março 31, 2015

"O Estatuto da Metrópole e seu financiamento". Por Luciana Royer

PICICA: "O arranjo tripartite que caracteriza a federação brasileira tem gerado questões que parecem de difícil resolução para as nossas cidades. É sabido que os limites administrativos municipais não correspondem aos limites físicos das metrópoles e algumas soluções no sentido de fortalecer jurídica e administrativamente as chamadas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas vêm sendo objeto de discussão desde a Constituição Federal de 1988. O Estatuto da Metrópole, lei federal 13.089/2015 aprovada em janeiro, insere-se nesse debate."

O Estatuto da Metrópole e seu financiamento


Ilustração: Luisa Moritz Kon.
Ilustração: Luisa Moritz Kon.

Por Luciana Royer*
O arranjo tripartite que caracteriza a federação brasileira tem gerado questões que parecem de difícil resolução para as nossas cidades. É sabido que os limites administrativos municipais não correspondem aos limites físicos das metrópoles e algumas soluções no sentido de fortalecer jurídica e administrativamente as chamadas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas vêm sendo objeto de discussão desde a Constituição Federal de 1988. O Estatuto da Metrópole, lei federal 13.089/2015 aprovada em janeiro, insere-se nesse debate.

Um ponto importante que o estatuto traz é a obrigação de promover a governança interfederativa (art. 3º, parágrafo único), por meio de instâncias executiva e colegiada deliberativa e de um sistema integrado de alocação de recursos. Essa estrutura de governança é inclusive colocada como requisito para a instituição de novas regiões metropolitanas. Outro ponto importante do estatuto é a previsão de um plano de desenvolvimento urbano integrado que visa estimular o planejamento de ações, a gestão e a execução das funções públicas de interesse comum.

A questão do financiamento das ações e projetos metropolitanos, no entanto, continua não solucionada. Ainda que o repasse de recursos não onerosos para consórcios públicos já tenha um caminho trilhado (por meio de programas de aplicação de recursos da União), uma fonte estável de recursos fiscais e mesmo o financiamento com recursos onerosos ainda são lacunas legais e políticas. Quais são as garantias para concessão de financiamento aos entes metropolitanos? Como se dará a partição de receitas tributárias entre os municípios integrantes desses entes? Haverá um regime jurídico próprio para esse agrupamento ou apenas para a entidade encarregada de administrar (vinculada ao estado)? Qual é a capacidade de endividamento desse agrupamento ou região?

Em um quadro de austeridade fiscal permanente para a gestão pública, a definição do funding do desenvolvimento urbano integrado é primordial e desafia as boas intenções da lei. Por esse motivo, o veto presidencial aos dispositivos que criavam justamente um fundo nacional de desenvolvimento urbano integrado provoca dúvidas sobre a possível efetividade do estatuto. Conforme as razões de veto publicadas no Diário Oficial da União, “a criação de fundos cristaliza a vinculação a finalidades específicas, em detrimento da dinâmica intertemporal de prioridades políticas. Além disso, fundos não asseguram a eficiência, que deve pautar a gestão de recursos públicos. Por fim, as programações relativas ao apoio da União ao Desenvolvimento Urbano Integrado, presentes nas diretrizes que regem o processo orçamentário atual, podem ser executadas regularmente por meio de dotações orçamentárias consignadas no Orçamento Geral da União.”

A “dinâmica intertemporal das prioridades políticas”, apontada como uma das razões do veto aos artigos do fundo metropolitano, é justamente um dos pontos críticos da questão metropolitana. Como resolver o ponto cego do financiamento das ações que não são prioritárias para os prefeitos, às voltas com a insuficiência de recursos próprios para os desafios locais, não são prioritárias para os governadores, e que precisam contar exclusivamente com as dotações consignadas no Orçamento Geral da União, sujeitas aos contingenciamentos usuais para a composição do superávit primário?
A pretensa solução, então, recai na atual panaceia dos males fiscais da gestão pública: as parcerias público-privadas. Na esteira do Estatuto da Cidade, que já consagrava essa lógica, o Estatuto da Metrópole aponta, como instrumentos de promoção do desenvolvimento urbano integrado, as parcerias público-privadas e as operações urbanas consorciadas interfederativas.

Além de críticas consistentes ao real efeito redistributivo desses instrumentos, aliado ao potencial elevado de captura de recursos públicos escassos, é importante refletir sobre a possibilidade de aprovação de operações urbanas por lei estadual. Tratando-se de operação estruturada de financiamento de projetos alicerçada em venda de potencial adicional de construção e, dada a competência municipal para promover o controle do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano, parece ser questionável a competência que o Estatuto da Metrópole confere aos estados para dispor sobre instrumentos regulatórios dos municípios. Para esse fim, no entanto, o Estatuto da Metrópole fez uma única alteração pontual no Estatuto da Cidade, modificando o antigo artigo 34 da lei 10.257/2001 (ver art. 24 do Estatuto da Metrópole).

Ao vetar um fundo metropolitano e autorizar a execução de parcerias público-privadas e operações urbanas interfederativas, o estatuto parece abrir um flanco perigoso para um aprofundamento das desigualdades metropolitanas. A questão de um funding estável para as regiões metropolitanas e de seu financiamento com recursos onerosos permanece sem solução e desafia a efetividade do estatuto. Implantar um federalismo cooperativo democrático é uma das razões de ser do Estado brasileiro após a Constituição de 1988. O Estatuto da Metrópole, portanto, pode ser recebido como mais um capítulo na disputa por políticas regionais que diminuam as desigualdades e promovam a efetivação de direitos individuais e coletivos na federação e não como solução para essas questões.

Histórico – Até a Constituição de 1988, quem declarava se um aglomerado de municípios poderia ou não ser denominado legalmente como região metropolitana era a União. Entre 1973 e 1974, foram instituídas nove regiões metropolitanas: Belo Horizonte, Belém, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. Após essa data, a Constituição delegou aos estados essa prerrogativa. Assim, muitas regiões metropolitanas foram formalmente criadas após 1988: atualmente, são 51 regiões metropolitanas e 3 regiões integradas de desenvolvimento (RIDE). Os critérios técnicos e geográficos para a criação dessas regiões não foram equivalentes entre os estados e algumas disfunções surgiram dessa denominação, com estados instituindo diversas regiões metropolitanas (Santa Catarina), regiões metropolitanas formadas por um único município (Manaus), ou ainda 39 municípios formando uma única região metropolitana (São Paulo).

Mas o processo de metropolização, ou o ‘fenômeno metropolitano’, não pode ser confundido com a definição legal de região metropolitana. Não são todas as regiões metropolitanas do Brasil que se caracterizam como aglomerados metropolitanos no sentido fenomenológico.[i] Para uma melhor compreensão do fenômeno metropolitano e das regiões metropolitanas é necessário, segundo Firkowski:[ii]
  1. a compreensão teórico-conceitual de metrópole como uma grande cidade, que possui funções superiores de comando e gestão articulada à economia global, atuando como porta de entrada dos fluxos globais no território nacional e na qual se ancoram interesses internacionais, ao mesmo tempo que emite, para o território nacional, vetores de modernidade e complexidade;
  2. a compreensão institucional de região metropolitana, definida por força de leis estaduais, relacionadas aos interesses políticos, por vezes, motivadas pela necessidade de ordenamento do território na escala regional e cuja cidade-polo não é necessariamente uma metrópole;
  • a compreensão oficial de metrópole, dada pelos estudos do IBGE, que analisa a realidade brasileira à luz da visão conceitual, também utilizando metodologia própria e particularizando a classificação para a escala nacional.
A Constituição de 1988 define regiões metropolitanas como “constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, com o objetivo de integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum” (Art. 25, § 3º). No entanto, muitas dessas funções foram desestimuladas ao longo das décadas de 1980 e 1990 por conta da crise fiscal dos estados da federação. Assim, as regiões metropolitanas acabaram relegadas muitas vezes a um simples ajuntamento formal que não necessariamente conta com órgãos próprios de gestão.

O Estatuto da Metrópole busca preencher parte da lacuna federal no ordenamento das metrópoles brasileiras. Contém diretrizes e normas gerais para “o planejamento, a gestão e a execução das funções públicas de interesse comum em regiões metropolitanas e em aglomerações urbanas instituídas pelos Estados, normas gerais sobre o plano de desenvolvimento urbano integrado e outros instrumentos de governança interfederativa, e critérios para o apoio da União a ações que envolvam governança interfederativa no campo do desenvolvimento urbano, com base nos incisos XX do art. 21, IX do art. 23 e I do art. 24, no § 3º do art. 25 e no art. 182 da Constituição Federal.”

* Luciana Royer é arquiteta e urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

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[i] Ver MOURA, Rosa; CINTRA, Anael. Dinâmicas Territoriais da População: Primeiros Resultados do Censo 2010. Nota Técnica nº 22 IPARDES. Curitiba: IPARDES, 2011. Cf. também: FIRKOWSKI, Olga L.C.F. Metrópoles e Regiões Metropolitanas no Brasil: conciliação ou divórcio? In FURTADO, B.A.; KRAUSE, C.; FRANÇA, K.C.B. (eds.). Território metropolitano, políticas municipais: por soluções conjuntas de problemas urbanos no âmbito metropolitano. Brasília: Ipea, 2013.

[ii] FIRKOWSKI, Olga L.C.F. Metrópoles e Regiões Metropolitanas no Brasil: conciliação ou divórcio? In FURTADO, B.A.; KRAUSE, C.; FRANÇA, K.C.B. (eds.). Território metropolitano, políticas municipais: por soluções conjuntas de problemas urbanos no âmbito metropolitano. Brasília: Ipea, 2013.

