu o quanto foram íntimos os laços que pontuaram seu trabalho desbravador: “São mulheres fortes, fisicamente grandes, politizadas, emancipadas, maravilhosas. Descobri o mundo das mulheres. Morei na casa delas. Me adotaram. Deram-me acesso a sua vida cotidiana e a suas tradições. Contavam histórias eróticas, faziam troça o tempo todo. Ensinaram-me as propriedades afrodisíacas do lagarto, conhecidas por poucos fora da região do istmo. Não apenas permitiram que eu as fotografasse como tomaram a iniciativa de me mostrar coisas. Passei a descrever Juchitán através dos olhos delas e ao mesmo tempo dos meus”.
Juchitán já foi descrito como um lugar mítico, onde o homem encontra a sua origem, e a mulher, a sua essência mais profunda. “Ali”, escreveu o historiador de arte popular e caricaturista Miguel Covarrubias, “não existe o comportamento evasivo nem a humildade servil que caracterizam outros povos indígenas, cuja força de caráter foi minada pela repressão direta de uma mesma classe social”. A descrição da sociedade zapoteca feita pela escritora e jornalista Elena Poniatowska, ganhadora do Prêmio Miguel Cervantes em 2013, é bem mais desinibida. Seu memorável ensaio para o livro Juchitán das Mulheres começa assim: “Em Juchitán, Oaxaca, os homens não sabem o que fazer com eles mesmos exceto enfiar-se dentro das mulheres. As crianças ficam penduradas no peito das mães e as iguanas observam o mundo do alto das cabeças. Em Juchitán, as árvores têm coração e os homens têm pênis doces ou salgados, dependendo do seu gosto. As mulheres têm muito orgulho de serem fêmeas pois carregam a sua redenção entre as pernas e dão a cada um a morte que desejam. Elas chamam fazer amor de ‘pequena morte’.”
A fotógrafa descobriu-se num lugar onde o poder do dinheiro pertencia à mulher, a única a mandar na feira, a fixar os preços e a negociar os valores na praça, além de cuidar da casa, decidir sobre as questões de família e centralizar as atividades religiosas. Ao homem cabia sair cedo para caçar, colher ou pescar, e no final da labuta apenas entregar o que conseguiu. Em Juchitán das Mulheres, o esplêndido ensaio fotográfico que a içou ao patamar superior do métier, Iturbide deu conta de tudo: captou o humor escrachado, a nudez assertiva, a força física e desinibida de um México feminino que os próprios mexicanos desconheciam.
Com o feminismo ocidental em marcha acelerada naqueles anos 1980, a publicação do ensaio foi recebida com frisson. E não tardou para que a imagem da señora de olhar confiante e iguanas na cabeça fosse incorporada à galeria de símbolos do movimento. A visita de ativistas da Inglaterra e do Japão para entrevistar Zobeida em Juchitán apenas aprofundou o equívoco. Perguntaram-lhe se era feminista. Ela respondeu que sim – referindo-se ao fato de ser viúva e ser obrigada a sustentar-se sozinha. “É assim que mitos são criados”, constatou, tempos depois, a autora do célebre retrato.
Stanley Brandes, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley e notória autoridade em antropologia visual, religiões populares e folclore, fez uma interessante reflexão sobre as séries indigenistas de Iturbide no México (além dos Seris e dos Zapotecas do istmo, ela também fotografou os Mixtecas). Num ensaio de 2008, publicado no periódico Visual Anthropology Review, Stanley Brandes afirma: “Graciela Iturbide, cujo corpus fotográfico é intimamente pessoal e cuja meta primária é estética, não se enquadra em normas científicas. […] Mas eu a definiria como uma ‘antropóloga nata’. Seus retratados são os mesmos tipos de pessoa que os antropólogos mais estudam – povos indígenas, grupos marginalizados ou esquecidos e, sobretudo, mulheres. […] E os seus retratos, apesar da deficiência nas legendas e da insuficiência de dados, fornecem rica informação etnográfica. […] Para ela, a fotografia tornou-se uma forma de terapia, o meio pelo qual pode transcender as circunstâncias da vida imediata e mostrar a seu público um México que mesmo nós, antropólogos, imaginávamos só vagamente existir”.
