fevereiro 06, 2011

"MinC: a parte que nos cabe desse latifúndio", por Bruno Cava

PICICA: "A vida cultural não se faz somente com grandes produtoras, empresários empreendedores e artistas consolidados. Este grupo não responde sequer por 1% do universo de trabalhadores da cultura. Refiro-me aos inúmeros técnicos, fotógrafos, maquiadores, roteiristas, blogueiros, designers, músicos, dançarinos, assistentes, montadores, sonoplastas, atores e tantos outros que (sobre)vivem de bicos e contratos temporários. Não recebem um tostão em direitos autorais e são obrigados a se submeter a um regime exploratório e injusto de remuneração, como subempregados das majors. Quantos jovens talentos não abandonam a atividade por falta de renda e condição humilhante?" Saiba mais, no artigo de Bruno Cava, porque são precupantes as primeiras ações da atual Ministra da Cultura. E leia, também, "Ana de Hollanda, o Comando de Caça aos Commonistas e a transição conservadora". E mais: "Rio: dois projetos para uma cidade do conhecimento", onde se deparam duas visões antagônicas: o da lógica industrial de cultura e o dos pontos de cultura, verdadeiro laboratório de cultura.

MinC: a parte que nos cabe desse latifúndio.


No governo Lula, o ministério da cultura (MinC) ocupou uma posição central. Com os ministros Gilberto Gil (2003-08) e Juca Ferreira (2009-10), contribuiu incisivamente para o aprofundamento da democracia do país. Com políticas públicas inovadoras, não governou apenas para uns, mas para todos os cidadãos, ampliando o escopo da indústria e da "classe artística" para o vasto espectro de trabalhadores culturais do Brasil, em todas as regiões, até os rincões mais afastados. Nos últimos oito anos, a cultura deixou de ser assunto secundário, acessório, "perfurmaria", para se instalar no cerne de um projeto global de democracia, que produz renda no processo mesmo em que a dissemina.

O coração programático do MinC foram os Pontos de Cultura. Hoje, já são cerca de 4.000 pontos em mais de 1.100 municípios. Cada Ponto recebe R$ 180 mil, em parcelas semestrais, para remunerar as pessoas, comprar equipamento, divulgar a arte e a cultura.

O investimento gira na ordem das centenas de milhões de reais e contempla diversos âmbitos: audiovisual, música, literatura, grafite, circo, teatro, dança etc. Num processo dinâmico, a partir dos Pontos, coordenam-se as demais ações do Programa Nacional de Cultura (Cultura Viva), tais como a Cultura Digital (redes na internet, software livre, multimídia etc) e vários editais públicos de fomento. 

Pela primeira vez, o foco do MinC passou a ser quem genuinamente precisa de incentivo. Os Pontos atendem principalmente à população de baixa renda, nas periferias das metrópoles e no interior pobre. Assiste minorias indígenas e quilombolas, o artista e o produtor iniciantes, os midialivristas e jornalistas-internautas. Alcança também os pesquisadores e formuladores político-culturais, nas universidades e institutos. Num cenário cultural dominado pela grande indústria de entretenimento, os Pontos qualificam socialmente o investimento cultural.

Tome-se o exemplo do cinema. As majors, grandes produtoras e distribuidoras norte-americanas, abocanham quase 90% dos lucros, graças a duas dezenas de blockbusters anuais. Dos outros 10%, a Globo Filmes --- que também é grande indústria --- engole a maior fatia, com suas produções de linguagem televisiva.

Enquanto isso, segundo o relatório Cultura em Números (MinC, 2010), somente 8% dos municípios brasileiros têm salas de cinema, e risíveis 13% dos cidadãos costumam freqüentá-las. Produções pequenas e novas, fora do cinemão (americano ou "global"), dificilmente ultrapassam um ou dois mil espectadores. Isso quando tem a rara felicidade de chegar ao circuito comercial (em poucas salas). Além disso, as grandes linhas de crédito não se abrem à cauda longa de pequenos produtores, ficando justamente com quem já dispõe de bons dividendos.

Os Pontos de Cultura deslizam dessa lógica verticalizada e desigual. Abrem a arte e cultura para um estamento até então segregado dos meios de produção e difusão. Se a indústria cultural tem dono e divide os lucros entre acionistas, empresários e (quando muito) um punhado de medalhões, os Pontos remuneram direta ou indiretamente 8,4 milhões de pessoas (dados do IPEA).