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*Sugestões de leitura:

ABRUCIO, Fernando L.; SANO, Hinoboru; SYDOW, Cristina T. Radiografia do associativismo territorial brasileiro: tendências, desafios e impactos sobre as regiões metropolitanas. In KLINK, Jeroen (Org.) Governança das metrópoles: conceitos, experiências e perspectivas. São Paulo: Annablume, 2010.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010 – aglomerados subnormais: primeiros resultados. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/92/cd_2010_aglomerados_subnormais.pdf&gt;.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Região de Influência das Cidades 2007. Rio de Janeiro: IBGE, 2008.

MOURA, Rosa; HOSHINO, Thiago A.P. Estatuto da metrópole: Enfim, aprovado! Mas o que oferece à metropolização brasileira? Disponível em http://www.observatoriodasmetropoles.net/download/estatuto_metropole_artigo_rosa.pdf. Acesso em 30 jan 2015.

ROYER, Luciana O. Municípios “Autárquicos” e Região Metropolitana: a questão habitacional e os limites administrativos In FURTADO, B.A.; KRAUSE, C.; FRANÇA, K.C.B. (eds.). Território metropolitano, políticas municipais: por soluções conjuntas de problemas urbanos no âmbito metropolitano. Brasília: Ipea, 2013.

Fonte: Observa SP

"Para Brasília, só com passaporte", por Eliane Brum

PICICA: "A proposta inconstitucional da redução da maioridade penal vai mostrar quem é mais corrupto: se o povo ou o Congresso"

Para Brasília, só com passaporte

A proposta inconstitucional da redução da maioridade penal vai mostrar quem é mais corrupto: se o povo ou o Congresso


No filme Branco Sai, Preto Fica, em cartaz nos cinemas do Brasil, para alcançar Brasília é preciso passaporte. O elemento de ficção aponta a brutal realidade do apartheid entre cidades-satélites como Ceilândia, onde se passa a história, e o centro do poder, onde a vida de todos os outros é decidida. Aponta para um apartheid entre Brasília e o Brasil. Ao pensar no Congresso Nacional, é como a maioria dos brasileiros se sente: apartada. O Congresso mal iniciou o atual mandato e tem hoje uma das piores avaliações desde a redemocratização do Brasil: segundo o Datafolha, só 9% considera sua atuação ótima ou boa, 50% avalia como ruim ou péssima. É como se houvesse uma cisão entre os representantes do povo e o povo que o elegeu. É como se um não tivesse nada a ver com o outro, como se ninguém soubesse de quem foram os votos que colocaram aqueles caras na Câmara e no Senado, fazendo deles deputados e senadores, é como se no dia da eleição tivéssemos sido clonados por alienígenas que elegeram o Congresso que aí está. É como se a alma corrompida do Brasil estivesse toda lá. E, aqui, o que se chama de povo brasileiro não se reconhecesse nem na corrupção nem no oportunismo nem no cinismo.

Há, porém, uma chance desse sentimento de cisão desaparecer, e o Brasil testemunhar pelo menos um grande momento de comunhão entre o Congresso e o povo. Alma corrompida com alma corrompida. Cinismo com cinismo. A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara pode decidir, nesta semana, pela admissibilidade da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93. Ela reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos. Se isso acontecer, a proposta, que estava engavetada desde o início dos anos 90, terá vencido uma barreira importante e seguirá seu caminho na Câmara e no Senado. Diante do Congresso mais conservador desde a redemocratização, com o crescimento da "bancada da bala", formada por parlamentares ligados às forças de repressão, há uma possibilidade considerável de que seja aprovada. E então o parlamento e o povo baterão com um só coração. Podre, mas uníssono.

A redução da maioridade penal como medida para diminuir a impunidade e aumentar a segurança é uma fantasia fabricada para encobrir a verdadeira violência. Segundo o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), dos 21 milhões de adolescentes brasileiros, apenas 0,013% cometeu atos contra a vida. Mas são eles que estão sendo assassinados sistematicamente: o Brasil é o segundo país no mundo em número absoluto de homicídios de adolescentes, atrás apenas da Nigéria. Hoje, os homicídios já representam 36,5% das causas de morte por fatores externos de adolescentes no país, enquanto para a população total corresponde a 4,8%. Mais de 33 mil brasileiros de 12 a 18 anos foram assassinados entre 2006 e 2012. Se as condições atuais prevalecerem, afirma o Unicef, até 2019 outros 42 mil serão assassinados no Brasil.

Quem está violando quem? Quem não está protegendo quem? Quem deve ser responsabilizado por não garantir o direito de viver à parte das crianças e dos adolescentes?

Há uma verdade mais dura sobre nós: a da nossa alma corrompida

Ainda assim, mais de 90% dos brasileiros, segundo pesquisa realizada em 2013 pela Confederação Nacional dos Transportes, aprovam que se coloque adolescentes em prisões que violam as leis e os direitos humanos mais básicos, no quarto sistema carcerário mais populoso do mundo, em flagrante colapso e incompetente na garantia de condições para que uma pessoa construa um outro destino que não o do crime. Se aprovada essa violação da Constituição, a segurança não vai aumentar: o que vai aumentar é a violência. E a capacidade da sociedade brasileira de produzir crime disfarçado de legalidade.

Parte da sensação de que há um exército de crianças e adolescentes perversos, prontos para atacar “os cidadãos de bem”, costuma ser atribuída à enorme repercussão de crimes macabros com a participação de menores de idade. Aquilo que é exceção, ao ser amplificado como se fosse a regra, regra se torna. As estatísticas desmentem com clareza esse imaginário, mas o sentimento, reforçado por parte da mídia, seria mais forte do que a razão. Viraria então uma crença sobre a realidade, manipulada por todos aqueles que dela se beneficiam para justificar seus lucros, seus empregos e sua própria violência, esta sim amparada em números bem eloquentes.

Essa é uma parte da verdade, mas não toda. É a parte da verdade benigna para a sociedade brasileira, que só apoiaria a redução da maioridade penal por ser iludida e manipulada pela mídia ou pelos deputados ou pela indústria da segurança. Manipulada por alguém, um outro esperto e diabólico, que a levaria a conclusões erradas para obter benefícios pessoais ou para corporações públicas e privadas. Seria um alento se essa fosse a melhor explicação, porque bastaria o esclarecimento e o tratamento correto dos fatos, para que a sociedade chegasse a uma análise coerente da realidade e à óbvia conclusão de que a redução da maioridade penal só serviria para produzir mais crime contra os mesmos de sempre.

Os mesmos que clamam pela redução da maioridade penal convivem sem espanto com o genocídio da juventude negra e pobre das periferias

Há, porém, uma verdade mais dura sobre nós. É a da nossa alma apodrecida por um tipo de corrupção muito mais brutal do que a revelada pela Operação Lava Jato, com consequências mais terríveis do que aquela apontada com tanta veemência nas ruas. A cada ano, uma parte da juventude brasileira, menor e maior de idade, é massacrada. E a mesma maioria que brada pela redução da maioridade penal não se indigna. Sequer se importa. No Brasil, sete jovens de 15 a 29 anos são mortos a cada duas horas, 82 por dia, 30 mil por ano. Esses mortos têm cor: 77% são negros. Enquanto o assassinato de jovens brancos diminui, o dos jovens negros aumenta, como mostra o Mapa da Violência de 2014.

Há uma parcela crescente da juventude negra, pobre e moradora das periferias que morre antes de chegar à vida adulta. Num país em que a expectativa de vida alcançou os 74,9 anos, essa parcela morre com idade semelhante à de um escravo no século 19. E isso não causa espanto. Ninguém vai para as ruas denunciar esse genocídio, clamar para que ele acabe. São poucos os que se indignam e menos ainda os que tentam impedir esse massacre cotidiano.

Como é que vivemos enquanto eles morrem? Como é que dormimos com os gritos de suas mães? Possivelmente porque naturalizamos a sua morte, o que significa compreender o incompreensível, que dentro de nós acreditamos que o assassinato anual de milhares de jovens negros e pobres é normal. E, se essa é a realidade, a de que somos ainda piores do que os senhores de escravos, o que essa verdade faz de nós?

Acontece a cada dia. E a maioria das mortes nem merece uma menção na imprensa. Quando eu era repórter de polícia e ligava para as delegacias perguntando o que tinha acontecido nas madrugadas, sempre tinha acontecido, mas era visto como um desacontecido. “Não aconteceu nada”, era a invariável resposta dos policiais de plantão. Tinham morrido vários, mas eram da cota (sim, as cotas sempre existiram) dos que podem morrer. Estas seriam as mortes não investigadas, as mortes que não seriam notícia. Crime que merecia investigação e cobertura, já era bem entendido, era de branco e, de preferência, rico, ou pelo menos classe média. Dizia-se, no passado, que a melhor escola do jornalismo era a editoria de polícia. Era, de fato, a melhor escola para compreender em profundidade as engrenagens que movem a sociedade brasileira, porque já na primeira aula se aprendia que a morte de uns é notícia, a de outros é estatística.

Assim como os senhores de escravos internalizaram que os negros eram coisas, ou, conforme o momento histórico, uma categoria inferior na hierarquia das gentes, mais de um século depois da abolição oficial da escravatura, a sociedade brasileira naturalizou que existe uma parte da juventude negra que pode ser morta ao redor dos 20 anos sem que ninguém se espante. Se de fato fôssemos pessoas decentes, não era isso o que deveríamos estar gritando em desespero nas ruas? Mas nos corrompemos, ou nunca conseguimos deixar a condição de corruptos de alma.

