PICICA: "Diante do
atual ciclo de greves, desconfio que, entre as incontáveis explicações
para a atual crise política, a mais subestimada talvez seja essa: as
classes dominantes simplesmente não precisam de uma burocracia sindical
incapaz de controlar suas próprias bases. Sobretudo, no momento
em que o único projeto realmente crível para os dominantes consiste em
restaurar a acumulação capitalista aprofundando a espoliação social por
meio do ataque aos direitos dos trabalhadores. Em suma, aos
olhos dos dominantes, Lula da Silva tornou-se uma liderança embaraçosa,
passível de ser encarcerada por uma razão qualquer, justificável ou não.
Mas o que a
burguesia brasileira parece ter subestimado na atual crise é exatamente
aquilo que Eduardo Coutinho revelou tão bem em seu filme: os dilemas do
“fazer-se” história dos subalternos condensam-se num significante
ambivalente. E no último dia 18 de março, Lula da Silva ressurgiu à
frente de uma multidão formada por 100 mil pessoas em plena Avenida
Paulista. Diante de um golpe legislativo-midiático-judiciário em curso
contra sua afilhada política, ele relembrou um país dividido e
conflagrado qual seu papel histórico: ser o grande pacificador da luta
de classes. Será suficiente para barrar o golpe? Aposto que não. Afinal,
na atual crise orgânica brasileira, soluções mediadas perderam seu
lugar. O cimento ideológico da redução da pobreza não é mais eficiente
diante do quadro de aumento do desemprego e aprofundamento das
desigualdades entre as classes. De fato, estamos diante do retorno
ruidoso da luta de classes no país.
No entanto,
tendo em vista a atual volatilidade política, Lula da Silva soube
entregar sua mensagem ao país. Dentro ou fora da prisão, se o golpe da
direita avançar, ele irá liderar a resistência legalista. E se as
classes dominantes decidirem improvisar uma solução negociada,
novamente, será ele a afiançar o pacto conservador. Apoiando-se na
mobilização dos trabalhadores organizados, sobretudo, Lula da Silva é
transforma-se em uma força política incontornável. E o que quer que
aconteça nos próximos meses no país, será ele – e não Sérgio Moro – que
estará no centro do palco pronto a se reinventar politicamente, tal como
ocorreu em 1978 em São Bernardo."
O pacificador
[Lula
discursa a manifestantes reunidos na Avenida Paulista contra o golpe e
pela democrática em São Paulo no dia 18 de março de 2016]
Por Ruy Braga.
A convite da professora Natalia Brizuela, participei há cerca de duas semanas do lançamento do dossiê especial da revista Film Quarterly
(vol. 69, no. 3) dedicado ao legado do cineasta Eduardo Coutinho. O
evento ocorreu no intervalo da apresentação de dois documentários de
Coutinho, Boca de Lixo (1993) e Peões (2004), no
prédio recém-inaugurado do Berkeley Art Museum and Pacific Film Archive
(BAMPFA). Natália pediu-me pra introduzir o filme Peões ao
público presente no mais novo museu da Universidade da Califórnia em
Berkeley. Rapidamente, fiz alguns comentários sobre o método etnográfico
“radical” de Coutinho e sua habilidade de condensar os dilemas da visão
social de mundo dos subalternos em entrevistas traspassadas por um
profundo sentido de dignidade humana.
Além disso, busquei contextualizar historicamente o tema de Peões,
isto é, o filme que, rodado em 2002, ano da eleição de Lula da Silva,
Coutinho dedicou à trajetória da classe operária fordista do ABCD
paulista. Observei como o documentarista foi hábil em restituir a
agência histórica aos próprios trabalhadores. Afinal, tendo em vista o
sucesso de Lula da Silva e da burocracia sindical de São Bernardo,
muitas vezes não nos lembramos que foi aquela classe operária
semiqualificada retratada nas telas por meio de algumas trajetórias
individuais exemplares a verdadeira protagonista do ciclo das greves de
1978, 1979 e 1980. Os peões explicam o ativismo de Lula da Silva, mas
Lula da Silva não consegue explicar o ativismo dos peões.
Lembrei ao
público que após o golpe de 1964, a ditadura civil-militar interveio nos
sindicatos, perseguindo as lideranças comunistas do ABCD paulista e
substituindo-as por antigos pelegos diversas vezes batidos nas eleições
sindicais e usualmente alinhados aos setores conservadores da igreja
católica. Paulo Vidal foi o mais bem-sucedido desses pelegos. Conhecido
por entregar militantes de esquerda pra polícia e ameaçar quem falasse
em greve, Vidal foi o predecessor de Lula da Silva na presidência do
Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. O “sindicalismo autêntico”,
como ficou conhecida essa corrente sindical, nada mais era do que uma
tentativa extemporânea de negociar com as multinacionais da região
pequenas concessões materiais ao estilo do business unionism estadunidense (sindicalismo de negócios) no qual a nova burocracia de São Bernardo espelhava-se.
