março 10, 2016

O fazer filosófico de Emil Cioran. Por Lucas Kuntz (COLUNAS TORTAS)

PICICA: “Não são, contudo, as minhas leituras que me formaram, mas os acidentes e os encontros. Tudo o que descrevi é fruto de circunstâncias, azares, conversas, ruminações noturnas, crises de abatimento mais ou menos cotidianas, obsessões intoleráveis. Meu estado de saúde, felizmente comprometido, é em grande medida responsável pela direção, da cor, dos meus pensamentos”


O fazer filosófico de Emil Cioran



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Emil Cioran, por Franziska Messner-Rast.

Herdeiro da tradição irracionalista, Emil Cioran (1911 – 1995) sugere a impossibilidade de escapar das aflições humanas, visto que não podemos nem afirmar e nem negar a nossa Vontade – a única coisa que restaria, então, seria conviver em um mundo de dor e sem propósito, podendo apenas aceitá-lo ou odiá-lo.

Enfatizando o instinto em detrimento da razão, o filósofo se colocará contra o modo com que é feito o exercício filosófico de seu tempo: um saber artificial e frio, que não toca nas aflições humanas, indiferente ao Homem e apático ao mundo, que suprime pensamentos mais elevados em prol de uma produção fechada em si mesma:
“Nunca se criticará demasiado o século XIX por haver favorecido essa corja de glosadores, essas máquinas de ler, essa malformação de espírito que encarna o Professor – símbolo do declínio de uma civilização, do aviltamento do gosto, da supremacia do trabalho sobre o capricho” [1]
Tal crítica é dirigida também à produção acadêmica que não busca os problemas e os flagelos da existência, mas um exercício filosófico mecânico e muitas vezes sob a forma mercadológica, o que levará Cioran a considerar Sartre uma “fábrica de ideias” e tomar Kant como a personificação desse exercício:
“Afastei-me da filosofia no momento em que se tornou impossível para mim descobrir em Kant alguma fraqueza humana, algum acento de verdadeira tristeza”[2]
Assim, ele irá buscar outra forma de abordar a filosofia, distanciando-se das elaborações sintéticas e se aproximando de uma filosofia “orgânica”, que trate da subjetividade do homem, feita de fibra, que pode capturar a essência do mundo e transmiti-la ao homem.

“Sem Bach, a teologia seria desprovida de objeto, a Criação fictícia, o nada peremptório. Se há alguém que deve tudo a Bach esse alguém é Deus”[3]

A fluidez dos instintos e ebulições interiores torna fecundo e intenso o pensamento, proporcionando à expressão ser cheia de conteúdo e lirismo; do contrário, a impessoalidade leva a uma carcaça morta, forma sem conteúdo. Portanto, ao exercício da contemplação, angústia e encantamento são duas marcas indissociáveis quando se olha o abismo – não por menos, o fazer filosófico que não acompanha a inquietude consigo não passa de um dogmatismo filosófico ou mera “pregação” do sofrimento (Cioran coloca ambos no mesmo patamar):
“Sem nossas dúvidas sobre nós mesmos, nosso ceticismo seria letra morta, inquietude convencional, doutrina filosófica” [4]
Cioran se coloca contra, portanto, à artificialidade da “letra morta” do academicismo, mas também às filosofias de botequim e ao sofrimento adolescente:
“Existe na estupidez uma gravidade que, melhor orientada, poderia multiplicar a soma de obras primas” [5]
Por isso, o fazer filosófico de Cioran busca estar entre a angústia e o rigor com a ideia (e com a escrita) quando é praticado; mesmo uma ideia violenta exige a delicadeza de calcular milimetricamente as marteladas, e o equilíbrio reside nesses dois exageros, cada qual de um lado; renunciando a qualquer um dos dois, o equilibrista cai da corda: o silogismo só é possível com a amargura.

Abordar em um texto ideias propositalmente fragmentadas – em aforismos, por exemplo – torna a tarefa do entendimento uma busca para compreender uma filosofia que não é baseada na racionalidade íntegra. Significa optar por transfigurar a ideia a fim de deixar a reflexão aos capazes de compreendê-la; assim como a “morte de Deus” em Nietzsche não implica em um defunto divino, mas na morte do pensamento religioso e sua superação[6], os aforismos de Cioran não terminam em si mesmos – a estética literária busca elevar o pensamento filosófico – ele irá pontuar que “comparado com a música, o misticismo e poesia, a atividade filosófica procede de um impulso reduzido e uma profundidade suspeita”[7].

Numa existência continua e ininterrupta de flagelo, a Arte (especialmente a música) causa uma experiência humana concentrada no páthos do indivíduo, e este torna a vida menos insuportável – assim, a Arte adquire um caráter quase divino. O fazer filosófico de Cioran está ligado, portanto, mais às emoções que às razões; a primazia do sentir ao pensar; assim, ao unir a arte à filosofia, torna esta última elevada, e a metáfora do equilibrista nietzschiano entre o macaco e o super-homem é transferida: a travessia da racionalização repugnante ao sentimento elevado.
“Não são, contudo, as minhas leituras que me formaram, mas os acidentes e os encontros. Tudo o que descrevi é fruto de circunstâncias, azares, conversas, ruminações noturnas, crises de abatimento mais ou menos cotidianas, obsessões intoleráveis. Meu estado de saúde, felizmente comprometido, é em grande medida responsável pela direção, da cor, dos meus pensamentos”[8]

Referências

[1] Silogismos da Amargura. Tradução: José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p.20.

[2] Breviário de decomposição. Tradução: José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p.69.

[3] Silogismos da Amargura, p.88

[4] Silogismos da Amargura, p.11

[5] Silogismos da Amargura, p.11

[6] Deus Está Morto – Nietzsche. Colunas Tortas, acessado em 05/02/2016.

[7] Breviário de decomposição, p. 71.

[8] “Carta-prefácio de E.M. Cioran a Fernando Savater”, in: Ensayo sobre Cioran. Madrid: Espasa Calpe, 1992. Tradução do Espanhol por Rodrigo Menezes.

Fonte: COLUNAS TORTAS

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