Em vez disso, clama-se pela redução da maioridade penal, para colocar aqueles que a sociedade não protege cada vez mais cedo em prisões onde todos sabem o quanto é corriqueira a rotina de torturas e estupros, sem contar a superlotação que faz com que em muitas celas seja preciso alternar os que dormem com os que ficam acordados, porque não há espaço para todos ficarem deitados. Como se já não soubéssemos que as unidades que internam adolescentes infratores, contrariando a lei, são na prática prisões, infernos em miniatura, com todo o tipo de violações dos direitos mais básicos. Alguém, nos dias de hoje, pode alegar desconhecer que é assim? E então, como é possível conviver com isso?

O debate na Comissão de Constituição e Justiça desceu a níveis de cloaca

Em 24 de março, no debate sobre a redução da maioridade penal na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, o deputado “delegado” Éder Mauro (PSD-PA) afirmou, conforme cobertura do portal jurídico Jota no Twitter: “Não podemos aceitar que, assim como o Estado Islâmico, que mata sob a proteção da religião, os menores infratores, bandidos infratores, menores desse país, matam sob a proteção do ECA”. Como uma asneira desse porte não vira escândalo? Comparar a lei que ampara as crianças e os adolescentes com as (des)razões alegada pelo Estado Islâmico para decapitar e queimar pessoas é uma afronta à inteligência, mas a discussão na Câmara sobre um tema tão crucial desce a esse nível de cloaca. A sessão foi encerrada depois de um bate-boca em que foi preciso separar outros dois deputados. E, assim, o Estatuto da Criança e do Adolescente, uma das leis mais admiradas e copiadas no mundo inteiro, mas que infelizmente até hoje não foi totalmente implementada, é colocada na mesma frase que o Estado Islâmico. Colegas me sugeriram que não deveria dar espaço a uma declaração e a um deputado desse calibre, mas ele está lá, eleito, bem pago e vociferando bobagens perigosas no parlamento do país. É preciso levar muito a sério a estupidez com poder, uma lição que já deveríamos ter aprendido.

Os manifestantes de 15 de março, que protestaram contra a corrupção, tiraram selfies com uma das polícias que mais mata no mundo

É verdade que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. É o que descobriu Alan de Souza Lima, de 15 anos, em fevereiro, na favela de Palmeirinha, em Honório Gurgel, subúrbio do Rio. Morreu com o celular na mão, e só por isso deixou de ser apenas estatística para virar narrativa, com nome e sobrenome e uma história nos jornais. Alan estava conversando com mais dois amigos e gravava um vídeo no celular. Acabou documentando a sua agonia, depois de ser baleado pela polícia. Como de hábito, a corporação alegou o famoso “confronto com a polícia”, o argumento padrão com que a PM costuma justificar sua assombrosa letalidade, uma das campeãs do mundo. E de imediato acusaram os três de estarem armados e de resistirem à prisão. Mas Alan morria e gravava. A gravação, que foi para a internet, mostrava que não resistiram. Chauan Jambre Cezário, de 19 anos, foi baleado no peito. Ele vende chá mate na praia e sobreviveu para dizer que nunca usou uma arma. A culpa dos garotos era a de viver numa favela, lugar onde a lei não escrita, mas vigente, autoriza a PM a matar. No vídeo há uma frase que deveria estar ecoando sem parar na nossa cabeça. Quando um dos policiais pergunta aos garotos por que estavam correndo, um deles responde:

- A gente tava brincando, senhor.

A frase deveria ficar ecoando na nossa cabeça até que tivéssemos o respeito próprio de nos levantarmos contra o genocídio cotidiano de parte da juventude do Brasil.

A gente tava brincando, senhor.
A gente tava brincando, senhor.
A gente tava brincando, senhor.
A gente tava brincando, senhor.
A gente tava brincando, senhor.
A gente tava brincando, senhor.
A gente tava brincando, senhor.
A gente tava brincando, senhor.
A gente tava brincando, senhor.
A gente tava brincando, senhor.
A gente tava brincando, senhor.
 A gente tava brincando, senhor. E então o senhor atirou. Feriu. Matou.

Aqueles que foram para as ruas bradar contra a corrupção tiraram selfies com uma das polícias que mais mata no mundo. Só a Polícia Militar do Estado de São Paulo, governado há mais de 20 anos pelo PSDB, matou, em 2014, uma pessoa a cada dez horas. Se os manifestantes que tiraram selfies com a PM no protesto de 15 de março na Avenida Paulista admiram a corporação pela eficiência, precisamos compreender o que esses brasileiros entendem por corrupção, no sentido mais profundo do conceito.

Numa pesquisa da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), intitulada “Desigualdade Racial e Segurança Pública em São Paulo”, as pesquisadores Jacqueline Sinhoretto, Giane Silvestre e Maria Carolina Schlittler chegaram a conclusões estarrecedoras. Pelo menos 61% das vítimas mortas por policiais são negras. E mais da metade tem menos de 24 anos. Já 79% dos policiais que mataram são brancos. O fator racial é determinante: as ações policiais vitimam três vezes mais negros do que brancos. As mortes são naturalizadas: apenas 1,6% dos autores foram indiciados como responsáveis pelos crimes. É a Polícia Militar a responsável por 95% da letalidade policial no estado de São Paulo.
Em fevereiro, a PM de Salvador executou 12 jovens no bairro de Cabula. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Nove. Dez. Onze. Doze.

O que o governador da Bahia disse, depois dos corpos tombados no chão pela polícia que comanda? A comparação jamais deve ser esquecida. Depois de parabenizar a PM, Rui Costa (PT-BA) comparou a posição do policial diante de suspeitos a de “um artilheiro em frente ao gol, que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol”. Rui Costa foi aplaudidíssimo.

O futebol continua dizendo muito sobre o Brasil: botar uma bala no corpo de um negro é o mesmo que fazer gol, diz o governador baiano

É isso. Enfiar uma bala no corpo de jovens negros e pobres das periferias é fazer como a Alemanha no icônico 7X1 contra o Brasil: “botar a bola dentro do gol”. E isso dito não nos tempos de Antônio Carlos Magalhães, o poderoso coronel da Bahia, mas pelo governador do Partido dos Trabalhadores, supostamente de esquerda. O futebol continua dizendo muito sobre o Brasil.

É por isso que, no filme Branco Sai, Preto Fica, quem é negro e pobre precisa de passaporte para entrar em Brasília. O título do filme é a frase berrada pela polícia ao invadir um baile no “Quarentão”, na Ceilândia, na noite de 5 de março de 1986, onde jovens dançavam, depois de passar a semana ensaiando os passos. A PM entrou gritando: “Puta de um lado, Veado do outro. Branco sai, Preto fica". Quase três décadas depois, Marquim do Tropa e Shockito são atores interpretando em grande parte o seu próprio papel. Marquim para sempre numa cadeira de rodas pelo tiro que levou, Shockito com uma perna mecânica depois de ter perdido a sua pisoteada por um cavalo da polícia. Resultado do Branco Sai, Preto Fica daquela noite. Sem passaporte para fora do massacre porque, na condição de pretos, eles ficaram.

Branco Sai, Preto Fica tem sido descrito como uma mistura especialmente brilhante entre documentário e ficção científica, com nuances de humor. Ganhou o prêmio de melhor filme no Festival de Brasília de 2014 e chegou há pouco aos cinemas do país. Para mim, o filme de Adirley Queirós se iguala, na potência do que diz sobre o Brasil e na forma criativa como diz, às dimensões do já mítico Bye Bye Brasil, de Cacá Diegues. São filmes que falam de Brasis diferentes, em momentos históricos diferentes, e, também por isso, falam do mesmo Brasil.

É do futuro, do ano de 2073, que vem outro personagem, Dimas Cravalanças, cuja máquina do tempo é um contêiner. A Ceilândia do presente lembra, sem necessidade de nenhum esforço de produção, um cenário pós-apocalíptico. Cravalanças tem a missão de encontrar provas para uma ação contra o Estado pelo assassinato da população negra e pobre das periferias. A voz que o orienta do futuro alerta: “Sem provas, não há passado”.

A Comissão da Verdade da Democracia vai investigar os crimes cometidos pelo Estado

Só na ficção para responsabilizar o Estado pelo genocídio cotidiano da juventude pobre e negra? Quase sempre, sim. Mas algo se move na realidade, com pouco apoio da maioria da sociedade e escassa atenção da mídia. No fim de fevereiro, foi instalada na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo a Comissão da Verdade da Democracia “Mães de Maio”. Sua criação é uma enormidade na história do Brasil, um marco. Depois de apurar os crimes da ditadura, uma comissão para investigar os crimes praticados pelo Estado na democracia. Em busca de provas no passado recente para que tenhamos um futuro.

“Mães de Maio”, que empresta o nome à comissão, é um grupo de mulheres que perderam seus filhos entre 12 e 20 de maio de 2006, quando uma onda de violência tomou São Paulo a partir de confrontos da polícia com o crime organizado. Foram 493 mortes neste período, pelo menos 291 delas ligadas ao que se convencionou chamar de “crimes de maio”. Pelo menos quatro pessoas continuam desaparecidas. Edson Rogério, 29 anos, filho de Debora Maria da Silva, líder do “Mães de Maio”, foi executado com cinco tiros. Há suspeita é de que os autores do assassinato sejam policiais. Segundo Debora, seu filho gritava antes de ser morto: “Sou trabalhador!”. Seu assassinato segue impune. Edson morreu na mesma rua que, como gari, havia varrido pela manhã.