Batendo de
cara com o total desinteresse das empresas em negociar com os
trabalhadores, afinal, o golpe de 1964 serviu exatamente pra barrar as
concessões materiais ao operariado conquistadas pelas greves do período
populista, e pressionados pelo aumento da mobilização das suas próprias
bases, a escolha de Lula da Silva como sucessor de Paulo Vidal em 1976
marcou o momento da renovação das velhas práticas pelegas de controle da
insatisfação operária pela burocracia sindical. Diante da
inevitabilidade da greve, Lula da Silva soube se reinventar
politicamente, passando de instrumento do assistencialismo sindical à
principal liderança de um movimento operário intempestivo e, até certo
ponto, imprevisível.
No entanto, o
documentário de Coutinho mostra uma dimensão ainda mais sutil dessa
história. Na realidade, o filme captou a relação dialética entre a
insatisfação, os desejos e as iniciativas políticas dos peões,
verdadeiros sujeitos de sua própria história, e a tentativa de controlar
esta agência empreendida por Lula da Silva. Recorrendo a outros filmes
da época, em especial, o já clássico Linha de Montagem (1982)
de Renato Tapajós, Coutinho revelou por meio de detalhes – o choro, a
ansiedade, a chantagem emocional e o pedido do voto de confiança –, o
nascimento de uma liderança política ainda desconfiada de sua própria
força. Ao mesmo, tempo, o cineasta mostrou como nesses instantes de
fragilidade de Lula da Silva, os dilemas dos próprios operários em seu
“fazer-se” história condensavam-se e encontravam um sentido mais ou
menos consciente.
Sabemos que
daí surgiu um líder cuja legitimidade deriva do controle da insatisfação
popular por meio de negociações que lentamente garantem pequenas
concessões aos trabalhadores. Uma força social reformista a afiançar o
armistício entre a autonomia dos subalternos e a presunção dos
dominantes. Quando isso não é possível, sua utilidade tende a declinar
até o ponto em que o estabelecimento de um novo pacto volte a ser uma
opção crível. No mundo do trabalho, o colapso do armistício entre as
classes geralmente vem sob a forma de uma onda grevista.
De fato, de
acordo com os últimos dados do Sistema de Acompanhamento de Greves do
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
(SAG-Dieese), os trabalhadores brasileiros protagonizaram em 2013 uma
onda grevista inédita na história do país, somando 2.050 greves. Isto
significou em crescimento de 134% em relação ao ano anterior, quando
foram registradas 877 greves. Este número superou o ano de 1990,
configurando um novo recorde na série histórica do SAG-Dieese. Em termos
de horas paradas, tivemos 111.342 horas paradas, em 2013, representando
um crescimento de 28% em relação ao ano anterior. Trata-se do maior
número desde o ano de 1990, quando foram registradas 117.027 horas
paradas.
Assim, o
país superou o declínio grevista das últimas duas décadas e o movimento
sindical readquiriu certo protagonismo político. Em várias capitais, as
greves bancárias tornaram-se rotineiras. Além disso, professores,
funcionários públicos, metalúrgicos, operários da construção civil,
motoristas e cobradores reconciliaram-se com a mobilização sindical
entre 2013 e 2015. Um notável protagonismo da esfera privada tornou-se
saliente, consolidando a tendência iniciada em 2012. Proporcionalmente,
as greves da esfera privada representaram 54% do total, superando as
greves da esfera pública.
No tocante
às greves ocorridas na esfera privada, por exemplo, a maior parte das
greves defensivas (46%) esteve diretamente associada ao descumprimento
de direitos sociais e trabalhistas por parte dos empregadores. Em
comparação com o ano de 2012, nota-se um importante aumento (21,6%) na
proporção do número de greves relacionadas ao pagamento de salários
atrasados, um indício claro da deterioração das condições gerais de
reprodução do regime de acumulação. Com um crescimento de 332% em
relação a 2012, em apoio à tendência identificada acima, vale destacar a
verdadeira explosão de greves ocorrida no domínio que acantona com mais
frequência os grupos de trabalhadores não qualificados ou
semiqualificados, terceirizados, sub-remunerados, submetidos a contratos
precários de trabalho e mais distantes de certos direitos trabalhistas,
isto é, o setor de serviços privados.
Além de oito
greves nacionais realizadas pelos trabalhadores bancários, nota-se,
também, um particular ativismo existente entre os trabalhadores em
turismo, limpeza, saúde privada, segurança, educação e comunicação. No
entanto, a maioria das greves foi deflagrada por trabalhadores dos
transportes. Além disso, é possível notar uma tendência semelhante
quando observamos os trabalhadores do serviço público. Tanto em termos
de administração direta quanto em relação às empresas estatais, o
aumento mais expressivo das greves deu-se nos municípios.
Nesse
sentido, a atividade sindical ampliou-se para categorias diferentes
daquelas já tradicionalmente mobilizadas. Aqui também a atividade
grevista avançou na direção dos grupos de trabalhadores mais
precarizados do Estado. Em termos gerais, considerando tanto a esfera
privada quanto a pública, é possível identificar uma expansão do
movimento do centro para a periferia em uma espécie de transbordamento
grevista. Além da presença cada vez mais saliente das reivindicações
defensivas nas pautas sindicais, este avanço das greves para a periferia
dos diferentes setores econômicos revela uma forte aproximação do
precariado urbano em relação à mobilização sindical.