As “circunstâncias da vida” a que se refere Brandes golpearam Iturbide quando ela tinha 28 anos, pouco antes de partir para Juchitán: uma doença roubou-lhe a filha Claudia, de seis anos de idade, e a posterior separação do marido. Foi o começo de uma longa jornada ao fim da noite. Durante os cinco anos seguintes, ficou obcecada em frequentar cemitérios de vilarejos para fotografar o enterro sempre ritualizado de angelitos.
A própria Iturbide estudara em um internato de freiras e crescera arrebatada por alguns rituais da escola – vestir-se de anjo, receber uma coroa de folhas de louro na formatura, desempenhar o papel da Virgem no palco. Assim como os seus conterrâneos, também conhece desde criança o festivo culto à morte que impregna o país. “Acho que temos tanto medo dela que nos tornamos um povo dedicado a festejá-la”, diz a artista.
Ao contrário do tom fúnebre e choroso que marca o 2 de novembro no resto do mundo, no México o Dia dos Mortos é uma celebração colorida e ruidosa, que dura dois dias, na qual se festeja a visita da alma dos angelitos que morreram e prepara-se a bebida preferida dos adultos que partiram, para que os vivos brinquem por estarem vivos.
Por ter perdido uma filha, a morte ficou verdadeira demais para Iturbide: ela admite ter dificuldade em falar sobre o tema até hoje, passado um quarto de século. Em contrapartida, quando Iturbide empunha a câmera, a morte encontra abrigo generoso e expressão plena ao longo de toda a sua obra.
Em entrevista à escritora Fabienne Bradu, a artista resume assim sua relação com o ofício: “Fotografia não é a verdade. É o fotógrafo que interpreta a realidade e a reconstrói de acordo com suas emoções e conhecimentos. Sem a câmera você vê o mundo de um jeito. Através das lentes você sintetiza o que você é e o que aprendeu. No fundo você está sempre fazendo o seu próprio retrato. Está interpretando”.
A magistral série de Iturbide sobre pássaros, seu conjunto de imagens talvez mais belo, por perturbador, retrata esse dilaceramento. Ela os vê ora como mensageiros da morte, ora como guardiães. Quase sempre os fotografa em voo e em bandos – por vezes, em formação tão cerrada que parecem engolir a atmosfera.
A artista encontra refúgio na companhia do “Pássaro solitário”, texto do sacerdote espanhol São João da Cruz, que tem sempre à mão. Ela admite se reconhecer nas cinco características que o autor atribui àquela ave – voar mais alto que os demais, não tolerar nenhuma companhia, nem mesmo a de seus pares, apontar o bico contra o vento, cantar com suavidade e ter cor indeterminada para não chamar atenção. Talvez esta seja mesmo uma boa definição para Iturbide: pássaro solitário.
“Não creio em nada”, afirma a fotógrafa. Fé religiosa ela não tem. O que a encanta são os rituais, o sagrado, o místico, os acasos carregados de significado. No documentário Há tempo (2007), dirigido por Alejandro Gómez de Tuddo para o Museu J. Paul Getty, ela faz uma terna narrativa de uma primeira viagem a Roma, repleta de simbolismos e sinais ocultos. Contou estar com um amigo na Piazza Mattei, contemplando a Fonte das Tartarugas, quando notou uma inscrição de apenas duas palavras numa pequena placa: festina lente. Havia transcorrido muitas décadas desde que abraçara a fotografia, e de repente tudo se encaixava: as palavras em latim significam “apressa-te devagar”. Exatamente o que aprendera com don Manuel Álvarez Bravo no início da carreira e constava do lembrete afixado na casa dele – “Há tempo”.