Nem as centenas de assassinatos de maio de 2006, nem as mortes aqui relatadas ocorridas há pouco, exemplos do genocídio cotidiano, moveram sequer um milésimo da revolta provocada por crimes com a participação de menores em que foram assassinados brancos de classe média ou alta. Seria demais esperar que um assassinato fosse um assassinato, independentemente da cor e da classe social? Menos que isso é aceitar que a vida de uns vale mais do que a de outros, e que essa hierarquia é dada pela cor da pele e pela classe social. Se é assim que você compreende o valor de uma pessoa, diga o que você é diante do espelho. Não para o mundo inteiro, para você mesmo já basta.

Sim, esse Congresso comandado por dois políticos investigados por corrupção é, ressalvando as exceções, que também existem, uma vergonha. Mas minha esperança é que, no que se refere à proposta inconstitucional da redução da maioridade penal, o Congresso seja melhor do que o povo brasileiro. Tenha grandeza histórica pelo menos uma vez e diga não a nossas almas tão corrompidas.
Enquanto isso se desenrola em Brasília, vá ver Branco Sai, Preto Fica. Ao sair do cinema, você saberá que um jovem, quase certamente negro, morreu assassinado no Brasil enquanto você estava lá.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site: descontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum
Fonte: El País (Brasil)

"O continuísmo do regime de exceção brasileiro, violência e a necessidade de uma justiça de transição". Escrito por Mariana Parra

PICICA: "Dando seguimento às reflexões trazidas no texto O Brasil precisa de um processo de paz, que tratou sobre a necessidade de uma ampla mobilização da sociedade para o combate às violações sistemáticas de direitos humanos cometidas pelo Estado e à violência epidêmica com a qual convivemos, o presente texto tem como objetivo aprofundar a análise sobre a importância de um processo de justiça transicional." 

O continuísmo do regime de exceção brasileiro, violência e a necessidade de uma justiça de transição Imprimir E-mail
Escrito por Mariana Parra   
Sexta, 27 de Março de 2015




Dando seguimento às reflexões trazidas no texto O Brasil precisa de um processo de paz, que tratou sobre a necessidade de uma ampla mobilização da sociedade para o combate às violações sistemáticas de direitos humanos cometidas pelo Estado e à violência epidêmica com a qual convivemos, o presente texto tem como objetivo aprofundar a análise sobre a importância de um processo de justiça transicional.

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) apresentou em seu relatório final reformas nas instituições e ações que o governo brasileiro deve tomar para romper com o regime de exceção passado e os seus resquícios que persistem e contaminam a democracia. As recomendações tratam sobre a situação atual de sistemáticas violações aos direitos humanos cometidas pelo Estado e seu vínculo com a impunidade dos crimes cometidos durante o regime de exceção. A implementação das recomendações certamente representaria uma ruptura fundamental do Estado e da sociedade brasileira com seu passado sombrio e a possibilidade de construção de um presente onde, de fato, a paz e o respeito aos direitos humanos de todos fosse possível.

Uma das recomendações do relatório é a extinção das Justiças Militares estaduais, um dos fatores críticos no cenário de impunidade, no qual a polícia extermina principalmente jovens, negros e moradores das favelas e periferias do país. Mas como seria possível executar essa recomendação, assim como a desmilitarização das polícias militares estaduais, algo clamado há tempos pelos movimentos sociais, sem um processo de transição?
 
Atualmente, os casos em que familiares de vítimas da violência policial conseguem justiça praticamente podem ser contados nos dedos. Um desses casos raros foi recentemente com a condenação de um ex-cabo da PM pelo assassinato de três jovens, nos chamados "Crimes de Maio", que aconteceram em maio de 2006, com o extermínio de mais de 600 jovens nas periferias de São Paulo e da Baixada Santista. Nesse ritmo, quando alcançaremos a justiça e a garantia do Estado democrático de direito?

Ao cenário de impunidade e violações sistemáticas aos direitos humanos pelo Estado, soma-se o cenário de violência e impunidade como um todo. Dados apontam que apenas de 5 a 8% dos assassinatos são punidos no Brasil. O aumento do número de estupros no país é outro dado preocupante sobre a epidemia de violência com a qual convivemos.

Violência, encarceramento em massa e falência de políticas punitivistas


A eficácia das políticas de encarceramento para o combate à criminalidade e à violência vem sendo questionada no mundo todo, e também sua legitimidade e compatibilidade com a democracia e os direitos humanos. Em sua visita ao Brasil, Angela Davis comentou numa entrevista sobre a ineficácia no mundo todo de leis punitivas em relação à violência doméstica - em vários países onde há leis duras contra essa violência, os índices não diminuíram.
 
Angela Davis também aponta para a injustiça do sistema prisional nos Estados Unidos, no Brasil e em diversos outros lugares, onde a probabilidade de ser encarcerado depende muito mais da cor da pele, do fato de ser jovem e estar "no lugar errado e na hora errada" do que realmente estar em conflito com a lei. A desigualdade da aplicação do direito penal no Brasil já se tornou algo notório, ganhando as manchetes e o debate público quando situações escandalosas vêm à tona, como o caso do filho do empresário Eike Batista.

A verdade é que o sistema prisional atual funciona como uma grande máquina compressora que promove violência, física e psicológica, contra os encarcerados e gera ainda mais violência. O índice de reincidência criminal no Brasil é de 70%, salvo raras e felizes exceções em que ações de capacitação e inclusão são realizadas. Mas o sistema como um todo funciona empurrando amplas parcelas da população num ciclo de exclusão, marginalidade e violência.

A realidade é ainda mais cruel tratando-se de crianças em situação de vulnerabilidade social e crianças abandonadas, que apesar de contarem com proteção legal e medidas socioeducativas especiais (proteção atualmente em risco, já que a movimentação para a redução da maioridade penal é crescente no Congresso, com apoio de um setor considerável da opinião pública), também sofrem sistemáticas violações aos direitos humanos em centros de reclusão por todo o Brasil.

O relatório da CNV também fez recomendações fundamentais para reformas e garantia dos direitos humanos no sistema prisional. Reformas no sistema atual dariam conta de lidar com os índices atuais de violência? Fariam, isoladamente, estes índices de fato diminuírem? Acabariam com a impunidade?

O antipenalismo vem sendo discutido e ganhado espaço no Brasil, mas é preciso imaginar e buscar caminhos factíveis para o combate ao encarceramento em massa e ao mesmo tempo para lidar com a situação de violência que vivemos atualmente. É preciso estudar e construir soluções possíveis, além de apontar para a insustentabilidade ou até insanidade do sistema penal atual.

Um dos debates que mais avançou no Brasil nesse contexto, e tem se tornado bandeira cada vez mais presente entre os movimentos sociais e por parte de parlamentares, se relaciona à política de proibição e de guerra contra as drogas, responsável por boa parte do encarceramento em massa no Brasil e em outros países e pela manutenção da violência, principalmente nas periferias e favelas.
 
A legalização das drogas e anistia aos envolvidos com o comércio ilegal seria certamente um passo fundamental, com um potencial de provocar um enorme impacto para a diminuição da violência no Brasil, mas não o único – precisamos lidar com a situação em seu todo e propor caminhos viáveis, em que seja possível combater o ciclo de violência e impunidade e promover reparação às vítimas. Além do mais, o próprio processo de alteração da legislação e políticas para as drogas e de anistia aos envolvidos com o comércio demanda um processo de transição.

Justiça transicional e o contexto brasileiro 


O conceito de justiça transicional se desenvolveu principalmente após o final da Guerra Fria, após a chamada "terceira onda" de democratização, e atualmente conta com um campo de estudos em expansão, em que se leva em conta a necessidade de visões holísticas que incluam a promoção de direitos econômicos, sociais e culturais (algo fundamental para a construção de uma paz sustentável em contextos pós-conflito ou pós-regimes ditatoriais), participação e reparação às vítimas e construção da memória e verdade.

Em situações pós-conflito e pós-regimes ditatoriais, também é comum a existência de índices epidêmicos de violência, um fenômeno que acontece em diversos países ao redor do mundo, e os pesquisadores e atores que trabalham com a justiça transicional veem cada vez mais a necessidade de lidar com essa violência no âmbito da justiça transicional, já que ela representa um fator fortemente corrosivo para jovens democracias, como a brasileira.

Como frisado no texto anterior, o trabalho fundamental da Comissão Nacional da Verdade precisa ganhar um sentido prático e real para a sociedade brasileira, com a implementação das suas recomendações e um trabalho contínuo para o aprimoramento da democracia e da garantia dos direitos humanos. Na conjuntura atual de crise, existe um grande perigo de que as recomendações da CNV se tornem letra morta, algo que apenas levaria ao aprofundamento da crise política e social pela qual passamos.

Por outro lado, a implementação das recomendações e um processo de transição que superasse os elementos antidemocráticos atuais representariam uma das saídas fundamentais para a crise atual. Para além do contexto de retrocessos que vivemos atualmente, é preciso enxergar os espaços onde é possível agregar forças e promover avanços. O dado de que mais de 70% dos policiais brasileiros são favoráveis à desmilitarização da polícia é um forte exemplo nesse sentido.

Algumas das recomendações do relatório já estão sendo implementadas pelo governo, ou já estavam em andamento, como, por exemplo, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Mas ações isoladas, e que se limitem às pautas que não mexem com interesses ou que não incomodam determinados setores políticos e da opinião pública, definitivamente não serão suficientes.

Os movimentos de direitos humanos contra a violência e o verdadeiro extermínio praticado pelo Estado vêm ganhando força a cada dia, assim como o debate e o clamor pela desmilitarização da polícia. Comissões da Verdade estaduais vêm trabalhando e também apontando recomendações, e a criação da Comissão da Verdade das Mães de Maio representou um importante marco, já que tem por objetivo a apuração de graves violações aos direitos humanos cometidas durante o período democrático.

