junho 02, 2011

"Direitos autorais e democracia", por Cezar Migliorin

PICICA: "Pois, se noção de autor é uma invenção e é sempre parte de um contexto, precisamos então considerar o contexto contemporâneo e isso passa pelo capitalismo mesmo. Como desenvolvi no artigo, Por um cinema Pós-Industrial, (citado por Cacá Diegues, sem que eu cobrasse nada, porque assim funcionam as ideias, que bom!) desenvolvo o que seria uma era pós-industrial. Pois o que importa aqui é que o criador contemporâneo, desejado pelo capitalismo, é aquele que inventa mundos com suas próprias vidas. Inventar mundos é o desafio do capitalismo e, para isso, precisa das vidas fora das regras e linhas de montagem. Como diz o Peter Pal Pelbart, “O fato é que consumimos, mais do que bens, formas de vida”. É claro que em algum momento essa invenção precisa ser capitalizada. E ai, novamente, a ideia do autor vem a calhar. Entretanto, mesmo para o mercado e para o capitalismo, a atual lei dos direitos autorais é retrógrada. Ela faz de tudo para dificultar a circulação da criação e do saber. Os que defendem essa lógica se baseiam assim em um autor do século XVIII para defender um capitalismo industrial do século XX. Eis a esquizofrenia."
Carlos Latuff - postada em midiaindependente.org

Direitos autorais e democracia


 



            Diria que o texto do Cacá Diegues, publicado hoje no O Globo, contribui para que certas posições sejam explicitadas. O Luiz Carlos Barreto havia dito: o cinema vai entrar na briga! Bem o cinema já está na briga há muito tempo. O que eu acho é que nunca se imaginou que a mobilização crítica ao que o MInC tem feito ganhasse tamanha proporção. Pois, se essa parte do cinema não estava na briga agora está. O duro é vermos os maiores críticos da gestão Gil/Juca felizes com os rumos do governo que ajudamos a eleger. Mas, como sempre, estamos apenas começando.

O autor é uma invenção 
Antes de ir à questão do direito autoral, ou dos direitos intelectuais, é importante relembrarmos o que é um autor. O autor é algo relativamente recente, é um fato histórico, não é algo dado. Cacá argumenta que o artista – tratado como autor – encontrou no mercado uma liberdade, livrando-se de reis e papas. Entretanto, o argumento do cineasta, que passa pela Capela Sistina, é bastante problemático, por um fato simples: naquele momento não existia a figura do autor.
            A noção de moderna de autor é do século XVIII. Nesse momento, ele ainda era basicamente entendido de duas maneiras, como aquele que tem uma inspiração divida, logo ele é um meio para algo que não lhe pertence, ou ele é um artesão, tendo o domínio de uma certa quantidade de regras e técnicas. Em nenhum dos casos, o autor é entendido como responsável por sua obra. Assim, estamos longe da ideia do gênio, do criador que cria do nada.
          Ora, mas se o autor “não existia”, porque então surge a noção de direito autoral?  A brilhante antropóloga " Manuela Carneiro da Cunha diz o seguinte:  “Na verdade, desde seu surgimento na Grã-Bretanha no início do século XVIII, os direitos autorais - os primeiros direitos de propriedade intelectual surgidos no ocidente - não foram instituídos para proteger os autores, e sim o monopólio de editores londrinos, ameaçados por edições piratas feitas por escoceses”.
            Esse processo é parte de uma virada na compreensão do autor, segundo a Martha Woodmansee, que estudou a invenção da ideia do gênio e a propriedade intelectual no século XVIII, por múltiplas razões, certamente iluministas, o elemento artesanal é praticamente retirado da concepção do autor e a fonte inspiradora é internalizada. Nem musa nem Deus, mas o self.
            Dai para a concepção que hoje ainda é usada para fazer do artista um criador autônomo e isolado é um pulo. O autor é o que cria (do Lat. Auctor: fundador, criador) e nós, reles humanos, só vivemos, sem criar. Como eu costumo dizer, na atual lei do direito proprietário, as netas do Vinícius recebem direitos autorias e as garotas de Ipanema nem um centavo.
(com alguma ironia desenvolvi isso nesse post:)