A vida cultural não se faz somente com grandes produtoras, empresários empreendedores e artistas consolidados. Este grupo não responde sequer por 1% do universo de trabalhadores da cultura. Refiro-me aos inúmeros técnicos, fotógrafos, maquiadores, roteiristas, blogueiros, designers, músicos, dançarinos, assistentes, montadores, sonoplastas, atores e tantos outros que (sobre)vivem de bicos e contratos temporários. Não recebem um tostão em direitos autorais e são obrigados a se submeter a um regime exploratório e injusto de remuneração, como subempregados das majors. Quantos jovens talentos não abandonam a atividade por falta de renda e condição humilhante?

Esse precariado produtivo só começou a ser efetivamente contemplado no governo Lula, graças principalmente aos Pontos e editais transversais (democráticos) da Cultura Viva.

Além da renda, há outros fatores importantes. Os Pontos abraçam uma organização política não-hierárquica e colaborativa. Funcionam em rede, na base da articulação, da remixagem, do mash-up. O jovem produtor não tem que se submeter a empregos ou subempregos. Ele é livre, autônomo, constituinte de sua produtividade.

Mas o sistema não é anárquico. Para coordenar (e não comandar) a rede, foram implantados mais de 100 Pontões. Atuam como rótulas do sistema e são granjeados com infraestrutura mais robusta e repasse mais generoso (R$ 500 mil cada). Os nós equipotenciais reúnem-se em fóruns, teias (encontros) e numa Comissão Nacional. Vibram em conjunto, difundindo a produção horizontalmente e retroalimentando a cadeia criativa. 

Na sociedade pós-industrial, a circulação por si só agrega valor aos conteúdos. Quanto mais "viral" a produção, mais interage, captura a atenção e constitui públicos. Tudo isso valoriza o processo mesmo da comunicação. Com efeito, a cultura livre se dá na partilha de mundos, onde cada um pode afirmar seus sentidos, desejos, modos de olhar e sentir. E não no esquema monológico da indústria nacional. A esquerda hoje é pelo compartilhamento, enquanto a direita quer tirar da circulação, botar preço, vedar, criminalizar.

Os Pontos e as políticas associadas não consistem, portanto, tão somente em modo de remunerar a "massa" de precários da cultura, como técnica de governo. Mas sobretudo empoderar o cidadão e concitar um ciclo microeconômico com valor democrático. Reconhecer que todos podemos gerar e divulgar conteúdo, que podemos participar ativamente da democracia como sujeitos, como elos da vida cultural, como mídia.

Está em jogo uma concepção de cultura muito além do entretenimento ou do negócio, como na visão da indústria --- nacional ou estrangeira. No século 21, cultura e conhecimento situam-se no cerne da produção de valor. E implicam a cidadania: o produtor cultural é imediatamente sujeito político.

Por tudo isso, o sociólogo Giuseppe Cocco, da UFRJ, em artigo a jornal paulista, pôde concluir que "o Bolsa Família é a maior política cultural do governo Lula, e os Pontos de Cultura são a melhor distribuição de renda deste governo."

Quer dizer, assim como o programa Bolsa Família excita microeconomicamente as regiões contempladas, e gera excedentes para o acesso a bens culturais; os Pontos remuneram os trabalhadores e potencializam a produção de valores, sentidos, afetos... de riqueza --- o que, no pós-industrial, tem automaticamente efeito econômico. Daí, o intelectual ítalo-brasileiro defende a integração do Bolsa Família aos Pontos de Cultura, pois juntos acionam todo um círculo virtuoso de renda, cidadania e liberdade.

Isto posto, preocupam as primeiras movimentações da ministra Ana de Hollanda e de sua equipe. Decerto, uma tentativa de desmantelar as realizações do governo Lula, com Gil e Juca, seria a mais deslavada traição do voto. A eleição de Dilma significou a vitória do projeto de continuação e aprofundamento do governo anterior. Ao que parece, conquanto não haja sinais de ruptura frontal, o "acerto de contas" com a ousadia lulista pode ocorrer de maneira mais discreta e traiçoeira.

Duas expressões estão em voga na boca do ministério: "economia criativa" e "indústrias criativas". Já divulgada na grande imprensa, a idéia da economia criativa se institucionaliza com uma nova secretaria. A bem da verdade, parece uma iniciativa oportuna, que reconhece o caráter imaterial da new economy, da dita "economia da cultura e do conhecimento".

Assim, em vez de preocupar-se apenas com a venda de CD, livros e filmes, a economia criativa engloba outras atividades: a moda, o marketing, a gastronomia, o videogame, a cosmética etc. Explode o esquema "duro" de arte-de-artista, como alfa e ômega da cultura, e abarca a constituição de mundos: afetos, valores, modos de sentir. 