É preciso desenvolver processos com participação social de fato (e não apenas processos burocratizados e limitados a movimentos sociais organizados), principalmente nas comunidades mais atingidas pela violência, com reparação e apoio psicossocial às vitimas, para a promoção de uma cultura de paz e direitos humanos e para a construção de um novo modelo de segurança pública.

Esse é um debate que se faz necessário e urgente no momento atual. A CNV realizou um trabalho fundamental em condições consideravelmente hostis. Agora, a viabilização da implementação de suas recomendações é uma das questões mais críticas para a preservação da democracia e dos avanços alcançados nos últimos anos. Tal viabilização só será possível, como já destacado, com pressão e mobilização da sociedade, e com a busca por caminhos factíveis diante da realidade extremamente complexa e grave do Brasil.



Leia também:
O Brasil precisa de um processo de paz
Fonte: Correio da Cidadania

O Manifesto do PT e os comentários do professor Luis Oliveira e Silva

PICICA: "2. Condenam-nos não por nossos erros, que certamente ocorrem numa organização que reúne milhares de filiados.

COMENTÁRIO: Falso e cínico. Os “erros” do PT não se devem ao fato de reunir “milhares de filiados”. Deve-se ao fato de que estes “milhares de filiados” tiveram o seu poder usurpado por um bando que tomou de assalto a direção do partido, desviando o partido para os caminhos de um pragmatismo sem qualquer escrúpulo. O que incluiu não apenas degradação moral e política, mas também corrupção. O manifesto mostra que setores importantes do partido insistem em cerrar fileiras com o bando do escrúpulo zero. Como fizeram por ocasião do “mensalão”.

3. Perseguem-nos pelas nossas virtudes. Não suportam que o PT, em tão pouco tempo, tenha retirado da miséria extrema 36 milhões de brasileiros e brasileiras. Que nossos governos tenham possibilitado o ingresso de milhares de negros e pobres nas universidades. Não toleram que, pela quarta vez consecutiva, nosso projeto de País tenha sido vitorioso nas urnas. Primeiro com um operário, rompendo um preconceito ideológico secular; em seguida, com uma mulher, que jogou sua vida contra a ditadura para devolver a democracia ao Brasil.

COMENTÁRIO: Verdadeiro, ainda que superestimando os feitos. A crítica da direita ao PT é eivada de preconceitos de classes. Sem falar no caráter seletivo da denúncia que fazem quanto à corrupção. O ódio ao PT é, em geral, um ódio de classe. O que torna o jogo político perigosamente gelatinoso."
 


MANIFESTO DO PT E MEUS COMENTÁRIOS

Manifesto dos DRs

1. Nunca como antes, porém, a ofensiva de agora é uma campanha de cerco e aniquilamento. Como já propuseram no passado, é preciso acabar com a nossa raça. Para isso, vale tudo. Inclusive, criminalizar o PT — quem sabe até toda a esquerda e os movimentos sociais.
 

COMENTÁRIO: o desgaste do PT se estende, infelizmente, à esquerda. O que é uma injustiça.

2. Condenam-nos não por nossos erros, que certamente ocorrem numa organização que reúne milhares de filiados.

COMENTÁRIO: Falso e cínico. Os “erros” do PT não se devem ao fato de reunir “milhares de filiados”. Deve-se ao fato de que estes “milhares de filiados” tiveram o seu poder usurpado por um bando que tomou de assalto a direção do partido, desviando o partido para os caminhos de um pragmatismo sem qualquer escrúpulo. O que incluiu não apenas degradação moral e política, mas também corrupção. O manifesto mostra que setores importantes do partido insistem em cerrar fileiras com o bando do escrúpulo zero. Como fizeram por ocasião do “mensalão”.


3. Perseguem-nos pelas nossas virtudes. Não suportam que o PT, em tão pouco tempo, tenha retirado da miséria extrema 36 milhões de brasileiros e brasileiras. Que nossos governos tenham possibilitado o ingresso de milhares de negros e pobres nas universidades. Não toleram que, pela quarta vez consecutiva, nosso projeto de País tenha sido vitorioso nas urnas. Primeiro com um operário, rompendo um preconceito ideológico secular; em seguida, com uma mulher, que jogou sua vida contra a ditadura para devolver a democracia ao Brasil.

COMENTÁRIO: Verdadeiro, ainda que superestimando os feitos. A crítica da direita ao PT é eivada de preconceitos de classes. Sem falar no caráter seletivo da denúncia que fazem quanto à corrupção. O ódio ao PT é, em geral, um ódio de classe. O que torna o jogo político perigosamente gelatinoso.


3. Maus perdedores no jogo democrático, tentam agora reverter, sem eleições, o resultado eleitoral. Em função dos escândalos da Petrobrás, denunciados e investigados sob nosso governo -– algo que não ocorria em governos anteriores –, querem fazer do PT bode expiatório da corrupção nacional e de dificuldades passageiras da economia, em um contexto adverso de crise mundial prolongada.
 

COMENTÁRIO: Verdadeiro quanto aos “maus perdedores” e ao “bode expiatório”. Contudo, cabe lembrar que o “Fora Dilma” copia os anteriores “Fora etc.”. E que o PT abandonou a luta contra a corrupção, taxando-a de “udenismo”. É falso e cínico dizer que as dificuldades na economia são passageiras devidas a um contexto adverso. A manutenção do modelo macroeconômico herdado dos tucanos não poderia levar a sensação de "bonança" muito longe.

4. Como já reiteramos em outras ocasiões, somos a favor de investigar os fatos com o maior rigor e de punir corruptos e corruptores, nos marcos do Estado Democrático de Direito. E, caso qualquer filiado do PT seja condenado em virtude de eventuais falcatruas, será excluído de nossas fileiras.
 

COMENTÁRIO: Tergiversação. Não se trata de “qualquer filiado do PT” envolvido em corrupção. Trata-se de uma estratégia de poder, levada a cabo pelo bando do escrúpulo zero. Ou o partido se livra deles, doa a quem doer, ou eles vão levar o pouco que ainda resta de bom no partido para a cadeia, junto com eles. O empreendimento de assalto aos cofres da Petrobras guarda relação direta com o “mensalão”. São faces distintas do mesmo pragmatismo. Quando o partido, por ocasião do “mensalão”, recusou a proposta de refundação, e endossou a estapafúrdia tese de que a AP470 era uma farsa, ele deu um salvo conduto ao bando usurpador. Deu no que deu...

5. O PT precisa identificar melhor e enfrentar a maré conservadora em marcha. Combater, com argumentos e mobilização, a direita e a extrema-direita minoritárias que buscam converter-se em maioria todas as vezes que as 2 mudanças aparecem no horizonte.
 

COMENTÁRIO: A condição para que este enfrentamento com a direita seja possível e eficaz é o PT fazer uma profunda e sincera autocrítica, doa a quem doer. Sem isto, não vai colar. Vai parecer coisa de marqueteiro. Como nas últimas eleições.

6. Para isso, para sair da defensiva e retomar a iniciativa política, devemos assumir responsabilidades e corrigir rumos. Com transparência e coragem. Com a retomada de valores de nossas origens, entre as quais a ideia fundadora da construção de uma nova sociedade.

COMENTÁRIO: Esta afirmação parece desdizer tudo o que foi dito acima. Não dá para passar a mão na cabeça do bando do pragmatismo do escrúpulo zero e dizer, ao mesmo tempo, que se deve retomar os “valores de nossas origens”. É uma coisa ou outra.


7. Ao nosso 5º Congresso, já em andamento, caberá promover um reencontro com o PT dos anos 80, quando nos constituímos num partido com vocação democrática e transformação da sociedade – e não num partido do “melhorismo”. Quando lutávamos por formas de democracia participativa no Brasil, cuja ausência, entre nós também, é causa direta de alguns desvios que abalaram a confiança no PT.


COMENTÁRIO: Também desdiz o que foi dito anteriormente. Diz, acertadamente, que a falta de democracia interna “é causa direta de alguns desvios que abalaram a confiança no PT”. É disto que se trata! Mas para ser conseqüente com o diagnóstico, a partido precisa identificar o bando pragmático julgá-lo politicamente. Doa a quem doer. O PT só sai desta se constituir uma “comissão da verdade”, transparente e com controle externo, e cortar na carne.


8. Nosso 5º Congresso, cuja primeira etapa será aberta, a fim de recolher contribuições, críticas e novas energias de fora, deverá sacudir o PT. A fim de que retome sua radicalidade política, seu caráter plural e não- dogmático. Para que desmanche a teia burocrática que imobiliza direções em todos os níveis e nos acomoda ao status quo. O PT não pode encerrar-se em si mesmo, numa rigidez conservadora que dificulta o acolhimento de novos filiados, ou de novos apoiadores que não necessariamente aderem às atuais formas de organização partidária.
Queremos um partido que pratique a política no quotidiano, presente na vida do povo, de suas agruras e vicissitudes, e não somente que sai a campo a cada dois anos, quando se realizam as eleições.
Um PT sintonizado com nosso histórico Manifesto de Fundação, para quem a política deve ser “atividade própria das massas, que desejam participar, legal e legitimamente, de todas as decisões da sociedade”.
Por isso, “o PT deve atuar não apenas no momento das eleições, mas, principalmente, no dia-a-dia de todos os trabalhadores, pois só assim será possível construir uma 3 nova forma de democracia, cujas raízes estejam nas organizações de base da sociedade e cujas decisões sejam tomadas pelas maiorias”.
 

COMENTÁRIO: Verdadeiro. Será isto possível, mantido o bando pragmático no poder? Sem uma profunda e sincera autocrítica. Sem cortar na carne, doa a quem doer?