Não há consenso possível
            Essa semana a Ministra Ana de Hollanda dizia: "Não posso endossar um projeto que está sendo questionado", se referindo à decisão de trocar a equipe que encaminhara a reforma da Lei dos Direitos Autorias e fazer o projeto voltar a ser debatido depois de 70 reuniões com setores interessados na proposta, 80 encontros setoriais e nove seminários realizados no Fórum Nacional de Direitos Autorais de 2007 a 2009 (informações do MinC). Pois, não sei se fica claro, mas essa brevíssima história do autor e da propriedade intelectual nunca foi desprovida de crítica.  Entre 1777 e 1793, na França, por exemplo, a pesquisadora Carla Hesse mostra que a noção de autor era criticada por ser um instrumento repressivo da monarquia e “um instrumento legal para regular o conhecimento”. Como dizia Foucault, o autor é  uma das formas de estancar a proliferação do sentido. Rancière, em um breve texto chamado "Un communisme Imateriel?" nos lembra, por exemplo, que Flaubert, Mallarmé e Proust, representantes máximos do culto ao autor, sempre afirmaram a impessoalidade da escrita. O que me faz lembrar essa bela passagem do Benjamin: “Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar. Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os “(BENJAMIN, Passagens)
            Não sei se fica claro, mas a internet, as trocas digitais, etc, são decisivas para o debate que se faz hoje, mas não é dela que surge o debate. Quando Caetano diz, a internet que se dane, ou algo assim, o que ele nega é o pensamento e não a internet. Agora e sempre, para tocar um processo como esse, que passa por disputas com multinacionais, leis internacionais, televisões, artistas e a própria sociedade, a Ministra terá que enfrentar questionamentos. A outra opção é mais tranquila: coloca-se uma advogada ligada ao Ecad no ministério, retoma-se os debates do projeto e espera-se o próximo governo.
O capitalismo hoje
            Pois, se noção de autor é uma invenção e é sempre parte de um contexto, precisamos então considerar o contexto contemporâneo e isso passa pelo capitalismo mesmo. Como desenvolvi no artigo, Por um cinema Pós-Industrial, (citado por Cacá Diegues, sem que eu cobrasse nada, porque assim funcionam as ideias, que bom!) desenvolvo o que seria uma era pós-industrial. Pois o que importa aqui é que o criador contemporâneo, desejado pelo capitalismo, é aquele que inventa mundos com suas próprias vidas. Inventar mundos é o desafio do capitalismo e, para isso, precisa das vidas fora das regras e linhas de montagem. Como diz o Peter Pal Pelbart, “O fato é que consumimos, mais do que bens, formas de vida”. É claro que em algum momento essa invenção precisa ser capitalizada. E ai, novamente, a ideia do autor vem a calhar. Entretanto, mesmo para o mercado e para o capitalismo, a atual lei dos direitos autorais é retrógrada. Ela faz de tudo para dificultar a circulação da criação e do saber. Os que defendem essa lógica se baseiam assim em um autor do século XVIII para defender um capitalismo industrial do século XX. Eis a esquizofrenia.
            Toda a defesa do mercado feita por Cacá Diegues em seu artigo é pautada pela lógica da escassez industrial. Ou seja, uma lógica em que os produtos eram materiais: se eu desse o meu para alguém eu ficaria sem ele. Pois estamos em outro contexto e desconsiderá-lo pode nos custar muito caro. Sem contar, obviamente, que a proposta de lei dos direitos autorais não prejudica os artistas, mas, provavelmente, os intermediários. (Ver texto:http://www.cultura.gov.br/consultadireitoautoral/lei-961098-consolidada/). Pensar a sociedade pautada pelo mercado, como se nele houvesse a respostas para nossos problemas, conflitos, criações e liberdades, certamente não é a melhor maneira se inventar um país, mas é uma boa maneira de se excluir do debate todos aqueles que operam fora do mercado, ou seja, a vida mesmo.
            Nesse sentido, há frases um tanto estranhas no texto do Cacá Diegues, como essa: “o mercado estabeleceu o direito de o artista dizer o que pensa sobre o estado do mundo, independentemente do que pensam os que mandam nele”, certamente que essa luta foi, e é, é, feita por outros atores também muito importantes. Mas a que me parece mais grave nesse momento corre o risco de passar despercebida: Para defender os autores ele diz que quem fabrica a “alma de um povo” são os homens que a criam. Pois, diferentemente do que o Cacá afirma, quem inventa “a alma de um povo” é o povo. Retirar de todo e qualquer homem esse papel é promover a aristocracia ou a oligarquia, como queira. Mas, definitivamente estaremos nos distanciando da democracia. 

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Enviados pela Patrícia Cornils:
Fonte: Polis + Arte

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