Outras coisas são menos decifráveis, inexplicáveis até para a própria artista. É o caso de boa parte dos seus autorretratos. Iturbide faz fotos de si mesma com regularidade. Composições que, segundo ela, brotam de urgências inconscientes. Cita como exemplo uma imagem em que tem a cabeça recostada no chão e os olhos encobertos por dois pássaros. Uma ideia fugaz tinha lhe ocorrido dias antes: precisava de um pássaro. Não se perguntou para que nem por quê. A partir daí, o resto sucedeu motu proprio: ela primeiro conseguiu um pássaro vivo, depois outro, morto, acomodou ambos sobre o rosto e pensou no título: Olhos para voar?
Outros autorretratos a mostram de pé, com um peixe cobrindo a boca, ou com um caramujo colado ao rosto, ou ainda com cobras a lhe escorrer dos lábios. Iturbide prefere nem tentar interpretar: “Nada é planejado, são flashes que afloram à minha imaginação e contêm a essência do que eu sou – para o bem ou para o mal”.
Não é apenas nos autorretratos que a mexicana produz imagens que parecem saídas de um sonho fragmentado, roubado de uma narrativa e com distorções de escala que geram estranhamento. São fotos indefinidas no tempo e no espaço: uma gigantesca avestruz imóvel num cruzamento de avenidas, vários relógios sem ponteiros, espetados num tronco, árvores encobertas por panos negros lembrando reféns encapuçados.
A comunhão de Iturbide com a natureza pode ser atestada pela forma como ela descreve uma ida ao Jardim Botânico de Oaxaca. Em vez de focar nas plantas mais belas, mirou nas que estavam em tratamento de conservação: “Havia plantas cobertas por véus, outras se sustentavam com muletas, outras ainda sofriam por estarem amarradas. A visita coincidiu com um período de tristeza, então fotografei as que estavam doentes, cheias de ataduras, precisando se recuperar”.
Por mais que se queira apontar influências em sua obra, ou pelo menos intersecções, é mais seguro limitar-se a citar fotógrafos que Iturbide admira que detectar inspirações diretas. As preferências da artista são conhecidas e ecléticas, pois vão do francês Jacques-Henri Lartigue ao sueco Christer Strömholm e aos americanos Edward Weston e Francesca Woodman, e ela cultiva um fascínio especial pela obra do húngaro Brassaï. De Álvarez Bravo, herdou a admiração pelos surrealistas, e a Josef Koudelka deu uma demonstração de respeito única: até hoje não publicou as fotografias feitas com ciganos em Almeria por considerar que a obra do tcheco sobre o tema é tão grandiosa e definitiva que seria falta de respeito. Tampouco publicou as fotografias feitas nos anos 1970 dos circos decadentes (“me encanta a solidão desse universo”), pensando no trabalho de Mary Ellen Mark sobre o tema. “Algum dia, talvez”, diz Iturbide.
Um dos motivos que a levaram a cruzar fronteiras fotográficas e procurar se expressar através de objetos e paisagens, não mais retratos humanos, foi para se libertar das imagens que se tornaram ícones no início de sua carreira e ofuscaram as demais. E, para acompanhá-la nessa decolagem criativa, nada mais impactante do que as 101 fotografias em formato quadrado reunidas no livro Asor, de 2009. Desvendar essa obra não é fácil. As imagens vêm sem nenhum texto que possa servir de bússola – sem prefácio, introdução, apresentação ou posfácio. As fotos não são datadas, não têm título nem legenda. Pairam sozinhas na página e não retratam elementos humanos. A única presença humana nessa viagem sem roteiro é o leitor.
Em contrapartida, em outro ensaio da artista em que também não se vê nenhuma figura humana, uma mulher extraordinária se faz presente o tempo todo. É o resultado do encontro entre duas mexicanas que nunca se conheceram de verdade: Graciela Iturbide e Frida Kahlo.