9. Tal retomada partidária há de ser conduzida pela política e não pela via administrativa. Ela impõe mudanças organizativas, formativas, de atitudes e culturais, necessárias para reatar com movimentos sociais, juventude, intelectuais, organizações da sociedade – todos inicialmente representados em nossas instâncias e hoje alheios, indiferentes ou, até, hostis em virtude de alguns erros políticos cometidos nesta trajetória de quase 35 anos.
Dar mais organicidade ao PT, maior consistência política e ideológica às direções e militantes de base, afastar um pragmatismo pernicioso, reforçar os valores da ética na política, não dar trégua ao “cretinismo” parlamentar – tudo isso é condição para atingir nossos objetivos intermediários e estratégicos.


COMENTÁRIO: Verdadeiro. Será isto possível, mantido o bando pragmático no poder? Sem uma profunda e sincera autocrítica. Sem cortar na carne, doa a quem doer?


Fonte: Luis Oliveira e Silva

"A corrupção num esquema de poder". Escrito por Lucio Flavio Pinto

PICICA: "A entrevista do ex-presidente pode fecundar, tirando da bitola passional e do maniqueísmo partidário, uma das situações mais difíceis e explosivas em que se meteu a República brasileira. Contribuição que a opinião pública deve reconhecer como sendo do intelectual Fernando Henrique Cardoso, sem esquecer o que ele fez de negativo quando ocupou o trono imperial – digo, republicano."
A corrupção num esquema de poder Imprimir E-mail
Escrito por Lucio Flavio Pinto   
Sexta, 27 de Março de 2015



Mário Vargas Llosa completará 78 anos no próximo dia 28. É um dos maiores intelectuais vivos do mundo, no singular quando situado no continente latino-americano de hoje e com poucos companheiros para ombreá-lo, se visto da perspectiva histórica. Teria direito a essa posição singular se tivesse vencido a eleição para presidente do Peru, em 1990?
Talvez seja por puro preconceito responder que não. Se um intelectual é o valor exponencial da cultura humana, por que mantê-lo afastado da atividade humana mais decisiva, que é a política? Ora, que os melhores atuem onde sua presença é mais necessária.
No entanto, a história ensina que quanto maior a proximidade dos intelectuais em relação ao poder, maior a tentação de abusarem dos instrumentos de decisão colocados à sua disposição. O poder multiplica os efeitos danosos de um componente comum entre os intelectuais: a vaidade. Podendo passar do pensar ao fazer, fazem o que não deviam. Frequentemente, contradizem o que antes pregavam.
Ficou célebre a frase atribuída a outro poderoso intelectual, este, sim, que chegou ao topo do poder no seu país, muito maior e mais importante do que o Peru. Diz-se que Fernando Henrique Cardoso mandou seus contemporâneos esquecerem o que ele escrevera como intelectual. Podia não coincidir com o que passaria a fazer como presidente. Ou ser exatamente o oposto.
É muito fácil apontar a contradição, mas os dois casos, concretamente, são muito mais complexos do que uma condenação inquisitorial admite. Llosa podia ter preservado sua invejável face de escritor da sua militância política, que, visando ao poder, foi providencialmente efêmera. Dez anos depois de derrotado na disputa presidencial, ele recebeu o prêmio Nobel de literatura “por sua cartografia de estruturas de poder e suas imagens vigorosas sobre a resistência, revolta e derrota individual”.
Se conseguiu criar ficção com um conteúdo tão real de lucidez política e solidariedade humana, não teria aplicado esses valores como presidente da República? Não teria agido com mais lucidez do que um político de carreira, com formação convencional, restrita, limitada? Sem dúvida, Llosa seria exceção numa tradição desfavorável aos poucos intelectuais que conseguiram atravessar o fosso do mundo cultural para a arena política, mas o Peru ganharia com essa excepcionalidade. E talvez Llosa não perderia como artista, que tanto nos fascina por sua inteligência e criatividade.
No caso de FHC, parece que a vaidade foi mais insinuante e cruel. O intelectual que ele foi (e continua a ser) antes de chegar à presidência da República no Brasil não tinha o direito de violar a constituição federal para: 1) criar a nefanda instituição da reeleição para todos os cargos elegíveis do executivo: 2) aplicar a si essa inovação, que clama por revogação – para o bem de todos e felicidade geral da nação.
Mas se lê com prazer e proveito tudo o que o sociólogo paulista (embora carioca) tem dito desde que voltou a ser apenas (e felizmente) intelectual, inclusive sobre ele mesmo, a despeito de tanta vaidade. Em entrevista que a Folha de S. Paulo publicou nesta semana, FHC faz, dentre várias outras, uma observação profunda e pertinente:
“É importante mostrar a natureza do que estamos discutindo hoje. Não é corrupção usual. É uma forma organizada de manutenção do poder utilizando dinheiro público. Aumentaram os preços (das obras) para tirar a diferença e dar para os partidos. É uma coisa muito mais séria”.
O diagnóstico vai ao âmago da questão e fulmina letalmente o Partido dos Trabalhadores. O PT, seus militantes e simpatizantes apontam para o governo do tucano como a origem da corrupção na Petrobrás. Corrupção sempre houve e (infelizmente) haverá na Petrobrás, a maior empresa brasileira, e em organizações menores, públicas ou privadas. Quando descoberto, o roubo é divulgado e, eventualmente, os ladrões são presos – agora, até mesmo os de colarinho branco, saudável novidade.
Paulo Barusco já roubava em 1997 ou 1998, mas a possibilidade de que os seus superiores na escala hierárquica dentro ou fora da estatal, e o presidente da República, soubessem de suas vilanias, era pequena. Como ele próprio afirmou no exercício da sua delação premiada, ele saqueava os cofres da empresa onde trabalhava como indivíduo, só.
A partir de 2003/2004, o que era um gérmen poderoso de corrupção desabrochou, foi tratado e virou uma organização criminosa. Não apenas para enriquecer pessoas com poder de mando na estrutura que gera dinheiro, mas um projeto de poder. As engrenagens foram montadas, a mecânica foi definida e o fluxo de dinheiro passou a seguir um roteiro consolidado, com percentagem fixada e distribuição estratificada.
Claro que com possibilidades de vazamento para bolsos particulares, sem que essa predação prejudicasse a mecânica que sustentava financeiramente esse projeto de poder, materializado no PT e nos partidos da base aliada do governo petista.

É uma forma não usual de corrupção, como observa FHC. Não chega a ser inédita. O Pará teve essa engrenagem. A partir do jogo do bicho e do contrabando, dinheiro ilícito era irrigado para o PSD (Partido Social Democrático) de Magalhães Barata, numa estrutura que aproximava as autoridades de bicheiros e contrabandistas e se assemelha ao cartel (ou “clube”) das empreiteiras nas entranhas da Petrobrás. Com uma diferença: em escala microscópica, apesar de sua relevância para os padrões paraenses de corrupção.



A entrevista do ex-presidente pode fecundar, tirando da bitola passional e do maniqueísmo partidário, uma das situações mais difíceis e explosivas em que se meteu a República brasileira. Contribuição que a opinião pública deve reconhecer como sendo do intelectual Fernando Henrique Cardoso, sem esquecer o que ele fez de negativo quando ocupou o trono imperial – digo, republicano.

Lucio Flavio Pinto é jornalista.

Website: https://lucioflaviopinto.wordpress.com/2015/03/26/a-corrupcao-num-esquema-de-poder/

Fonte: Correio da Cidadania

março 30, 2015

QUESTÃO INDÍGENA: "MEU ALERTA À PRESIDENTA DILMA", por Egydio Sshwade

PICICA: "Entre 1967 e 1985 andei pelo Brasil “soprando as cinzas” de povos já considerados extintos, buscando animar o fogo escondido sob as cinzas da crueldade histórica e da violência então em curso, pela Ditadura Militar contra os remanescentes povos indígenas brasileiros. Em 1969 criei a OPAN-Operação Amazônia Nativa e em 1972 ajudei a criar o CIMI-Conselho Indigenista Missionário, organizações que até hoje fortalecem a causa destes povos. 
(...) muito maior e mais grave do que nós sofremos durante a Ditadura Militar, foi o sofrimento dos povos indígenas neste mesmo período, pois atingia não apenas adultos, mas a todo o povo igualmente. O mesmo PARASAR que bombardeou os guerrilheiros do Araguaia nos anos 70, no mesmo período, bombardeou aldeias Waimiri-Atroari. Daí a minha pergunta: Por que não aliviar de uma vez o sofrimento destes povos? Sofrimento que continua igual? Por quê?" 

MEU ALERTA À PRESIDENTA DILMA.

Estimada Presidenta Dilma,

Entre 1967 e 1985 andei pelo Brasil “soprando as cinzas” de povos já considerados extintos, buscando animar o fogo escondido sob as cinzas da crueldade histórica e da violência então em curso, pela Ditadura Militar contra os remanescentes povos indígenas brasileiros. Em 1969 criei a OPAN-Operação Amazônia Nativa e em 1972 ajudei a criar o CIMI-Conselho Indigenista Missionário, organizações que até hoje fortalecem a causa destes povos. Considero-me também um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores aqui no Norte, em especial, nos municípios de
Itacoatiara e Presidente Figueiredo, onde resido. Colaborei na redação do documento que contem as linhas do PT sobre política indigenista, aprovado, por unanimidade, na primeira assembleia nacional do Partido em 1980. Gostaria que lesse estas linhas de ação do Partido e comparasse com o que está sendo aplicado pelo seu Governo hoje.

Assim, desde 1963, venho-me dedicando a causa destes remanescentes indígenas cuja sobrevivência era, então, considerada uma “causa perdida”. E a Ditadura Militar já destinava, previamente, as suas terras à latifundiários e mineradores que até hoje estão de olho grande sobre as mesmas. Assim as terras dos kiña ou Waimiri-Atroari, daqui, em cuja cercania moro, já haviam sido destinadas à 14 empresas de mineração.

