março 30, 2016

O carnaval das traições. Por Flavio Aguiar (BLOG DA BOITEMPO)

PICICA: "“Por que você me picou”, perguntou o sapo ao escorpião que ele conduzia atravessando a lagoa a nado, “agora nós dois vamos morrer”.
“Sei lá”, respondeu o escorpião, “é da minha natureza”.
Conto brasileiro"
 

O carnaval das traições

Flavio Aguiar, interinamente da Península de Yucatán, México.


festival pmdb 

[Romero Jucá anuncia a ruptura do PMDB com o governo em 29.03.2016]



“Por que você me picou”, perguntou o sapo ao escorpião que ele conduzia atravessando a lagoa a nado, “agora nós dois vamos morrer”.
“Sei lá”, respondeu o escorpião, “é da minha natureza”.
Conto brasileiro.


O processo de impeachment à presidenta Dilma Rousseff é um verdadeiro carnaval das traições.


Parece traduzir aquele ditado que diz que “o mais inocente matou a mãe para ir no baile dos órfãos”.


É difícil puxar o fio da meada, tantos são eles.


Comecemos então pelo mais óbvio.


O vice-presidente Michel Temer é o novo candidato a Café Filho na história brasileira. Café era vice de Getulio, tido como mais à esquerda do este, o que não é o caso daquele lá em relação a Dilma Rousseff. Mas como Getulio se recusou a renunciar, Café Filho traiu seu compromisso e declarou que seu dever (ou propósito) era ocupar a presidência, custe o que custasse. Ele só não imaginava que isto custaria a vida de Getulio, que resistiu à bala, uma única, mas suficiente para retardar o golpe por dez anos.


O ex-presidente Lula disse que Sergio Moro foi picado pela mosca azul. Temer deve ter sido picado por um vampiro, daqueles que morrem num filme para renascer no outro. Como a lagarta botânica, ele imagina que vai entrar no casulo do impeachment e sair dele como a crisálida do salvador da pátria. Vai cair no mata-burro das traições que está consagrando e inaugurando. Vai entrar na e sair da história como o sapo que queria ir à festa no céu mas desabou das alturas.


Se o PMDB dsembarcasse do governo às vésperas da eleição regular de 2018, dava para entender. Desembarcar agora, sem motivo que não seja a avidez de ocupar mais espaço no poder, é uma traição de grande monta, não só à presidenta e seu partido, mas também a seu eleitorado.Ou alguém acha que a maior parte do eleitorado peemedebista é do golpe? Só se quiserem se tornar eleitores do Bolsonaro.


O PSDB também está traindo seu eleitorado. Não acredito que a maioria dos eleitores do PSDB queira o golpe fajuto deste impeachment. O partido vai ficar maculado para sempre. Será levado por um playboy irresponsável (Aécio), um governador merendeiro (Alckmim) e um ex-presidente senil (FHC), todos traindo o programa do partido e suas próprias histórias (bem, no caso de Aécio, não dá pra garantir).


No Congresso vai haver um sem fim de traições. Como já alertou José Roberto de Toledo (no Estadão), que não pode ser acusado de petismo nem de bolivarianismo, quando uma das partes, na votação do impeachment, atingir sua quota (171 pró-governo, 342 pró-golpe), as traições a todos os propósitos vão se multiplicar apara aderir ao lado vencedor, sejam lá quais forem os compromissos antes assumidos. Afinal, este é um dos Congressos mais vergonhosos da nossa história, e dá arrepios à mídia interncional ver Dilma processada por este bando de acusados de tudo o que há de pior na política brasileira.


No Judiciário e na PF, nem se fala. Togas são traídas todo o tempo, pela avidez de aparecer nas manchetes e de ser “aquele que prendeu o Lula” ou “derrubou a Dilma”. Gilmar Mendes organiza um seminário sem pé nem cabeça em Lisboa, em datas coincidentes com aquelas em que os golpistas comemoram 64, mas é abandonado pelos políticos conservadores com quem queria consagrar o golpismo brasileiro. Deu chabu, como se diz em festa junina. O foguetório não explodiu, abatumou. Ao inv´s do aplauso nas galerias, colheu as vaias na rua.


Mas em todo este rosário de traições, há um caso de fidelidade que merece reconhecimento.


Tempos atrás, motivadas talvez por um excesso de confiança em que venceriam as abantesmas petistas através de meios “normais”, as chefes-de-fila da mídia corporativa e golpista deram-se ao luxo de ensaiar tímidas auto-críticas em relação a seu apoio pró-ativo ao golpe de 64. Uma de claro que foi um erro, outra quis transformar a ditadura em “ditabranda”, outro ainda ressalta os acertos de 64 contra os erros e excessos de 68… Globo, Folha de S. Paulo e Estadão (Veja e as revistas semanais são apenas a artilharia leve do fim de semana) foram tomados por um verdadeiro surto psicótico-legalista que os levou àquele descaminho. Agora, porém, retornaram à sua normalidade, o golpismo para que nasceram e cultivaram.


Ainda bem. Ainda se pode confiar em alguém neste mundo.


Como o escorpião do conto, continuam cumprindo seu destino, sacrificando, em nome de sua natureza oligárquica, a democracia de que dependem.


***


Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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