Dez anos atrás, as autoridades responsáveis pelo acervo cultural de Kahlo concordaram em abrir ao público um banheiro da famosa Casa Azul da pintora que permanecera vedado desde a sua morte, em 1954. No entender do muralista Diego Rivera, marido dela, o banheiro e a parafernália ortopédica ali guardada jamais deveriam ser expostos à curiosidade mundial. Para garantir a privacidade póstuma da pintora, Rivera determinou que o aposento permanecesse lacrado.
Kahlo, além de ter contraído poliomielite aos seis anos e de mancar de uma perna, sofreu um gravíssimo acidente aos dezoito, passou por mais de trinta cirurgias (sete na coluna vertebral), usava armaduras ortopédicas para poder suportar as dores atrozes e ainda teve uma perna amputada dois anos antes de morrer.
Passadas cinco décadas, contudo, o acesso acabou sendo liberado. E recaiu sobre Iturbide a missão de documentar o universo privado da Casa Azul. Ela optou por algo mais audacioso: fazer um retrato Kahlo através do que podia ver no refúgio mais privativo e solitário da pintora, o banheiro. Nasceram assim as 21 imagens que compõem o extraordinário ensaio O banheiro de Frida.
O banheiro era o lugar em que Frida ficava cara a cara com a dor e com o corpo retorcido. No lugar das coloridas saias, blusas e adornos com que sempre se cobriu, a pintora tinha ali, dependurados em ganchos, os seus vários coletes ortopédicos, de aspecto medieval, as muletas e todo o equipamento hospitalar.
A fotógrafa encontrou a linguagem adequada para retratar esse inferno privativo e revela Kahlo sem que ela esteja presente. É como se a víssemos e a compreendêssemos pela primeira vez. A perna artificial da pintora, fotografada de pé contra uma parede da casa, como a chamar sua dona para a vida fora do banheiro, é de uma melancolia abissal.
Iturbide vive há mais de duas décadas na mesma casa do Barrio del Niño Jesús, em Coyoacán, para onde se mudou a conselho de Álvarez Bravo, um enclave da capital mexicana onde famílias humildes convivem com artistas em busca de sossego. Um dos frequentadores mais queridos da fotógrafa é o mesmo Francisco Toledo que a chamou para retratar os Zapotecas e de quem se tornou amiga para toda a vida. A índole transbordante do pintor de Oaxaca fez nascer entre eles uma cumplicidade brincalhona e tem servido de porto seguro para Iturbide.
A fotógrafa, para quem a câmera tornou-se um pretexto para ver o mundo e o interior de si mesma, ampliou o conceito de fotografia documental. Como justificou a Fundação Hasselblad ao premiar seu trabalho, ela explora a relação entre o homem e a natureza, o indivíduo e a cultura, o real e o psicológico.
Como visão de vida, Iturbide resume em poucas palavras o essencial de toda a sua obra: “Viemos ao mundo para sonhar, só isso. E para, um dia, ir para o outro lado”. ///
imagens: © Graciela Iturbide
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Asor, de Graciela Iturbide (Steidl, 2009)
Conversaciones con fotógrafos – Lo real (La Fabrica, 2010)
Graciela Iturbide: Juchitán de las mujeres 1979-1989 (RM, 2010)
Graciela Iturbide, de Marta Gili (Phaidon, 2010)
Hay tiempo, documentário de Alejandro Gómez de Tuddo (Getty Museum, 2007)
Dorrit Harazim (1943) é jornalista e foi colunista do site da ZUM. Recebeu o prêmio Gabriel García Márquez de jornalismo em 2015.
Graciela Iturbide (1942), fotógrafa formada pelo Centro de Estudos Cinematográficos da Universidade Autônoma do México, é autora de Juchitán de las mujeres (1979-1989). Em 2015, recebeu o prêmio Cornell Capa do Centro Internacional de Fotografia de Nova York (ICP).
Fonte: REVISTA ZUM
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