Colaborei também na organização das primeiras assembleias indígenas do país, assembleias que mudaram a rota da política genocida, montada pelos governos, desde os tempos do Brasil Colônia para o extermínio desses povos. Convivi com eles e de passagem pelas cidades dava notícias da sua situação à professores e alunos de universidades, à comunidades e aos jornais. E enquanto você sofria nas prisões da Ditadura a solidão e a tortura, no interior do país eu sofria a censura e a perseguição dos mesmos militares. O CIMI do qual fui o primeiro secretário executivo sofreu represálias pela Ditadura Militar como até hoje continua odiado pelos ditadores modernos instalados no agronegócio,
nas mineradoras e na bancada ruralista.

Mas, eis que a partir de 1974 esses povos indígenas começam a se organizar. Mais e mais apoios começam a surgir por todo o Brasil e aqueles povos pobres, os mais pobres do país, cujas terras eram objeto de invasões de grandes projetos do Governo Federal, de grilagem da parte de mineradoras e fazendeiros e cuja sobrevivência era considerada uma “causa perdida”, começam a aparecer insistentes nos jornais e acabaram sendo os primeiros a balançar a Ditadura Militar.

Recordo-me que na virada do ano de 1978-79, a CNBB convidou o líder indígena Daniel Matenho Cabixi, para participar da Assembleia do CELAM em Puebla/México. Os ditadores, por certo já temendo a força indígena, não lhe deram o visto de saída do País.

Em 1980 quando do IV Tribunal Russell sobre os Direitos dos povos Indígenas das Américas, em Rotterdam quis repetir a determinação impedindo a saída do cacique Mario Juruna Xavante, escolhido para presidir aquele Tribunal. Pela primeira vez foi derrotada pela pressão nacional e internacional. Durante a realização do Tribunal os militares ditadores foram forçados a ceder e tive a honra de receber o cacique Juruna no Aeroporto de Amsterdam e acompanhá-lo até o local da realização do Tribunal, onde ainda chegou a tempo para presidir a sessão de encerramento.

É possível que você nunca tenha tido a experiência de sentir a força que estas populações humildes, sem armas e sem voz, encerram, achando, por isso, que só os poderosos, os donos das empresas e os políticos lhe possam dar governabilidade. Tudo bem, com eles você chegará ao fim do seu governo, mas de que forma? Com certeza, frustrada e derrotada nos ideais que a levaram a sofrer prisão e torturas, e mais humilhada do que se tivesse governado apenas um dia ao lado dos perseguidos e oprimidos por esses poderosos que agora a dominam e a encurralam. Pois não foram certamente os indígenas os autores do “panelaço”, durante a sua fala ao povo brasileiro e nem da recente parada nacional dos caminhoneiros, como não foram os Mapuche do Chile que organizaram em 1973 a greve dos caminhoneiros que derrubou o Governo Allende.

Além do mais os povos indígenas vivem o socialismo. E o PT não é um partido socialista? Não estão eles abrindo caminho ao socialismo que o PT está buscando? Por que, então, este desrespeito aos seus direitos e abandono quando os favorecidos diretos são os maiores inimigos do socialismo? Tudo isto é ininteligível neste seu governo, e intolerável.

Finalmente, muito maior e mais grave do que nós sofremos durante a Ditadura Militar, foi o sofrimento dos povos indígenas neste mesmo período, pois atingia não apenas adultos, mas a todo o povo igualmente. O mesmo PARASAR que bombardeou os guerrilheiros do Araguaia nos anos 70, no mesmo período, bombardeou aldeias Waimiri-Atroari. Daí a minha pergunta: Por que não aliviar de uma vez o sofrimento destes povos? Sofrimento que continua igual? Por quê?

Casa da Cultura do Urubuí – 10 de março de 15.

Egydio Schwade

Colóquio: Corrupção da Democracia

PICICA: Para quem está no Rio e adjacências.


O tema é corrupção, no segundo colóquio do ano organizado pela rede Universidade Nomade e a Casa de Rui Barbosa, para o mês de abril.

https://www.facebook.com/events/366229783573164/

"A crise não é mortal. Presidente é fraca e dependente de Lula. Entrevista especial com Francisco de Oliveira" (IHU)

PICICA: "A atual crise brasileira “não é uma surpresa” e tampouco diz respeito a uma crise política ampla. Ao contrário, é “uma crise devido ao fato de que a Dilma é uma presidente fraca. Mas também não se trata de uma crise mortal”, avalia Chico de Oliveira, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Para ele, em seu segundo mandato, Dilma está “pagando o preço de ser uma candidata dependente do Lula” e de não ter “base própria”.

Ao comentar a atual conjuntura política, o sociólogo é categórico: “Nós deveríamos aprender para nunca mais repetirmos esse estilo mexicano de que um candidato que está na presidência deve apontar seu sucessor. Isso não dá certo no Brasil e não devemos deixar o Lula ou qualquer outro repetir essa situação”.

Depois de ter sido um dos fundadores do PT e ter se desligado do partido, Chico de Oliveira afirma que o “PT já não existe mais, assim como o PSDB também não”. E explica: “O PT não existe justamente porque é um partido de um homem só: tudo começa e termina no Lula. Um partido assim não tem condições de ficar muito tempo na política nacional”. Para ele, o “Brasil não tem um sistema político, tem um sistema de personalidades, as quais têm força por um período. Por isso não é bom que Lula continue indicando presidentes”.

Francisco de Oliveira também comenta as manifestações que ocorreram nos últimos dias 13 e 15 de março e as vê com entusiasmo. “Louvo as manifestações porque provam que a sociedade não está parada, pode reagir, e tomara que isso se repita.” Apesar da boa avaliação, o sociólogo não vê novas possibilidades políticas a partir de tais protestos. “Manifestações são sempre manifestações e a política efetiva corre por outros trilhos. Claro que a política muda um pouco por causa dos protestos, mas ela não se guia por eles. A política é muito mais previsível do que pensamos.”"

A crise não é mortal. Presidente é fraca e dependente de Lula. Entrevista especial com Francisco de Oliveira

“O Brasil também já atingiu um certo grau de desenvolvimento, e agora os interesses econômicos são muito poderosos e são eles que monitoram o governo o tempo todo. Quando há qualquer sinal de iniciativas que são contra esses interesses, se faz com que a presidência corrija os rumos. Em síntese, a política virou algo muito medíocre”, constata o sociólogo.


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Foto: fmanha.com.br

A atual crise brasileira “não é uma surpresa” e tampouco diz respeito a uma crise política ampla. Ao contrário, é “uma crise devido ao fato de que a Dilma é uma presidente fraca. Mas também não se trata de uma crise mortal”, avalia Chico de Oliveira, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Para ele, em seu segundo mandato, Dilma está “pagando o preço de ser uma candidata dependente do Lula” e de não ter “base própria”.


Ao comentar a atual conjuntura política, o sociólogo é categórico: “Nós deveríamos aprender para nunca mais repetirmos esse estilo mexicano de que um candidato que está na presidência deve apontar seu sucessor. Isso não dá certo no Brasil e não devemos deixar o Lula ou qualquer outro repetir essa situação”.


Depois de ter sido um dos fundadores do PT e ter se desligado do partido, Chico de Oliveira afirma que o “PT já não existe mais, assim como o PSDB também não”. E explica: “O PT não existe justamente porque é um partido de um homem só: tudo começa e termina no Lula. Um partido assim não tem condições de ficar muito tempo na política nacional”. Para ele, o “Brasil não tem um sistema político, tem um sistema de personalidades, as quais têm força por um período. Por isso não é bom que Lula continue indicando presidentes”.


Francisco de Oliveira também comenta as manifestações que ocorreram nos últimos dias 13 e 15 de março e as vê com entusiasmo. “Louvo as manifestações porque provam que a sociedade não está parada, pode reagir, e tomara que isso se repita.” Apesar da boa avaliação, o sociólogo não vê novas possibilidades políticas a partir de tais protestos. “Manifestações são sempre manifestações e a política efetiva corre por outros trilhos. Claro que a política muda um pouco por causa dos protestos, mas ela não se guia por eles. A política é muito mais previsível do que pensamos.”


Francisco de Oliveira formou-se em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia da Universidade do Recife, atual Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. É professor aposentado do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo – USP.


Confira a entrevista.

Foto: Fato News
IHU On-Line - Como o senhor está vendo o segundo mandato do governo Dilma?
 
Chico de Oliveira - É um mandato fraco e isso deveria alertar o país a não confiar nos conselhos do Lula, porque ele “tira os candidatos do bolso” e depois os deixa a ver navios; ou seja, deixa uma candidata como a presidente Dilma à deriva, sem conseguir harmonizar as forças políticas que a apoiam.

IHU On-Line - Lula ainda tem peso na política?


Chico de Oliveira - Sim, e se ele tem intenção de voltar, provavelmente voltará.


IHU On-Line - O retorno dele em 2018 seria viável?


Chico de Oliveira - É viável, mas terá problemas, porque se o governo Dilma se configurar como um governo fracassado, ele terá problemas.


IHU On-Line - Diante da crise atual, qual seria o significado do PT na presidência por mais quatro anos, com o retorno do ex-presidente Lula em 2018, por exemplo? 


Chico de Oliveira - É que o outro lado é muito ruim, os tucanos são ruins de candidatos e não têm o que dizer ao povo. O que Aécio dizia? Nada. Ele não tem mensagem. O PSDB está cheio de políticos sem mandato.


IHU On-Line - E o que o PT ainda tem a dizer ao povo?


