PICICA: "Todo um mundo de movimentos e
contradições sociais pulsa nessas duas fotos – e no espaço entre
elas."
O negro e o automóvel em duas fotos de William Eggleston, por José Geraldo Couto
Publicado em: 22 de junho de 2015O negro e o automóvel em duas fotos de William Eggleston
José Geraldo CoutoTodas as fotos de William Eggleston conversam de alguma forma umas com as outras, mas entre duas delas esse diálogo é particularmente eloquente. Em ambas há um homem negro e um carrão americano. No mais, tudo é diferença.
Na primeira, tirada em 1969, no Mississipi, entre o negro e o automóvel posta-se um homem branco, certamente seu patrão e dono do veículo. Tanto o branco como o negro são de meia-idade. O branco está de terno escuro e o negro veste um paletó branco que indica seu ofício de motorista. O ambiente em torno é rural, ou quase: árvores, folhas secas, um riacho ao fundo. É irresistível pensar no filme Conduzindo Miss Daisy (Bruce Beresford, 1989), só que sem a pieguice declaratória deste.
A legenda diz Summer, Mississippi, que pode se referir a um local específico, mas alude também ao “Mississippi Summer Project”, campanha lançada em junho de 1964 por organizações de defesa dos direitos civis para registrar o máximo possível de eleitores afrodescendentes no Mississippi. Seja como for, o que vemos na foto reflete sutilmente o processo de mudanças que o sul dos EUA vinha experimentando. Na pose relativamente relaxada do motorista, de camisa aberta no colarinho e mãos nos bolsos quase mimetizando a postura do patrão, já não encontramos a reverência submissa dos descendentes de escravos, tão comum ainda no início daquela década, mas sim uma atitude que aspira à igualdade. Talvez a fisionomia um tanto tensa e desconfiada do patrão tenha alguma a coisa a ver com isso.
Da série 5×7, 1973-1974 © Eggleston Artistic Trust.Cortesia de Cheim & Read, Nova York |
Na outra imagem, que faz parte da série 5×7, 1973-74, é como se víssemos a culminância do processo de emancipação esboçado na foto anterior. Agora, o jovem negro, de cabelo discreta mas orgulhosamente “afro”, posta-se sem intermediários junto ao carro, numa atitude de posse e afirmação, tocando-o com a mão em que despontam dois anéis prateados. Num dos pulsos traz um relógio, no outro, uma pulseira dourada. Em vez de uniforme, exibe uma vistosa e curta camisa estampada aberta na frente, revelando o peito e uma nesga da barriga. Completam o figurino uma calça de cintura alta e boca de sino e um sapato plataforma de duas cores. O ambiente é inequivocamente urbano, decerto uma garagem ou estacionamento, como sugerem o outro carro ao lado, o asfalto e a parede nua de tijolos ao fundo, onde se destaca um aparelho de ar-condicionado.
Do sorriso ao vestuário, passando pela pose e pelos acessórios, tudo nessa imagem é afirmação vaidosa, a um passo da ostentação. Libertos do servilismo e da segregação – aos trancos e barrancos, com muito sangue, suor e lágrimas ainda por vir –, os negros norte-americanos inseriam-se vigorosamente na sociedade de consumo, criando até seus nichos próprios de mercado na moda, na cultura e no entretenimento, como atestam uma revista como a Ebony e uma gravadora como a Motown.
Com um pouco de imaginação, poderíamos supor que o rapaz da segunda foto é filho do motorista da primeira. Veríamos também que essa imagem contém em embrião uma porção de coisas que viriam depois, do “gangsta rap” – com seus astros negros ostentando joias e carrões – ao cinema de Spike Lee e às recentes insurreições em Baltimore e outras cidades contra a violência racista da polícia. Todo um mundo de movimentos e contradições sociais pulsa nessas duas fotos – e no espaço entre elas.///
José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou por mais de 20 anos no jornal Folha de S.Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro.
Fonte: REVISTA ZUM
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