setembro 04, 2013

"Jornalismo, desinformação e preconceito", por Muniz Sodré

PICICA: "A omissão informativa maior, entretanto, diz respeito ao fato de que “há mais de 30 mil médicos cubanos trabalhando em 69 países da América Latina, da África, da Ásia e da Oceania, lidando com pessoas que falam inglês, francês, português e dialetos locais. Só no Haiti, onde a população fala francês e o dialeto creole, há 1.200 médicos cubanos – que sustentam o sistema de saúde daquele país e, como profissionais com alto nível de educação formal, aprendem rapidamente línguas estrangeiras”. Outros dados, de outras fontes, chegam mesmo a ampliar esses números para 113 mil médicos.

É oportuno buscar diretamente fontes dessa ordem para dosar a informação corrente na mídia hegemônica. Por isso não cabe insistir na repetição dos dados trazidos à luz por Hélio Doyle. Mas uma citação da revista norte-americana New England Journal of Medicine nos parece definitiva:

“O sistema de saúde cubano parece irreal. Há muitos médicos. Todo mundo tem um médico de família. Tudo é gratuito, totalmente gratuito. Apesar do fato de que Cuba dispõe de recursos limitados, seu sistema de saúde resolveu problemas que o nosso não conseguiu resolver ainda. Cuba dispõe agora do dobro de médicos por habitante do que os EUA”."



MÉDICOS CUBANOS

Jornalismo, desinformação e preconceito

Por Muniz Sodré em 03/09/2013 na edição 762



Dois anos atrás, minha apertada poltrona num vôo internacional era vizinha à de um cidadão, com quem conversei um pouco ao longo da viagem. Era um próspero fazendeiro do interior paulista, que retornava de uma estada em Cuba, onde tinha ido tratar-se de uma doença grave. Aberto a revelações, ele me disse seguir outros conhecidos em sua região, também clientes do sistema de saúde cubano, que era eficiente e baratíssimo. A informação sobre essa demanda brasileira era uma surpresa e eu, que jamais estive em Cuba, quis saber mais sobre os sentimentos dele com relação àquele país. Tive, então, a segunda surpresa: o rosado beneficiário desatou em ofensas ao país e ao povo, para ele coniventes com a falta de liberdades civis. Nenhuma palavra de gratidão para os médicos que tentavam lhe salvar a vida.

O episódio vem-me agora à cabeça em face dos eventos e do noticiário recorrente na mídia brasileira sobre a imigração de médicos cubanos. Não disponho de elementos para avaliar com precisão o modo como foi implantado o programa governamental “Mais Médicos” e também partilho os receios daqueles que apontam para a provável impotência da ação médica em regiões sem qualquer infraestrutura hospitalar.

A questão aqui discutida, entretanto, é a presença dos profissionais de Cuba, que gerou o vexaminoso episódio do preconceito em Fortaleza. Na contramão das informações correntes, vale registrar alguns dos dados revelados pelo jornalista Hélio Doyle, membro do núcleo de estudos cubanos da Universidade de Brasília. O que não se conta (ou se conta em letras miúdas...) é que médicos cubanos já trabalharam no Brasil a serviço de comunidades pobres e distantes nos estados de Tocantins, Roraima e Amapá, sem que tivesse havido qualquer reclamação quanto à qualidade do atendimento. Deixaram de trabalhar por pressão do corporativismo médico.

Diversidade propalada

A omissão informativa maior, entretanto, diz respeito ao fato de que “há mais de 30 mil médicos cubanos trabalhando em 69 países da América Latina, da África, da Ásia e da Oceania, lidando com pessoas que falam inglês, francês, português e dialetos locais. Só no Haiti, onde a população fala francês e o dialeto creole, há 1.200 médicos cubanos – que sustentam o sistema de saúde daquele país e, como profissionais com alto nível de educação formal, aprendem rapidamente línguas estrangeiras”. Outros dados, de outras fontes, chegam mesmo a ampliar esses números para 113 mil médicos.

É oportuno buscar diretamente fontes dessa ordem para dosar a informação corrente na mídia hegemônica. Por isso não cabe insistir na repetição dos dados trazidos à luz por Hélio Doyle. Mas uma citação da revista norte-americana New England Journal of Medicine nos parece definitiva:

“O sistema de saúde cubano parece irreal. Há muitos médicos. Todo mundo tem um médico de família. Tudo é gratuito, totalmente gratuito. Apesar do fato de que Cuba dispõe de recursos limitados, seu sistema de saúde resolveu problemas que o nosso não conseguiu resolver ainda. Cuba dispõe agora do dobro de médicos por habitante do que os EUA”.

Reitero não conhecer Cuba e, em consequência, depender por inteiro de relatos informais e da formalidade midiática para tentar uma abordagem compreensiva da realidade atual daquele país. Não há, assim, como evitar a pergunta: por que informações como essas acima trazidas não aparecem em nossa imprensa, ainda que fosse para desmenti-las? Onde comparece no jornalismo profissional a propalada “diversidade de ângulos”, que supostamente representaria a superioridade do profissionalismo corporativo sobre as formas ditas “pré-jornalísticas”, recorrentes no fluxo caótico das redes eletrônicas?

Pedido de desculpas

Na cobertura jornalística do encerramento do campeonato mundial de judô no Rio (O Globo, 1/9/2013), a notícia de que a alemã Maria Suellen, primeiro do ranking mundial, foi derrotada pela cubana Idalys Ortiz aparecia espremida no meio do texto. Coisinhas assim são recorrentes na informação pública sobre Cuba.

Os efeitos da desinformação e da manipulação de dados estão visíveis na enxurrada de preconceitos e agressões veiculados pela mídia nacional a propósito da chegada de médicos cubanos. Atitudes e comportamentos vergonhosos pontuam desde a jornalista que enxergou aparências de “empregadas domésticas” na fenotipia dos imigrantes até os médicos que, em Fortaleza, vaiaram os colegas.

Na televisão, o político Ciro Gomes pediu desculpas em nome do Ceará. Sua fala passava sinceridade. Talvez alguém precise fazer o mesmo em nome do país como um todo.

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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Fonte: Observatório da Imprensa

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