Chico de Oliveira - Ainda tem o que dizer, mas isso não significa que vamos concordar com o que é dito. O PT tem uma larga base popular e por conta disso poderia encontrar novas mensagens para o povão. A diferença é que os tucanos não têm uma larga base popular. Contudo, na prática os programas se parecem muito, não têm grandes diferenças. Mas quem sabe na hora certa o PT ainda encontre uma mensagem. Mas isso não dá para prever.


IHU On-Line - Na sua avaliação há uma crise do governo Dilma ou crise política mais ampla? A crise é uma surpresa?


Chico de Oliveira - Não é uma surpresa — e é bom que a sociedade aprenda. O Lula fez uma indicação fraca e maldosa, porque a Dilma não tem cacife próprio, nem base própria e é dependente dele. Ela está pagando o preço de ser uma candidata fraca e dependente do Lula. Com isso, nós deveríamos aprender para nunca mais repetirmos esse estilo mexicano de que um candidato que está na presidência aponta seu sucessor. Isso não dá certo no Brasil e não devemos deixar o Lula ou qualquer outro repetir essa situação.


IHU On-Line - Além da crise do governo Dilma, evidencia uma crise política mais ampla?   


Chico de Oliveira - Não tem uma crise política de modo geral. Tem uma crise devido ao fato de que a Dilma é uma presidente fraca. Mas também não se trata de uma crise mortal. Crise forte foi a do Collor. Estas são as crises de um governo que não consegue arrumar uma estratégia.


IHU On-Line - Alguns dizem que a crise do governo é a crise do lulismo. Concorda?


Chico de Oliveira - É também, mas não se deve apostar muito numa derivação direta, porque o lulismo ainda tem força, porque entre os que aparecem hoje como possíveis candidatos, Lula ainda é o que tem mais força, embora esteja desgastado.


IHU On-Line - Ao invés da Dilma, o PT deveria ter lançado outro candidato à presidência?


Chico de Oliveira - Mas o PT não tem outro candidato. O problema do lulismo é que é uma candidatura de um homem só.


A Dilma não é propriamente um desastre e a crise da Petrobras não é uma responsabilidade apenas dela diretamente. A Petrobras é uma empresa brasileira e mundial, e corrupção e petróleo sempre foram sinônimos; a corrupção da Petrobras demorou a aparecer. A Dilma também está pegando efeitos da crise da Petrobras, com a qual ela tem algo a ver, mas não diretamente.


IHU On-Line - Quais as implicações políticas de o PT ser um partido de um homem só?  


Chico de Oliveira - O PT já não existe mais, assim como o PSDB também não. O PT não existe justamente porque é um partido de um homem só: tudo começa e termina no Lula. Um partido assim não tem condições de ficar muito tempo na política nacional. Nós tivemos medo, por algum momento, de que o PT fosse uma espécie de Partido Revolucionário Institucional - PRI mexicano, mas não é, porque o PRI mexicano controlou a política por 80 anos. Mas no Brasil não tem nada parecido no sentido de haver algum presidente que tivesse feito um sucessor. Vargas não fez sucessor porque se suicidou, Juscelino não fez sucessor, e Jânio, depois de três meses, renunciou. O Brasil não tem um sistema político, tem um sistema de personalidades, as quais têm força por um período. Por isso não é bom que Lula continue indicando presidentes.


IHU On-Line - Concorda que há um pacto entre PT e PSDB, com Levy na Fazenda?


Chico de Oliveira - Não existe pacto nenhum, isso é coisa da imprensa. O fato é que eles não são diferentes em programas a propor. Como não são diferentes, chamam uma personalidade, como Levy, que ninguém sabe de onde veio, para chefiar o governo.


IHU On-Line - Como desenvolver políticas sociais daqui para frente, com a crise econômica e a crise do governo Dilma?


Chico de Oliveira - Não vai se mexer em nada fundamental em relação às políticas públicas e vão fazer ajustes como Dilma está dizendo. Nenhum governo hoje é maluco de tirar as políticas sociais da pauta e dos investimentos do governo. Os governos hoje subsistem por causa das políticas sociais; não há mais uma diferença de política monetária como antes havia e dividia os partidos, como no governo Juscelino, que teve uma política de desenvolvimento boa, mas não teve política monetária. Mas não existe mais esse tipo de divergência. De modo que o que resta para os governos nacionais são as políticas sociais.


O governo tentou avançar, porque Dilma quer se desmarcar do Lula e ter alguma coisa em que ela possa avançar e marcar seu governo. Mas ela terá dificuldades para se manter. Os tucanos também precisam aprender a lição para ver se colocam um candidato mais contundente; Aécio é muito educado.


IHU On-Line - Ele foi um candidato errado para o PSDB?


Chico de Oliveira - Sim, ele é muito educado, tem a herança de Tancredo. Eu não sou tucano e nem sei em quem eu voto hoje, mas o candidato forte do PSDB é o Serra.


IHU On-Line - Que também não teve sucesso ao concorrer à presidência.


Chico de Oliveira - Não teve, mas contra uma Dilma fraca, quem sabe ele tenha sucesso na próxima eleição. Ele tem muito conhecimento em economia, é duro, e usa esse conhecimento até para enganar os bobos.


IHU On-Line - Como o senhor vê as críticas ao fato de que as políticas sociais foram desenvolvidas para sustentar a economia e o mercado financeiro?


Chico de Oliveira - As políticas sociais injetam poder na economia, principalmente se forem políticas sociais com um foco nas classes mais pobres da sociedade. Isso tem um efeito econômico não desprezível, de modo que se as políticas sociais têm efeito na economia, isso é bom, não é ruim.


IHU On-Line - Mas diante de uma crise de baixo crescimento, há um impacto direto nas políticas e nas pessoas assistidas por essas políticas.


Chico de Oliveira - Sim, há um impacto, mas não se trata de uma crise catastrófica. É uma crise cíclica, porque a economia capitalista move-se em ciclos e isso é normal. Enquanto um empresário está tomando decisões, outros podem não estar. Governos e empresários tentam tomar decisões que vão numa mesma direção e isso gera crescimento para o país, mas quando afrouxam as decisões, o ciclo baixa, mas isso não é uma tragédia.


IHU On-Line - Como o senhor viu as manifestações dos dias 13 e 15 de março?


Chico de Oliveira - Não acompanhei tanto, mas posso dizer que até me surpreendi pelo vigor delas. Louvo as manifestações porque provam que a sociedade não está parada, pode reagir, e tomara que isso se repita. Os partidos logo querem capturar esses movimentos e, ao fazer isso, eles geralmente estrangulam os movimentos. Tomara que novas manifestações empurrem os políticos contra a parede.


IHU On-Line - As manifestações foram legítimas? Alguns as criticam, dizendo que foram de direita. Isso corresponde à realidade?


Chico de Oliveira - Não sei se isso corresponde à realidade e se a manifestação foi manipulada pela direita. A direita faz seus movimentos também. A direita tem força e em períodos como esse, de um governo fraco, ela cresce. Não gosto dessas manifestações, mas elas são legítimas e são parte da política.


IHU On-Line - Essas manifestações podem resultar em alguma mudança política?


Chico de Oliveira - Não, porque as manifestações são sempre manifestações e a política efetiva corre por outros trilhos. Claro que a política muda um pouco por causa dos protestos, mas ela não se guia por eles. A política é muito mais previsível do que pensamos. Alguém dizia que a política é como as nuvens. Mas essa frase é falsa. A política é mais previsível do que a maior parte das atividades. Talvez a gente não saiba ler muito bem, mas veja, você não vê o Renan Calheiros nem à direita nem à esquerda, porque o Senado é uma casa importante e ali a opinião pessoal de cada senador vale muito pouco. Eles estão tentando entender o movimento das ruas, o movimento da política para não fazerem besteira. Na Câmara é ainda mais complicado porque tem mais de 500 deputados. Então, não há nada de imprevisível na política.


IHU On-Line - Nessa previsibilidade da política, o que vislumbra para a política brasileira nos próximos anos?

"Como se observa também em outros países desenvolvidos, nenhum partido entra no governo e muda a política"

Chico de Oliveira - Nada de mais. Como se observa também em outros países desenvolvidos, nenhum partido entra no governo e muda a política. Isso não existe mais e é coisa do passado, porque as estruturas capitalistas vão se consolidando muito. E são essas estruturas que governam. O bom governante está prestando atenção aí. Obviamente não é exatamente isso que traz benefício ao povo, mas é isso que move a política. 

IHU On-Line - Depois das manifestações, a proposta do governo Dilma foi sugerir uma reforma política. O que acha disso?


Chico de Oliveira - É uma bobagem. Reforma política se faz todos os dias. Dilma enviou Rossetto para falar depois das manifestações porque é um ministro expressivo. Dilma está tentando retomar a popularidade com o Rossetto, até porque ele é gaúcho e os gaúchos sempre tiveram espaço importante na política brasileira nos últimos 50 anos.


IHU On-Line - Ainda há um partido de esquerda no Brasil que possa ter algum papel político?


Chico de Oliveira - Não. E isso é uma tragédia dos países que vão alcançando certos níveis de desenvolvimento econômico, porque as políticas radicais perdem espaço. Veja que a Europa tem tensões políticas fortes, mas nos EUA os democratas e republicanos são cada vez mais parecidos, portanto, pela política não se fazem mais grandes modificações. De modo que o Brasil também já atingiu um certo grau de desenvolvimento, e agora interesses econômicos são muito poderosos e são eles que monitoram o governo o tempo todo. Quando há qualquer sinal de iniciativas que são contra esses interesses, se faz com que a presidência corrija os rumos. Em síntese, a política virou algo muito medíocre. 


(Por Patricia Fachin)

Fonte: IHU