Diante do
atual ciclo de greves, desconfio que, entre as incontáveis explicações
para a atual crise política, a mais subestimada talvez seja essa: as
classes dominantes simplesmente não precisam de uma burocracia sindical
incapaz de controlar suas próprias bases. Sobretudo, no momento
em que o único projeto realmente crível para os dominantes consiste em
restaurar a acumulação capitalista aprofundando a espoliação social por
meio do ataque aos direitos dos trabalhadores. Em suma, aos
olhos dos dominantes, Lula da Silva tornou-se uma liderança embaraçosa,
passível de ser encarcerada por uma razão qualquer, justificável ou não.
Mas o que a
burguesia brasileira parece ter subestimado na atual crise é exatamente
aquilo que Eduardo Coutinho revelou tão bem em seu filme: os dilemas do
“fazer-se” história dos subalternos condensam-se num significante
ambivalente. E no último dia 18 de março, Lula da Silva ressurgiu à
frente de uma multidão formada por 100 mil pessoas em plena Avenida
Paulista. Diante de um golpe legislativo-midiático-judiciário em curso
contra sua afilhada política, ele relembrou um país dividido e
conflagrado qual seu papel histórico: ser o grande pacificador da luta
de classes. Será suficiente para barrar o golpe? Aposto que não. Afinal,
na atual crise orgânica brasileira, soluções mediadas perderam seu
lugar. O cimento ideológico da redução da pobreza não é mais eficiente
diante do quadro de aumento do desemprego e aprofundamento das
desigualdades entre as classes. De fato, estamos diante do retorno
ruidoso da luta de classes no país.
No entanto,
tendo em vista a atual volatilidade política, Lula da Silva soube
entregar sua mensagem ao país. Dentro ou fora da prisão, se o golpe da
direita avançar, ele irá liderar a resistência legalista. E se as
classes dominantes decidirem improvisar uma solução negociada,
novamente, será ele a afiançar o pacto conservador. Apoiando-se na
mobilização dos trabalhadores organizados, sobretudo, Lula da Silva é
transforma-se em uma força política incontornável. E o que quer que
aconteça nos próximos meses no país, será ele – e não Sérgio Moro – que
estará no centro do palco pronto a se reinventar politicamente, tal como
ocorreu em 1978 em São Bernardo.
* * *
PARA APROFUNDAR A REFLEXÃO… 5 DICAS DE LEITURA DA BOITEMPO A legalização da classe operária, de Bernard Edelman, uma análise didática e aprofundada sobre como a institucionalidade jurídica burguesa enquadra e cerceia a luta popular procurando domesticar ferramentas como as greves e as representações trabalhistas em sindicatos, e partidos.
A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista, o estudo desbravador de Ruy Braga que analisa as novas configurações da luta de classes no Brasil de hoje e indicava já em 2012 como a despeito da relativa “satisfação” acusada pelas eleições presidenciais e da aparente estabilidade do modo de regulação proporcionada pelo “transformismo” petista, a hegemonia lulista encontrava-se assentada em um terreno historicamente movediço.
Hegemonia às avessas: Economia, política e cultura na era da servidão financeira, organizado por Ruy Braga, Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, volume clássico do Cenedic sobre a forma avessa de dominação que configura a era lulista, inspirado em uma releitura de Gramsci e no artigo homônimo de Chico de Oliveira. Vem aí, em 2016, o novo volume do Cenedic sobre o Brasil atual Desigual e combinado: capitalismo e Modernização Periférica no Brasil do Século XXI, coletânea organizada por André Singer e Isabel Loureiro com reflexões de Ruy Braga, Maria Elisa Cevasco,Wolfgang Leo Maar, Cibele Rizek, Ana Amélia da Silva entre outros.
De que lado você está, de Guilherme Boulos, é um livro de intervenção de leitura obrigatória para pensar (e transformar) o Brasil de hoje, com reflexões de fôlego sobre a conjuntura nacional recente que mostra a zona cinza em que a disputa polarizada se encontra.
Revista Margem Esquerda #22, com homenagem a Eduardo Coutinho, escrita por Felipe Bragança, além de dossiê especial dedicado aos 50 anos do Golpe.
Ruy Braga: O retorno da luta de classes no Brasil
Publicado em 24 de ago de 2015
Ruy
Braga comenta a atualidade da obra de Domenico Losurdo para compreender
o ressurgimento da questão da luta de classes no Brasil contemporâneo,
pós-lulismo. Trata-se da fala de abertura de Braga na mesa "Lutas de
classe: sindicalismo, partidos e movimentos sociais", com Domenico
Losurdo, André Singer, Ruy Braga e Breno Altman (mediação).
Ruy Braga,
professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro
de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre
outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores do livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. (Boitempo, Carta Maior, 2013). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
Fonte: Blog da Boitempo
Nenhum comentário:
Postar um comentário