Até aí tudo bem. Preocupa o que pode vir junto no pacote da economia criativa. Qual o sentido que será conferido a esse discurso aparentemente interessante. Para isso, valem analisar declarações da nova equipe e estudos-chave desse programa (como o e-book Economia Criativa como Estratégia de Desenvolvimento).

O primeiro problema pode surgir com o discurso técnico de otimização e eficiência. Essa linha argumentativa pode ser manejada (e já está sendo), para subtilmente atribuir aos Pontos de Cultura a pecha de desorganizado, precário, "ingênuo". Isso significaria a retração de editais e redes colaborativas, em proveito do mais "organizado" esquemão, o empreendedorismo "sustentável" da indústria cultural e dos players dominantes do mercado. O velho conto do vigário: por razões tecnocráticas, muda-se uma política de esquerda.

O segundo problema surge na forma como as indústrias criativas serão viabilizadas. Porque "sustentabilidade" nem sempre significa democracia. O social (os Pontos?) não pode matar a cultura, porque a cultura é social em primeiro lugar (diverso o pensamento de uma das secretárias do MinC). Por exemplo, a Globo Filmes está perfeitamente sustentável, mas mantém a lógica concentrada, hierárquica, vertical, monotônica (televisiva). O MinC, um órgão público, promotor da justiça social e da democracia cultural, não pode servir para apascentar ainda mais as poucas e grandes empresas do setor. Com muito menos razão, num governo de esquerda, com seu devir anti-histórico. Se, de alguma forma, a economia criativa privilegiar o modelo velho, onde o cidadão é só consumidor e o grosso da renda vai para as majors, se torna golpe camuflado de desenvolvimento.

O terceiro problema reside num nacionalismo mal-disfarçado e totalmente anacrônico (do tipo que a Microsoft ama). Quando se fala em indústrias criativas, há o risco disso traduzir indústria criativa... nacional, numa reedição obsoleta de nacional-desenvolvimentismo (progresso e soberania prioridades, democracia e justiça efeitos). Isto significa, mais uma vez, a idéia de cultura como parque formal de geração de empregos brasileiros e valores brasileiros. Volta-se à passeata contra a guitarra elétrica de 1967.

O caso não é se proteger da cultura americana ou européia. É pegar tudo, não pagar nada, usar à vontade e remixar. Eis a antropofagia. A história da agitação cultural brasileira do século 20, --- desde os modernistas nas décadas de 1920 e 1930, e dos tropicalistas em 1960 (tendo Gilberto Gil como expoente), --- foi a luta simultânea contra nacionalistas-integralistas e colonizados-modernizantes. Foi sair pela tangente desse falso problema.

Porque o problema não está em ser estrangeiro, mas em ser indústria, no trabalho explorado e na desigualdade social. Paramount ou Globo Filmes são igualmente expropriantes, antidemocráticas e monopolistas. Enquanto um filme independente de Seattle ou um CD gravado pelos índios sioux da América do Norte podem vibrar produtivamente com as redes daqui.

Em suma, os Pontos de Cultura foram tão transformadores, --- e tão sintonizados na verve democrática no governo Lula, --- por começar uma ruptura com a divisão técnica e social do trabalho cultural, com a concentração de renda em empresas monopolistas, com o viés mercadológico e privatista do investimento público, descolado das demandas sociais e políticas. Se a economia criativa e o novo MinC que a propugna vierem para sabotar as mudanças, será uma guinada menos do que conservadora. Será ardilosamente reacionária.

Portanto, ao movimento compete articular-se para que não aconteça. Lutar desde já pelos direitos constituídos em conjunto, ao longo de oito vibrantes anos, com Lula, Gil e Juca. Cabe-nos, cidadãos mobilizados política e culturalmente, recusar a parte que nos cabe desse latifúndio.

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Post Scripta:

Vale a pena conferir também o excelente estudo de Andréa Saraiva, Economia Viva e Solidária..., com opção de download em pdf.

Também recomendo, como exemplo de como pode ser traiçoeira a indústria criativa, o artigo de Bárbara Szaniecki e Gerardo Silva ao Outras Palavras, sobre política aplicada recentemente ao Rio de Janeiro.

Finalmente, para a conceituação mais rigorosa da nova economia, sugiro o livro Capitalismo Cognitivo: trabalho, redes e inovação (vários autores, DP&A ed., 2003).

Fonte: Quadrado dos Loucos

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